A “linha-dura” contra os imigrantes na Europa: Se um filho de imigrantes húngaros não se sensibiliza, quem vai se importar?”

Por Gustavo Barreto (*)

União Europeia discute imigração em 2008. Para o professor Franklin Trein, com o seu eurocentrismo, a Europa esqueceu “o quanto lucrou, desde o fim do século XV, com a transferência de riqueza para ela” e “sua exportação de excedente populacional, desde os séculos XVII e XVIII até os milhões no século XIX e nos períodos anteriores e posteriores às guerras mundiais”.

Edição do jornal O Globo de 8 de junho de 2008

Edição do jornal O Globo de 8 de junho de 2008

O jornal O Globo de 8 de junho de 2008 destaca mais uma vez o debate europeu sobre a imigração. Com a manchete “Do sonho ao pesadelo” na página 45, em matéria de página inteira, o jornal destaca que os imigrantes “tentam driblar o cerco cada vez mais apertado a estrangeiros irregulares no continente”.

A matéria cita vagamente a História do Brasil: “Na mala, além de uns poucos pertences, a esperança de uma vida melhor. Mas a realidade que os imigrantes vêm encontrando na Europa – inclusive brasileiros, que muitas vezes tentam fazer o caminho inverso de seus antepassados – tem sido cada vez mais dura e o controle sobre a entrada ilegal, cada vez maior”. Não se sabe de quais antepassados a matéria fala – dos brasileiros? Se sim, qual seria o “caminho inverso de seus antepassados”? Seriam então filhos e netos de imigrantes que estariam deixando o Brasil rumo à Europa? Nenhuma informação sobre isso, apenas a frase, solta, sem qualquer fundamento.

A reportagem, seguindo um modelo pronto para este tipo de matéria, aborda a situação em quatro países onde as condições econômicas têm piorado não só a situação da população nacional, como também a dos imigrantes: Espanha, França, Reino Unido e Alemanha.

O último trecho, repleto de lugares comuns e expressões pejorativas, dá o tom da matéria: “Nesse universo de ilegais estão também brasileiros, que muitas vezes lançam mão de ”jeitinhos”, que vão da discrição para não serem abordados nas ruas a documentos falsos. Tudo para evitar uma temida viagem de volta forçada”. A matéria trata da “humilhação” e “incerteza” dos brasileiros na Europa, principalmente na Espanha, onde uma crise diplomática foi criada a partir da deportação de centenas deles.

Uma outra reportagem, de apenas dez dias depois – edição de 18 de junho – trata do mesmo tema, com a chamada: “Linha-dura contra imigração; UE [União Europeia] pode aprovar lei para facilitar expulsão de estrangeiros e cotas para trabalhadores”. Uma das fontes ouvidas pela reportagem, publicando inclusive uma breve entrevista, é o professor da UFRJ Franklin Trein, então coordenador do Programa de Estudos Europeus da mesma universidade1. Ele afirma, registra o jornal, que “mesmo no meio acadêmico” da Europa encontrou resistências para uma “compreensão mais solidária” da questão migratória, retrato de um “eurocentrismo que esquece o passado da Europa”.

O problema, aponta Franklin, o ponto principal da legislação de permissão de atividade profissional “não é ela em si”, está “no fato de a Europa, com o seu eurocentrismo, esse olhar que só vê a si mesma, esquecer o quanto lucrou, desde o fim do século XV, com a transferência de riqueza para ela”, ou ainda esquecer “sua exportação de excedente populacional, desde os séculos XVII e XVIII até os milhões no século XIX e nos períodos anteriores e posteriores às guerras mundiais”.

“Nenhum país estabeleceu cotas para europeus”, diz o Franklin Trein ao jornal O Globo – o que é, neste aspecto específico, falso. Conforme demonstrado amplamente nos primeiros capítulos deste documento, havia sim, por décadas fartas cotas para os europeus no Brasil. Porém, ao contrário de cotas limitadores, tratavam-se de cotas pró-europeus. Muitas legislações brasileiras, desde o período do Império até a primeira metade do século XX, vedavam a entrada de outras nacionalidades, favorecendo os europeus. A ação mais restritiva que existia, no limite, era a de limitar as nacionalidades a 25% do total de trabalhadores “exportados”, dado o temor de que os italianos, portugueses ou mesmo espanhóis invadissem parte do território brasileiro, conforme documentos expostos neste trabalho.

