Em meio à ditadura militar, a saga (romantizada) no centenário da imigração italiana no Brasil

Por Gustavo Barreto (*)

Reportagem especial do jornal O Globo em maio de 1975 registra a forte influência dos italianos na cultura brasileira, sob o atento olhar do regime autoritário de Geisel.

Destaque na página 3 do jornal O Globo de 20 de maio de 1975: jornalismo sob forte influência do regime ditatorial dos militares.

Destaque na página 3 do jornal O Globo de 20 de maio de 1975: jornalismo sob forte influência do regime ditatorial dos militares.

A ditadura militar estava a pleno vapor no ano de 1975. Apenas para citar os fatos mais simbólicos, o jornalista Vladimir Herzog – croata naturalizado brasileiro – seria assassinado brutalmente no dia 25 de outubro de 1975 por agentes do governo militar; em janeiro do ano seguinte, mais especificamente no dia 17 de janeiro de 1976, também seria assassinado em São Paulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho. A imprensa sofria com a censura imposta pelo governo e, em parte com a autocensura por conta do temor por represálias.

Não é à toa que uma das principais matérias do jornal O Globo em 1975 sobre o tema da imigração, da edição de 20 de maio, possuía o seguinte título: “Geisel preside festa da imigração italiana”. O próprio ditador – que O Globo trata como presidente – é descendente de imigrantes, filho de alemães e nascido em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul1.

A série de matérias, que ocupa com destaque a página 3 do caderno O País, se resume no seu início a uma breve descrição sobre a passagem de Geisel nas comemorações do centenário da imigração italiana no Brasil, que seriam realizadas naquele dia no distrito de Nova Milano, a 121 quilômetros de Porto Alegre. Participaram dos festejos – registra o jornal – o subsecretário de Relações Exteriores da Itália, o governador do Rio Grande do Sul e o ministro do Trabalho.

Após dar detalhes da viagem, como a companhia de “Dona Lucy” e Amália Lucy, esposa e filha de Geisel, o diário informa que o ditador seria homenageado nas comemorações e que lançaria a pedra fundamental do Monumento ao Centenário da Imigração Italiana, localizado na entrada de Nova Milano, “berço da colonização italiana no estado”. A participação de Geisel conta com um momento tradicional, conforme relata a matéria: “No início da tarde, Geisel e sua comitiva almoçarão no salão paroquial da Igreja Santa Helena da Cruz, onde há cem anos se reuniram pela primeira vez os colonos das famílias pioneiras Sperafico, Radaelli e Crippa. Cerca de 250 pessoas devem participar do almoço, que terá cardápio típico da região: sopa de agnolini, frango assado, carne cozida, leitão assado, risoto e vinho”.

Algumas das atrações: uma festa do centenário em frente à igreja matriz e um “espetáculo alegórico, onde serão reproduzidas as cenas de chegada dos primeiros imigrantes”, com a presença de “representantes dos 25 municípios da região colonizada pelos italianos”, além de um ato “religioso ecumênico”, uma “revoada de pombos” e canções folclóricas. Impressiona que a parte de cima da matéria – que foi publicada, destaca-se, na página 3 da edição, a primeira de reportagens – é toda dedicada a descrever, sem qualquer caráter jornalístico, a agenda de Geisel.

Esta primeira parte burocrática da página foi em parte compensada por duas matérias interessantes sobre italianos que se tornaram notáveis – em grande parte pelo poder e dinheiro conquistados no Brasil. A primeira matéria aborda os pioneiros em um novo tipo de venda de jornal, as bancas. Quase no fim da Primeira Guerra, em 1918, descreve o diário carioca, um grupo de italianos organizou no Rio de Janeiro um “esquema racional de distribuição e venda de jornais”, surgindo assim as primeiras bancas da cidade – primeiro na Zona Norte, depois Centro e depois Zona Sul. Elas substituíram progressivamente, aponta o jornal, a “tradicional figura do jornaleiro que ia de casa em casa”.

Surgiu assim a sociedade Della Stampa, precursora do Sindicato dos Distribuidores e Vendedores de Jornais e Revistas do Estado do Rio de Janeiro. O sindicato – diz O Globo – funciona em cooperativa e é o único no gênero no País. “Seus quatro mil associados agrupam-se em 300 capatazias2, funcionando cada grupo como se fosse uma família, onde os lucros e prejuízos são divididos”. Segundo o presidente do sindicato – que também é filho do pioneiro na venda de jornais, relata O Globo –, isso é “uma conseqüência do espírito de solidariedade que norteou aqueles pioneiros e que mantemos até hoje”.

