IN-CONCLUSÕES: ENTRE OS DETERMINISMOS TECNOLÓGICOS E AS TECNOFOBIAS

Por Gustavo Barreto (*)

Povo, depois de dois anos, esta é a conclusão da minha dissertação de mestrado, que apresentarei nesta terça-feira, dia 12 de abril, às 13h30, na pós da Escola de Comunicação da UFRJ. Apesar das menções a capítulos que não estão disponíveis (ainda), a leitura não sofreu maiores cortes no que diz respeito aos argumentos mais fundamentais.

O título é meio estranho, como todos os títulos acadêmicos ;) – "REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA E REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA: Meios de Comunicação, Sociedade em Rede e Cidadania Global".

Faço o convite oficial: lá na ECO-UFRJ (ainda não sei a sala), mas é na pós-graduação, no Palácio Universitário, às 13h30 em ponto da terça 12.

Abraços,

Gustavo

 

IN-CONCLUSÕES: ENTRE OS DETERMINISMOS TECNOLÓGICOS E AS TECNOFOBIAS

Em um momento histórico em que a cultura digital está tão amplamente difundida, estudos deste campo possuem uma curiosa peculiaridade: ao mesmo tempo em que seria possível observar o objeto de estudo em tempo real, a dinâmica de compartilhamento de informação verificada na própria cultura digital contemporânea é uma prática cultural de seus pesquisadores.

 

Do ponto de vista metodológico, pelo menos um problema pode ser observado. Até que ponto a excessiva familiaridade com as ferramentas da cultura digital contemporânea não poderiam influenciar o olhar do pesquisador, que deveria ampliar seu ponto de vista e agregar outras visões de mundo sobre o mesmo tema? Se for verdade que está em curso uma mudança de paradigma no campo da comunicação no que diz respeito a suas formas, hábitos e protocolos, inclusive o campo acadêmico, até que ponto a pesquisa também não será influenciada pela nova dinâmica processual instalada no seio da sociedade dita pós moderna? A ausência de distanciamento crítico não poderia minar os esforços de conduzir uma pesquisa acadêmica ampla, do ponto de vista conceitual?

 

O mesmo podemos indagar sobre os estudos acerca da noção de cidadania. Conceito em intensa ressignificação, a cidadania contemporânea possui muitas facetas: global, sociopolítica, cultural, histórica. Com novos atores sociais cada vez mais articulados globalmente – empresas, movimentos sociais e outros grupos dos mais distintos –, a noção moderna de cidadania está sendo, antes mesmo de redefinida, posta à prova. Isto ocorre pelo fato de que os direitos humanos foram pensados desde o princípio a partir de seu caráter universalista – ou seja, aplicáveis por toda a parte. Também são naturais – ou seja, inerente a todos os seres humanos. O são por fim iguais – os mesmos para todos.

 

Os conceitos sobre os direitos humanos foram formulados enquanto ideais. Era porque faltavam – principalmente após a Segunda Guerra Mundial, momento em que ganharam grande força – que precisavam ser colocados urgentemente em prática. Mas o que sobressai nestes ideais é, justamente, seu caráter global. Suas três principais características remetem, inequivocamente, a um ideal planetário que começava a tomar forma.

 

Não por coincidência, este mesmo clima utópico e, principalmente, preventivo – como evitar a barbárie? – faria parte do imaginário dos primeiros pensadores do campo da comunicação. Entre eles, os matemáticos Norbert Wiener e Alan Turing, envolvidos em alguns dos primeiros experimentos no campo da informática. Muitos deles – sobretudo Wiener – foram responsáveis pelas primeiras práticas que promoviam a comunicação enquanto centro de uma sociedade democrática e livre.

 

A comunicação da qual falavam estes autores era certamente dúbia: ao mesmo tempo em que era fruto de uma utopia, conforme detalhamos no capítulo três, possuía um caráter extremamente instrumental. A lógica matemática, racional e iluminista serviria de base para a organização do mundo por meio da comunicação. A gigante norte-americana Google se destacaria, décadas depois, ao utilizar algoritmos codificados para organizar qualquer tipo de informação – desde reportagens jornalísticas até anúncios publicitários, passando por correios eletrônicos e mapas geográficos de países, cidades, ruas.

 

Por outro lado, a própria sociedade se midiatizou. Não só os avanços tecnológicos produziram dinâmicas específicas de interação social, como também – e principalmente – as próprias dinâmicas culturais e sociais se tornaram midiáticas. Isto implica em observar mudanças nos hábitos populares, nas disputas políticas, nos rituais públicos, nas artes. Em suma, uma mudança na esfera pública tanto em termos de representação midiática quanto em termos de representatividade política. O próprio conceito de rede adquiriu um novo verniz nos séculos XX e XXI. Em geral imaginada em seu caráter religioso, a noção de rede foi ressignificada e adquiriu um caráter fortemente tecnológico, no século XX, e notadamente social, no século seguinte.

 

6.1 História e atualidade de conceitos em construção

 

Os caminhos dos conceitos que investigamos, mais do que globais, possuem características expressamente históricas. Cidadania, comunicação, mídia, política, rede. Estes e outros termos observados durante este trabalho possuem essa semelhança: sua profunda transformação durante os diversos momentos, indicando que a dinâmica cultural e social influenciou decisivamente os processos discutidos aqui. O que Norberto Bobbio relatou sobre os direitos humanos, direitos históricos, se mostrou útil na avaliação dos outros conceitos encadeados – nasceram em certas circunstâncias, de modo gradual, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, “não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.

 

A concepção contemporânea das redes – abertas, livres e compartilhadas – não poderá ser fixada a partir de sua arquitetura originária, tampouco poderá ser facilmente minada por ranços autoritários. É sobretudo sua História – política, social, técnica e cultural – que mantem sua estrutura razoavelmente democrática. No caso da Internet, antes de imaginarmos uma “arquitetura” por trás da liberdade da rede, devemos ressaltar que os grupos de administração da web são autogestionados, de estrutura aberta e conscientes do debate acerca de temas como democracia e liberdade.

 

Para além da transformação do público passivo (idealizado por autores modernos) em um público ativo e participativo (idealizado pelos autores pós modernos), uma outra transformação se delineou sensivelmente. A discussão sobre esfera pública, que possui muitas facetas, se tornou em parte um debate sobre o que deveria ser público e o que deveria ser privado. Antes, reconfigurou a própria noção de público e privado. A publicidade enquanto fator de ampliação da cidadania, desde as tábuas de madeiras brancas que davam visibilidade aos candidatos a cargos públicos na Roma antiga até as promessas contemporâneas de austeridade por meio da transparência dos atos de governos e empresas, foi sensivelmente remodelada pelas novas tecnologias e, antes mesmo do aparato tecnológico, pelo desejo de cidadãos em todo o mundo de compartilhar e receber informações que julgam de seus interesses.

 

Este é um debate que está no cerne da questão comunicacional. Os casos WikiLeaks e The Pirate Bay sugerem que tanto o aparato jurídico (as leis que deveriam planar sobre a sociedade e referenciá-la) quanto o aparato político-institucional (o Estado a executar com justiça e austeridade estas leis) não acompanham as transformações culturais e sociais da multidão. A troca de informações livre e aberta, utopia original de Norbert Wiener e outros, produziu resultados concretos, sem beneficiar entretanto todos os setores da sociedade. E sobre este último aspecto, deveria haver uma preocupação mais lúcida, para além dos determinismos tecnológicos (por um lado) e das tecnofobias (por outro lado).

 

A partir da história da tecnologia aqui comentada, observamos que são os usuários os principais produtores de inovação, em um sentido mais amplo. São eles fundamentalmente que determinam as tecnologias aos valores de suas sociedades, a partir de disputas e consensos que se dão por meio da política e da cultura. Da política, por envolver atores sociais que imprimem nas máquinas suas ideologias ao longo da História, gradualmente. Da cultura, porque são os cidadãos – usuários ou não – que moldam as técnicas, a partir de seus valores e usos cotidianos.

 

6.2 A rede e a agenda pública

 

Outro debate importante diz respeito à opinião pública. Nos Estados Unidos, o estudo mais recente do Pew Research Center – instituto que realiza investigações sistemáticas sobre a influências das diversas mídias no cotidiano dos norte-americanos – indica que a Internet está tomando lentamente e progressivamente o lugar da televisão como fonte principal de notícias nacionais e internacionais. 41% dos norte-americanos dizem ter na Internet sua fonte principal de informações, um aumento de 17% desde 2007. A televisão continua como a principal fonte, em relação ao conjunto da população deste país, mas o índice de 82% de pessoas que afirmavam tê-la como principal fonte de notícias caiu para 74% em 2007 e 66% em 2010.