Conclui Franklin que há uma reação “desequilibrada dos europeus em relação à entrada dos estrangeiros e ao que aconteceu quando a Europa não tinha o que dar de comer para seus cidadãos, que vieram para as Américas”. E o que a União Europeia quer, questiona o diário carioca, com as novas regras? Franklin produz uma resposta interessante: “Legalizar, para eles, é criar cotas, condições. É mais ou menos assim: ”Queremos dez engenheiros com determinada formação, três solteiros e sete casados, sendo que estes só podem ter, no máximo, um filho. Devem ter mais de 35 anos e menos de 42”. Isso é declarar movimentos migratórios marginais, é criminalizar os que estão buscando numa sociedade rica um pouco do bem-estar que não há no seu país de origem”, diz o professor da UFRJ.

As regras específicas de idade e familiares são um exagero intencional de Franklin, que buscou com isso fazer uma crítica às restrições que poderiam surgir com a nova legislação europeia. Vale destacar, no entanto, que as políticas migratórias brasileiras até pelo menos as primeiras décadas do século XX tratavam exatamente de fazer esse tipo de distinção, com publicação no edital e uma discussão parlamentar e na imprensa ampla e aberta sobre o tema.

Conforme já publicado anteriormente neste mesmo trabalho, para citar um exemplo, as edições de 13 e 21 de maio de 1897 do jornal O Estado de S. Paulo e de 27 de junho do Correio Paulistano publicaram edital do governo do Estado de São Paulo abrindo concorrência para a introdução de 60 mil imigrantes com instruções bem objetivas: deveriam ser europeus, agricultores e ter família – sendo que, no caso dos casais “sem filhos ou enteados”, o marido não pode ter mais de 45 anos e a mulher mais de 40. Em todos os casos, um dos indivíduos da família deve estar apto para o trabalho.

O referido edital permitia que irmãos e cunhados com menos de 45 anos façam parte da família, “desde que justifiquem terem vivido sempre na companhia dos chefes das famílias”. Deixa ainda que pais, avós e sobrinhos órfãos estejam juntos dos chefes de família. No caso das mulheres casadas, deveriam comprovar que o marido já se encontrava trabalhando na lavoura. São aptos ao trabalho, acrescenta o edital, homens de 12 a 45 anos de idade, bem como mulheres de 15 a 40. “Os immigrantes que não forem considerados na condição acima não serão acceitos”, deixa claro o documento.

O professor Franklin Trein, ao comentar a posição ultraconservadora do presidente francês Nicolas Sarkozy – a França assumiria a presidência da União Europeia –, Franklin conclui: “Sobre a imigração, ele não é apenas contra a imigração ilegal, mas contra toda a imigração, quer se fechar aos imigrantes. É o retrato do espírito chauvinista europeu. Se um filho de imigrantes [húngaros], da primeira geração de imigrados, não se sensibiliza com o movimento migratório do século XXI, com fenômenos internacionais como a globalização que concentra riqueza, quem vai se importar?”

O mais curioso é que a família de Sarkozy, acrescentamos, não é apenas imigrante – na prática, é o que atualmente chamamos de refugiados – apesar de a convenção da ONU ser posterior ao ocorrido. Sua família pertencia à nobreza húngara, porém com o avanço das tropas soviéticas, em 1944, suas propriedades são expropriadas e a família Sarkozy, forçada ao exílio.2

É importante destacar que, mais uma vez, uma reportagem de destaque não reflete sobre a própria política migratória brasileira, ou sobre qualquer aspecto relacionado às questões atuais nacionais.

NOTAS

1 Hoje aposentado, segundo seu currículo lattes.

2 Um breve histórico de Pal Sarkozy pode ser acessado em http://www.voici.fr/bios-people/pal-sarkozy

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *