Um enfoque vergonhoso do debate migratório

Por Gustavo Barreto (*)

Este texto é do Coletivo de extensão universitária Educar para o Mundo; Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

O jornal O Estado de S. Paulo publicou hoje (26/8/2014, clique aqui) lamentável editorial sobre a situação dos imigrantes no Abrigo do Glicério, na cidade de São Paulo, sob o título: “Uma situação vergonhosa”. Apontando as graves condições em que tais pessoas se encontram, o jornal, ao expor sua visão sobre migração – aparentemente ancorada no pior do senso-comum – comete outras tantas violações de direitos humanos, desinformando e deseducando leitores com um texto caduco sobre essa complexa questão.

Dois problemas saltam à vista: a redução simplista da problemática à um disputismo entre PT e PSDB nas esferas municipal, estadual e federal; e a abordagem sobre migração que tende a uma solução não mais correspondente com a realidade do século XXI.

O governo do estado de São Paulo não está – e jamais poderia estar – sendo arrastado para um problema criado por “correligionários do prefeito Fernando Haddad”. Nem “correligionários”, nem prefeito da cidade teriam capacidade de criar tamanho problema, ou de resolvê-lo sozinhos. Tampouco poderia o estado de São Paulo passar ao largo da questão sem responsabilizar-se em parte pelo assunto.

Um rápido panorama ajuda a mostrar as nuances da questão migratória. A migração pode gerar problemas quando o Estado não possui políticas adequadas para tratar o fenômeno. As que o Brasil aplica, infelizmente, são caóticas. Temos um Estatuto do Estrangeiro da época da ditadura e que se pauta pela visão do imigrante como ameaça à “segurança nacional”. Hoje, tal Estatuto é em grande parte incompatível com a Constituição Federal de 1988 e com diversos tratados internacionais de direitos humanos assinados e ratificados pelo Brasil.

As lacunas e incompatibilidades da legislação são resolvidas por resoluções (não tem status de lei) do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), cuja política interna (Política Nacional de Imigração e Proteção Ao(a) Trabalhador(a) Migrante) é mais atualizada e orientada pela garantia dos direitos humanos. Porém, a atuação do órgão é altamente discricionária, e algumas das soluções encontradas – como a ação conjunta com o Conselho Nacional de Refugiados (CONARE) de aceitar pedidos de refúgio como forma de conceder carteiras de trabalho – estão distantes de serem as mais desejáveis, pois não resolvem o problema.

Assim, a conduta do país em relação à migração é um verdadeiro mosaico que se reflete nas atitudes descompassadas entre as unidades federativas, como o “governo petista” do Acre mandando para São Paulo os imigrantes que lá estavam. Frise-se: sem nenhum aviso prévio. Mais provável que a tese do complô petista arquitetado contra o estado de São Paulo levantada pelo jornal, o que existe é uma imensa desarticulação de posições dentro do Estado brasileiro.

Muito da negligência frente às condições de vida de significativa parcela da população migrante explica-se, em parte, pela ausência de direitos civis e políticos, especialmente o direito ao voto, situação vergonhosa se comparado a seus vizinhos latino-americanos, onde o direito a votar e ser votado é garantido em alguma instância governativa. Somam-se a isso atitudes desinformadas e preconceituosas que fazem da imigração um não-tema na política nacional.

A solução sugerida pelo editorial é a do fechamento das fronteiras, como fazem os “países prudentes”. É interessante ponderar sobre quais seriam os países a que o jornal se refere. Seriam aqueles que, ao dificultarem o ingresso, deixam que as pessoas padeçam em barcas a meio caminho do país? Os mesmos que, com políticas restritivas, incentivam o aparecimento de coiotes, rotas clandestinas e, quando da entrada no território nacional, deixam os imigrantes na marginalidade, expondo-os ao trabalho escravo e condições precárias?

Em pleno contexto de intensificação de fluxos migratórios, é lamentável a persistência da lógica de que as pessoas pararão de migrar e buscar melhores condições de vida caso o país de destino se negue a recebê-las. A realidade brasileira, e de muitos outros países, hoje nega essa possibilidade. Apesar das contradições de suas posturas quanto à imigração, da precariedade de condições da vinda e permanência no país, as pessoas ainda insistem em migrar.

Mais além: o próprio fenômeno migratório, a despeito de todas as catástrofes, crises ou desastres que o motivem é, em si, um direito que transcende todas essas adversidades, pois mesmo em um mundo livre de reveses as migrações seguiriam sendo legítimas. E é justamente dentro desse paradigma que nos salvamos da falsa noção de “imigrante ilegal”. Em outras palavras, o termo classifica equivocadamente a passagem de fronteiras como passível de sanção criminal. Assim, sendo a migração um direito, é dever do Estado “regularizar” o migrante, e não criminalizá-lo.

Portanto, a solução contemporânea não inclui mais o fechamento das fronteiras – tarefa, aliás, impossível e dispendiosa para um país das dimensões do Brasil, que as têm muitas vezes distantes e pouco povoadas. Também não inclui a restrição dos direitos garantidos aos imigrantes, o que só intensifica sua vulnerabilidade. A solução está na integração cultural, política e socioeconômica dessa população, assim como já se fez com inúmeras outras nacionalidades na própria história do Brasil.

Muito além da questão da mão-de-obra contribuir para o crescimento do país, não há razões para impor barreiras à influência cultural que os diversos povos proporcionam senão por um ufanismo ilusório, dado que o Brasil foi constituído por diversos povos. O reconhecimento e acolhimento de outras culturas é um passo importante na construção de uma identidade tolerante, sincrética e plural, especialmente no âmbito da América Latina e da integração regional.

A solução deve incluir, também, a aprovação da nova Lei de Migrações construída, com participação da sociedade civil, pela Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça que oferecerá o suporte jurídico para uma nova política nacional que respeite os direitos humanos dos imigrantes.

Nesse campo, as sugestões de uma política migratória mais progressista geralmente trazem à tona o mito da “invasão de estrangeiros”, o qual, porém, não se sustenta. Segundo as estimativas mais altas, o Brasil ainda continuaria a ser um país de emigração, e os imigrantes aqui instalados não ultrapassariam 0,5% da população nacional. Caem por terra as perspectivas de que o SUS e as escolas congestionariam ainda mais com a presença dos imigrantes (ver “Criação de lei de migrações é dívida histórica do Brasil”).

A restritividade da legislação migratória brasileira, combinada com a adoção de políticas desarticuladas agravam a situação atual. O cerne do problema é justamente a falta de uma política clara e coerente que dê conta da realidade. Para tanto, é necessária a articulação das diferentes esferas do poder – do âmbito municipal, estadual e federal – pois, sendo a imigração algo inerentemente transversal, nenhuma das partes pode se dar ao luxo de se eximir ou de tomar posições unilaterais sobre a garantia de efetivação dos direitos humanos dos migrantes.

O resultado da desarticulação são as situações degradantes como a que vemos no Glicério. Sem dúvida, a prefeitura tem a sua parcela de responsabilidade e deve esclarecimentos sobre as condições do abrigo e ao atraso na inauguração do Centro de Referência e Acolhida ao Migrante (CRAI-SP). Mas o governo estadual também tem sua responsabilidade – aliás, reconhecida oficialmente em maio deste ano na Conferência Nacional de Migrações e Refúgio (COMIGRAR) – já que a posição do Estado brasileiro como um todo deve ser de proteção ao migrante, e não dependente das visões subjetivas de um governo ou de outro. Antes de ser mera negligência do governo municipal, as atuais condições do abrigo são, na verdade, sintomas de um problema estrutural muito maior, a saber, a desigual delegação de competências entre os poderes federal, estadual, municipal.

Considerando tudo o que foi exposto, nada mais raso do que a opinião de que tentativas de integração dos imigrantes seriam “compaixão” ou mero jogo partidário, tal como sugerido pelo editorial. Longe de compaixão, caridade ou humanitarismo retórico, trata-se do dever estatal da garantia de direitos e da mudança da visão do imigrante como intruso ou ameaça à estabilidade do país. O imigrante é, sim, aquele que vem legitimamente buscar condições melhores de vida e que tem muito a contribuir na construção do país, de diferentes formas, inclusive culturalmente.

Vale ressaltar, contudo, que embora os compromissos assumidos pelo Brasil via tratados de direito humanos sejam uma responsabilidade essencialmente estatal, é inegável o papel central da gestão dos órgãos que o compõem para esse dever, uma vez que as políticas públicas voltadas a essa população, concretizadoras dos direitos expressos no papel, dependem da agenda e vontade política dos que administram o aparato público. Se houver vontade política, a situação atual pode se transformar numa oportunidade para mostrar que é viável e desejável uma nova forma de abordar a mobilidade humana no cenário internacional, gerando um paradigma que se contraponha à guinada xenófoba que alguns “governos prudentes” vêm realizando na Europa.

Coletivo de extensão universitária Educar para o Mundo
Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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