 

Mais importante ainda é notar que o mesmo estudo indica em 2010, pela primeira vez na história, a Internet superou a TV enquanto principal fonte de informação em relação aos norte-americanos com menos de 30 anos. De 2007 a 2010, o número de pessoas entre 18 e 29 anos com esse perfil quase dobrou (34% para 65%), enquanto a televisão caiu de 68% para 52%. Dados em perspectiva apontam para um cenário parecido, nos próximos anos, para os norte-americanos entre 30% e 49%1.

 

Por outro lado, uma pesquisa realizada para o Serviço Mundial da BBC em 26 países apontou que 71% dos entrevistados no Brasil dizem que “poderiam viver sem a internet”, um índice menor apenas que o de filipinos e paquistaneses (79% ambos). Segundo a sondagem, 50% dos brasileiros acham que o aspecto mais valioso da Internet é o acesso a todo tipo de informação, enquanto o segundo aspecto mais valorizado é a “possibilidade de comunicação com outras pessoas” (opinião de 32% dos entrevistados). Enquanto a média mundial de entusiastas de redes sociais como Facebook e Orkut é de 51%, no Brasil as pessoas que admitiram dedicar parte de seu tempo a elas sobe para 60%. A maior preocupação dos brasileiros com a rede era a “possibilidade de se deparar com conteúdo violento e explícito”, indica a pesquisa, realizada pelo instituto internacional GlobeScan para a BBC2.

 

Observamos ainda que, tanto em relação à Internet quanto em relação a outros meios (rádio, tevê e jornal), o que é pautado não é propriamente o pensamento das pessoas, e sim a agenda pública. Seja qual for o referencial conceitual para o início de um debate sobre o tema, é preciso registrar a obsolescência da metodologia que considera o público como meramente passivo. Isto implicaria na conclusão equivocada de que a agenda pública corresponde necessariamente ao pensamento do público.

 

Outro equívoco metodológico comum diz respeito à utilização de conceitos não acompanhados do necessário senso crítico para avaliar o próprio conceito. O mesmo Pew Research Center divulgou um outro estudo no começo de 2010 analisando o conteúdo produzido por 53 publicações em Baltimore, Estado de Maryland, nos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, 96% das informações novas (nunca noticiadas até então) surgiam em meios tradicionais (jornais, revistas, TV, rádio) e apontava que as novas mídias não colaboraram para a disseminação das tais informações. A pesquisa apontou ainda que 17% das reportagens em todos os meios têm conteúdo novo, enquanto o restante é “essencialmente repetitivo, não trazendo nenhuma informação exclusiva”. E que são, portanto, as reportagens inovadoras “que tendem a determinar a agenda de relatos por parte da maioria dos outros veículos”3.

 

Conforme questionamos no capítulo quatro, até que ponto as “informações novas” são efetivamente as “melhores”? O que é uma informação boa, e para quem? Residiria na novidade a qualidade da informação? Quem são as pessoas aptas a interpretar as informações de modo a respaldá-las enquanto importantes ou descartá-las na qualidade de fúteis? Para um debate mais lúcido sobre a Internet, este tipo de indagação é secundária, pois a Internet enquanto meio desestrutura a própria concepção moderna da mediação. Seja em termos de representatividade política – no que diz respeito à participação na vida pública, por exemplo –, seja em termos de representação midiática – na transformação do cidadão de consumidor de informações a produtor de sentido e de informação. Parece ser mais importante a própria transformação do conceito de esfera pública – que se perguntaria nesse caso “Quem é autêntico para expressar informações confiáveis e importantes?” – do que propriamente as questões de cunho universalista – que teria como questão algo como “O que é importante para todos?”.

