‘Para tornar o imigrante um novo cidadão do Brasil’, de modo a ‘evitar quistos raciais’

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da edição de 24 de outubro de 1949 do jornal O Globo

Trecho da edição de 24 de outubro de 1949 do jornal O Globo

Esta é uma das manchetes da edição de 24 de outubro de 1949 do jornal O Globo, publicada na página 4, abordando o funcionamento do “Serviço de informação e Auxílio ao Migrante”. O diário carioca informar que o Serviço está funcionando há cerca de um ano. Uma representante do Serviço, que é governamental, informa que o objetivo do órgão é a “assimilação do imigrante” e sua “integração no meio nacional”, bem como a “diluição de quistos raciais existentes e a prevenção de novos”.

O órgão também apoia o migrante nacional, informa a representante do governo que chefia o órgão, “tão necessitado desse auxílio quanto o imigrante estrangeiro”, uma vez que este “desconhece em geral completamente as condições da região para onde emigra”. Ela informou ainda ao jornal que a assimilação do imigrante é um “processo dinâmico”, tendo que ser “provocado como uma apresentação verdadeira, favorável mas real, do país em que vai viver”. A chefe do órgão diz ao jornal: “O imigrante precisa aprender a língua, a história e a geografia do novo país, para nele se ambientar. Precisa conviver com os nacionais para desse convívio, do homem com o meio, nascer a preferência que o levará a adotar a nova pátria”.

O Serviço também atua fora do país – em Stuttgart, informa a matéria – onde se desenvolvem as atividades da Comissão Brasileira de Seleção de Imigrantes. “Aí o trabalho se faz através do material de propaganda e de difusão cultural daqui enviado, cuidadosamente preparado e selecionado, como cartazes, livros, folhetos, discos fonográficos, fotografias, etc., distribuídos e exibidos nos campos de deslocados ou na própria sede da Comissão”, diz a funcionária do governo ao jornal.

Os resultados, ela afirma, têm sido “extraordinários”, com o trabalho constituindo “uma verdadeira revelação do Brasil aos imigrantes europeus, a maioria dos quais pouco ou nada conhece do nosso país”. Em um ano, relata o jornal, a sede do Serviço de informação e Auxílio ao Migrante atendeu cerca de 100 imigrantes, com atividades também na Ilha das Flores, a famosa e tradicional hospedaria de imigrantes da capital. Na sede os imigrantes possuem facilidades, diz o jornal, para hospedagem, hospitalização, viagens, obtenção de documentos, entre outros serviços.

A matéria não esconde seu viés pró-governo, afirmando em outro trecho que mesmo depois de encaminhado o imigrante, o Serviço “continua a interessar-se por ele [imigrante], através de organizações locais de beneficência, subvencionadas pelo Governo, as quais, em sua maioria, mostram a maior boa vontade em prestar ao imigrante o auxílio de que acaso necessitar”.

Uma vez hospedados na Ilha das Flores, acrescenta a matéria – que poderia ser confundida com um folheto informativo do governo –, os imigrantes contam com um Centro de Recepção na própria hospedaria, “de linhas modernas, construído com bom gosto” e um “ambiente agradável de conforto”, com “todos os serviços a que se destina” e “havendo mesmo um balcão com detalhado fichário sobre as condições econômicas de várias regiões do país”.

Não é à toa que no século 21 poucas pessoas conhecem a expressão “quisto racial”, que era contudo muito comum na maioria dos textos sobre o tema. O dicionário Michaelis possui diversos significados para a palavra “quisto”, isoladamente, a maior parte ligada às áreas da biologia e da medicina. A definição médica que aparece primeiro define quisto como uma “vesícula fechada que se desenvolve no tecido de um órgão, em uma cavidade natural do corpo ou em uma estrutura anormal e contém matéria mórbida fluida ou semifluida”.

Duas definições da zoologia definem quisto como uma “cápsula ou coberta resistente ao redor de um parasito interno, especialmente a desenvolvida por tênias larvais, que vivem nos tecidos de certos animais, ou uma tênia larval com tal cápsula”, ou ainda “saco ou cápsula produzidos por um animal, como os que muitos protozoários e outros animais diminutos segregam ao redor de si mesmos”. Dessa origem biológica vem a definição ainda presente no mesmo dicionário da expressão quisto racial: “colônia de imigrantes que, por suas ideias e costumes, ameaça a segurança do país onde trabalha”1.

NOTA

1 A definição está disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=quisto. É curioso que esta definição, quase que totalmente obsoleta, ainda esteja em um dicionário, porém a confusão em torno do tema também foi dicionarizada, pois mais do que a segurança, os chamados quistos raciais ameaçavam a própria identidade nacional, conforme descrito fartamente neste trabalho.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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