As marcas dos italianos são relatadas pelo texto: na Avenida Osvaldo Cruz, quase esquina com a Praia de Botafogo, no Rio, do lado esquerdo, fica um casarão “estranho, escuro, cercado por um jardim”. É a casa da família Martinelli, “que saudosa da Itália mandou repetir em pleno bairro do Flamengo uma vila feita segundo os moldes renascentistas”. A Academia de Medicina foi fundada, acrescenta o diário carioca, “graças ao médico Vicenzo de Simoni”, e coube ao pintor Eliseu Visconti, também imigrante, executar os afrescos da cúpula do Teatro Municipal. “São contribuições da cultura italiana ao Rio de Janeiro do início do século [XX]”, destaca o diário carioca.

“Hoje, o Rio de Janeiro se prepara para receber uma nova onda de imigrantes italianos jovens, que quer atuar principalmente em turismo, na construção e direção de hotéis e restaurantes”, diz a matéria, sem se preocupar neste caso – como era comum em matérias em relação ao tema – sobre a “ameaça” da competição com a mão de obra nacional. Os primeiros três italianos, acrescenta, chegaram ainda em 1530, com a expedição de Martim Afonso de Sousa3. No entanto, o italiano “mais ilustre historicamente” foi Giuseppe Garibaldi, “revolucionário republicano que lutou em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, contra as tropas do Imperador D. Pedro II, em 1841”.

A influência italiana, sugere a matéria indiretamente, parece não ter fim. “A Imperatriz Teresa Cristina de Borbone, mulher de D. Pedro II, era napolitana. (…) muitos italianos sentiram-se estimulados a vir para o Rio de Janeiro por sua causa”. A Enciclopédia Italiana, citada por um professor do Instituto Italiano de Cultura, registra o número de italianos da primeira geração existente no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, em 1920: 10 mil e 21.929 respectivamente. A matéria, com base em uma fonte do Instituto, estima que naquele momento 15 milhões de brasileiros eram descendentes de italianos.

Italianos fazem a América em São Paulo”

Esta é outra chamada da mesma página 3 – de 20 de maio de 1975 n’O Globo –, contando um pouco da História dos italianos a partir da lembrança de dois imigrantes que desembarcaram no Brasil em 1881: Francesco Matarazzo e Vicente Romano. “O primeiro se tornou um capitão de indústria; o segundo teve um filho que está completando 43 anos como sanfoneiro”, diz a matéria.

O romantismo em relação ao processo imigratório dá o tom do texto: segundo a reportagem citando o próprio, quando chegou ao Brasil, Matarazzo trazia “algum dinheiro e o bolso cheio de vontade”. Dedicando-se à compra e venda de toucinho de banha de porco, no interior de São Paulo, “acabou como um dos maiores empresários da fase inicial da industrialização brasileira”. Já em 1934, sustenta a matéria, as Indústrias Reunidas F. Matarazzo alcançavam um faturamento bruto de 350 mil contos de réis, enquanto a receita do Estado era de 400 mil contos.

A história é encadeada com a segunda vinda de Vicente Romano para o Brasil, em 1922, junto com a família – e incluindo o filho sanfoneiro, que trabalhara com o pai na fábrica de Matarazzo. Da “cidade mais italiana do Brasil” resta pouco, lamenta-se o texto: “Do velho bairro Bexiga, como era conhecida a Bela Vista no tempo do escritor Alcantara Machado, e do Brás, resta pouco que lembre os primeiros imigrantes: desapareceram os homens de palavreado áspero circulando pelas ruas do bairro rumo às reuniões dos sindicatos ou para as conversas madrugadoras nas cantinas. Também não há mais as mulheres de manto preto, sentadas na soleira das portas, falando dialetos da Sicília, da Campânia, da Calábria”.

A exploração dos trabalhadores denunciada por décadas nos jornais ligados a sindicatos viram uma virtude na interpretação das fontes d’O Globo: segundo o antropólogo João Baptista Borges Pereira, no livro Italianos no mundo rural paulista4, a “versatilidade do imigrante italiano se expressa em dois níveis: no plano da vida doméstica e no plano das atividades lucrativas”. Além disso, acrescenta a matéria, a facilidade de adaptação ao modo de vida brasileiro teria feito com que o italiano se integrasse “com rapidez”, ao mesmo tempo em que as influências que trouxe foram muitas, “sobretudo na cozinha”. A macarronada servida às quintas-feiras e domingos na maioria das residências em São Paulo, aponta o jornal, “não é mais privilégio de famílias italianas”.

Argumenta o jornal citando “alguns estudiosos” – não informa quais – que “há 100 anos, quando os Salvatori, os Franceschi, entre outros, desembarcaram no Brasil, este país começou a ficar mais rico, mais vibrante e muito mais alegre”, enquanto São Paulo “foi o Estado que recebeu maior impacto dessa presença”. Estas palavras poderiam ter saído de qualquer jornal republicano do século XIX, mas estamos – já – em 1975.

O Globo acrescenta que, no setor industrial, os imigrantes italianos foram considerados “peça importante na faixa especializada de mão-de-obra, numa época que carecia de profissionais capazes de promover o progresso econômico do País”, vindo ocupar “o vazio deixado pelo trabalhador brasileiro sem qualificação numa fase em que a indústria brasileira necessitava de profissionais capacitados”.

O jornal fala ainda sobre a contribuição no “nível empresarial” e na agricultura – “foi o italiano que veio, ao lado de outros imigrantes, substituir o trabalho escravo do negro, especialmente nas plantações de café no interior de São Paulo”. E o negro? Não poderia ter feito esse trabalho, agora de forma remunerada? Não se sabe, pois mais uma vez as reportagens ignoram completamente a presença do negro no campo ou nas cidades. É como se os negros fossem gradativamente sumindo com o processo contínuo de abolição da escravatura ao longo do tempo.

Argumenta o diário ainda que o italiano “já estava familiarizado com a mecanização e com o manejo de instrumentos de trabalho na lavoura” – omitindo, conforme constam em todas as reportagens e editais da época, que o imigrante europeu recebia a passagem, a moradia, crédito financeiro para a subsistência nos seis primeiros meses e subsídios agrícolas para as sementes e as máquinas. Praticamente tudo financiado a juros baixíssimos pelos seguidos governos brasileiros, que ofereciam inclusive a possibilidade de os europeus se tornarem proprietários, uma possibilidade remota para a imensa maioria dos negros à época, jogados à própria sorte.

Em outro trecho, o diário carioca até chega a comentar sobre a contribuição dos italianos no “campo associativo” – um eufemismo para apresentar a enorme influência que os sindicalistas italianos tiveram no cotidiano de São Paulo –, porém apresenta esse tema apenas em um parágrafo, e da seguinte forma: “No campo associativo, São Paulo encontra a presença italiana de modo seguido. Tradicionalmente, na formação de entidades, esses imigrantes passaram das reivindicações para a criação de grêmios desportivos e daí nasceram clubes famosos como o Palmeiras (até a II Guerra Mundial chamado de Palestra-Itália), o Clube Esperia e o Juventus”. Eis a contribuição final dos primeiros sindicalistas italianos nos tempos atuais, segundo a reportagem: bons clubes desportivos.

As primeiras levas significativas de imigrantes italianos chegaram ao Brasil entre 1887 e 1902, registra o diário carioca, “ocasião em que são Paulo importou 800 mil trabalhadores estrangeiros”. Vinham subvencionados pelo governo e possuíam poucos recursos, informa a reportagem. Cresceram a partir das atividades agrícolas e passaram a se estabelecer na capital do Estado.

A segunda leva veio após a II Guerra Mundial: “Mais do que os outros, fugiam dos problemas sociais da Europa, e de uma Itália sem condições de absorver toda a mão-de-obra disponível”. A iniciativa – quase que 100% financiada pelo governo brasileiro, no início – parece ter sido apenas dos imigrantes, na interpretação particular d’O Globo: “Em São Paulo, iniciaram grandes projetos de colonização”.

NOTAS

1 Mais sobre ele em http://educacao.uol.com.br/biografias/ernesto-geisel.jhtm

2 Segundo o dicionário Michaelis online, neste sentido, “grupo de trabalhadores, sob as ordens de um capataz”.

3 Mais em http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo01/martim_afonso.html

4 Vide http://www.ieb.usp.br/publicacao/italianos-no-mundo-rural-paulista

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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