 

Sendo as redes de informação contemporâneas – com notável destaque para a Internet – um meio ainda pouco estudado no Brasil e, sobretudo, investigado em grande parte a partir de disciplinas estanques que não dialogam, a própria percepção do público (e do que é o público) fica comprometida, o que torna em parte perigosa a metodologia que toma indícios como resultados práticos. A autorreferência hermética observada em algumas dinâmicas online demonstra como a rede pode ser utilizada também para o fechamento ao diálogo multicultural. Se é verdade que a rede é aberta, livre e compartilhada, seus usos podem ser paradoxalmente não-abertos, não-livres e não-compartilhados. Faz parte da própria dinâmica da web a sua inerente liberdade negativa – a liberdade que pressupõe a supressão de qualquer tipo de coerção, como a liberdade de expressão, aparada juridicamente apenas pela liberdade positiva, que é a coerção em nome de um objetivo superior, coletivo, a lei acima dos homens, o Leviatã de Hobbes. As guerras – que sustentaram boa parte do desenvolvimento tecnológico global – são o exemplo mais bem acabado destes usos pouco populares e humanistas da tecnologia.

 

Por outro lado, conforme destacamos neste trabalho, em nome de muitas liberdades é que se sustentaram e se sustentam as dinâmicas mais importantes da atual rede mundial de computadores – o compartilhamento de conhecimento científico, o desejo por um mundo mais justo, a luta contra arbitrariedades políticas, a democratização dos processos de troca de informação, a austeridade político-institucional etc. A própria arquitetura da web é fruto de um embate entre o discurso da propriedade, do fechamento e da guerra e o discurso da liberdade, do diálogo e do entendimento entre os povos.

 

A ressignificação cultural permitida pela denominada sociedade do conhecimento produziu não só a democratização parcial das informações (no seu sentido instrumental), mas igualmente a democratização parcial dos próprios conceitos em jogo. A concepção de termos como cidadania, global ou conhecimento varia de sociedade para sociedade e depende de uma intensa negociação entre atores sociais dos mais diversos (alguns analisados neste trabalho). Gerar conhecimento sobre estas dinâmicas deve se resguardar de análises do tipo elitistas (que concluem estarmos na era da ditadura da audiência), ao mesmo tempo em que resiste às avaliações do tipo aldeia global, supostamente fomentada pelas tecnologias de informação e comunicação, ignorando que a dinâmica social não admite padrões fechados. Trata-se, antes, de garantir a própria liberdade de negociar e disputar projetos de sociedade.

 

Enquanto meio, a Internet se distingue neste determinado momento histórico pela sua potencialidade social. Poderá, em sua forma gramatical futuro do presente. É bem vinda (com restrições) para a maior parte da população. Mas seus usos são tão distintos que deve ser vista com cautela (mas não medo). Revelou-se insuficiente para a realização plena da cidadania, nos termos estudados no capítulo dois. Alguns de seus usos podem ser de grande valia para o desenvolvimento de projetos políticos consistentes, coerentes e preocupados com o diálogo aberto e humanista – como o descrito no capítulo cinco.

 

Na atual dinâmica da sociedade do conhecimento, conforme tentamos demonstrar, é deveras arriscado separar os dois conceitos que estão em jogo – sociedade e conhecimento. Promover esse diálogo foi um de nossos objetivos neste trabalho, que após aprovado poderá se abrir às ideias em rede, de modo a ser democratizado e renegociado.

 

1Internet Gains on Television as Public's Main News Source. The Pew Research Center for the People & the Press, 04 jan. 2011. Disponível em http://people-press.org/report/689/. Acesso em: 11 fev. 2011.

2Foram entrevistados 27.973 adultos de 26 países, em novembro de 2009 e fevereiro de 2010. Dos que responderam às perguntas, 14.306 se declararam usuários da Internet. Vide "Brasileiros estão entre os que menos julgam internet vital, diz pesquisa". BBC Brasil, Brasília, 8 mar. 2010. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100307_pesquisabbc_brasilml.shtml. Acesso em: 11 fev. 2011.

3Jornais são referência em conteúdo inovador, diz estudo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 jan. 2010. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1201201016.htm. Acesso em: 11 fev. 2011.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

2 pitacos sobre “IN-CONCLUSÕES: ENTRE OS DETERMINISMOS TECNOLÓGICOS E AS TECNOFOBIAS

  1. Excelente, Gustavo…como sempre.
    Acho que conseguiu tocar em todos os pontos relevantes. A questão que eu coloco é como vão ser as coisas no futuro? Pois, os mecanismos para controlar a Internet já estão em curso…

  2. Aí Cabeção! PARABÉNS!
    O importante é fazer valer sempre princípios fundamentais para
    as sociedades democráticas: a liberdade de pensamento e de expressão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *