Lacerda ataca política migratória do governo: ‘Asnos racistas, totalitários’
Ao seu melhor estilo agressivo e ao mesmo tempo irônico, o jornalista e político Carlos Lacerda publica na edição dominical do Correio da Manhã de 20 de fevereiro de 19491, em sua então coluna “Na Tribuna da Imprensa” – e que posteriormente viria a se transformar no famoso jornal carioca – um ataque contra o projeto de lei sobre imigração.
Intitulada “História em quadrinhos”, o editorial, publicado na segunda página em destaque, afirma logo nas primeiras linhas: “Alertada que está a opinião pública, e com ela o Senado, sóbre o projeto de lei de imigração perfeitamente idiota que lhe enviaram da Câmara, onde ela foi votada sem que as pessoas percebessem o que se estava passando, convém agora dar, em poucos números, idéia exata do que houve no Brasil em matéria de imigração”.
Para Lacerda, o projeto é “eminentemente centralizador” e pretere os Estados em favor da União. Ele considera o projeto “um êrro que se começou a cometer após a revolução de 30, e se acentuou com o Estado Novo”, contrariando “a melhor tradição brasileira em matéria de imigração”. Para afirmar sua posição, o jornalista expõe números2 que apresenta como “uma verdadeira história em quadrinhos, para ilustração dos membros do Congresso que terão de discutir e decidir sôbre uma lei – afinal! – de imigração para o país”.
Afirma Lacerda que, de 1916 e 1930, entraram no país pouco mais de 1 milhão de imigrantes – ou exatos 1.026.590. Já entre 1930 e 1945, entraram pouco mais de 300 mil – no total, 304.099, segundo o jornalista. Os motivos, diz, seriam três: a guerra; o racismo “aqui e lá fora”; e a “burrice”. Segundo ele, a guerra não é o fator mais importante para a “espantosa” diminuição – pelo contrário, diz. De 1916 a 1918, afirma, durante os últimos anos da primeira guerra mundial e de um contexto geopolítico que afetou o tráfego marítimo e as possibilidades de imigração, teriam entrado no Brasil pouco mais de 81 mil imigrantes. De 1943 a 1945, no entanto, entraram apenas pouco mais de 6 mil estrangeiros imigrando para o país.
Lacerda, que publica um quadro comparativo entre os 3 anos de um e de outro período, continua a argumentar que o cenário era parecido nos anos pós-guerra. Aponta, por um lado, para o grande afluxo de imigrantes nos anos 1920, enquanto que, em 1931, “já sob o regime da centralização, dos monopólios burocráticos da União” e do que classificou como “um casamento entre a burocracia e o nacionalismo marca barbante”3, o número caiu drasticamente, para menos da metade, caindo ainda mais a partir de 1935, quando – sempre segundo o editorial – teve início a “degringolada da imigração, com a acentuação do centralismo que iria desembocar no Estado Novo”. Em seguida, Lacerda publica mais um “quadrinho”, justificando o título jocoso do editorial.
Com os dados em queda, Lacerda ataca: “É isso o que pretende o govêrno, com o seu asnático4 projeto, que mantém tôdas as asnices anteriores, para continuar as asneiras dos asnos racistas, totalitários e sobretudo asininos5, que puseram a perder a imigração de que êste país necessita desesperadamente?” Lacerda sugere, então, que “varram resolutamente os racistas e superburocratas da imigração”, formulando uma lei simples e clara, de estímulo e não de empecilho à imigração, incitando o Itamaraty a “ativar os acordos de imigração com a Itália, a Holanda, etc”.
Por meio do editorial, o jornalista pede ainda que seja modificada a “política de panos quentes” em relação ao governo de Salazar, em Portugal, “exigindo que esse govêrno dê ao menos reciprocidade no bom tratamento que o Brasil, de bom grado, concede a Portugal e aos portuguêses”. Ele sugere inclusive um boicote comercial a Portugal até que Salazar “concorde em reabrir as correntes de imigração portuguêsa, que êle fechou na cara do Brasil desde que resolveu trancar os portuguêses no paraíso particular que lhes preparou e cuja chave está no seu bolso”.
Lacerda ataca ainda mais agressivamente: em 15 anos de República, sem maiores esforços e sem uma organização efetiva das correntes migratórias, chegaram 1 milhão de imigrantes. Em quinze anos de “getolíce”, com “pomposos departamentos, carimbos a mancheias6, um mulato racista à frente da imigração, e outros ingredientes, recebeu o país 300 mil”. Os dados, conclui, constituem “o mais expressivo exemplo, a advertência mais eloquente, à consideração dos senadores”.
Apesar de atacar o “racismo” do governo, o autor do editorial não explicita qual a proposta que apoia, limitando suas propostas a generalizações e referências apenas aos imigrantes europeus.
Lacerda seria afastado neste mesmo ano, fundando em dezembro o jornal Tribuna da Imprensa.
NOTAS
1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_05&pagfis=45908&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#
2 Lacerda cita a origem dos dados: página 80 do volume VIII do Anuário Estatístico do Brasil.
3 Expressão de época que designa um produto de qualidade inferior, veja por exemplo a explicação em http://bit.ly/Snf7DZ
4 Referente a ou próprio de asno; tolo; estúpido.
5 Na zoologia, os asininos são mamíferos da família dos equídeos – os burros, os jumentos, os mulos. Utilizada em seu modo pejorativo, significa estúpido, bronco, desprovido de inteligência.
6 Em grande quantidade, abundantemente.
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Fiquei com dúvida quanto a reais intenção dessa matériado “midiacidade”, seu título e a forma de escrita do texto quase sugere uma posição antiracista de Lacerda, enquanto que é sábido de todos que ele queria higienizar o Brasil da população negra que a ele era uma população imoral, de baixas qualidades intelectuais e etc…. Logo, sinto como se o presente texto estivesse encobrindo a real face da matéria de Lacerda, aque sabemo um racista higienista da pior espécie.