‘A Ilha das Flôres praticamente deserta’: uma reportagem de 1956 sobre a famosa hospedaria carioca de imigrantes

Por Gustavo Barreto (*)
Reportagem no A Noite de 26 de abril de 1956.

Reportagem no A Noite de 26 de abril de 1956.

Uma reportagem especial do jornal A Noite de 26 de abril de 19561, assinada por Everaldo de Barros com fotos de Mario Sampaio, destaca o esvaziamento da hospedaria da Ilha das Flores, o famoso centro de recepção de imigrantes durante boa parte da História do Brasil, localizado no Rio de Janeiro. “Estão tristes os 61 funcionários do Instituto Nacional de Imigração e Colonização [INIC] lotados na Hospedaria das Flores. Desolados, macambuzios mesmo porque, o verdejante e acolhedor paraiso situado no outro lado da Guanabara está quase que completamente vazio, habitado, apenas, por êles e mais 44 imigrantes, todos, entretanto, já com seus papéis devidamente desembaraçados, empregos arranjados e data marcada para retirada da Ilha”, inicia a matéria.

Em tom fúnebre, o jornalista completa: “Dentro de poucos dias, ali não mais restarão senão, vazios, os vastos e bem cuidados alojamentos; a desolação do enorme refeitório do SAPS (um dos maiores do Brasil), os aprazíveis canteiros, sem crianças na grama e as enfermeiras brancas2 do grande hospital”. O jornalista relata que a situação da hospedaria está “amargurando” a vida dos profissionais que ali atuavam e que “fizeram do trabalho na Ilha das Flores uma espécie de profissão de fé, e não um simples meio de ganhar a vida”.

O jornalista vê uma esperança: a de que o Comitê Intergovernamental para Migrações Europeias – do qual o Brasil, informa o jornal, é um dos 24 membros – intensifique a imigração “de que tanto necessitamos” e, assim, a “aprazível ilha volte a viver os dias brilhantes que teve, logo após o término da última conflagração mundial”.

A matéria conta a história de personagens como Demetrius, cidadão nascido na ilha grega de Rodes, filho de pai italiano e mãe alemã, e que acumula no INIC as funções de intérprete – “fala 11 línguas e escreve em 7” – e encarregado dos imigrantes. Conta a reportagem que Demetrius tinha três irmãos, um deles morto no dia da invasão da ilha pelos alemães. Um dos seus irmãos resolveu organizar a resistência antinazista para vingar o assassinato. À época, conta o jornal, Demetrius tinha apenas 15 anos de idade. Ele acabou sendo capturado e viu o espancamento de sua mãe pelos nazistas. Ele e um outro menino conseguiram escapar, no entanto, fugindo para a Turquia, tendo de remar por mais de 20 horas. Para piorar sua situação, ambos foram detidos em um “infecto xadrez” porque “os turcos, não acreditando na façanha por eles realizada, julgava-os como espiões”.

A história de Demetrius contada ao jornalista do A Noite é mesmo impressionante: após conseguir fazer chegar às mãos do cônsul de seu país na Turquia um bilhete, alguns dias depois, ele conseguiu seguir viagem para o Cairo, onde ingressou na Real Força Aérea (RAF), do Reino Unido, uma das mais importantes à época. Não só ele como seu amigo, identificado na matéria como sendo beduíno, se tornaram pilotos de caça após 14 meses de “treinamento intenso”. Conta ainda a reportagem que, dos 33 diplomados com Demetrius, todos foram abatidos pelo inimigo, no período de apenas um ano. Ele se tornara, então, capitão.

Após a guerra Demetrius foi estudar na Inglaterra, mas o desejo de ajudar seus conterrâneos o fez voltar para a Grécia, onde cursou, na universidade, línguas, economia política e técnica de imigração. Chegou ao Brasil em 1949, registra o A Noite, e se casou com uma brasileira, abdicando de sua nacionalidade e de seu título na RAF e se naturalizando brasileiro. Ingressou no INIC por concurso.

No Brasil, chegou a elaborar um plano de ação sobre o tema, o MOPC – sigla para Mão de Obra Pré-Colocada”, que segundo o registro do jornalista é “a resultante de anos de observações feitas por êle em países da Europa Central e do Mediterrâneo, donde nos vem o maior número de imigrantes”. O plano é resumido pelo jornalista do A Noite da seguinte forma: “(…) um empregador necessitando de técnico especializado ou de lavradores, procura o Instituto e diz das suas pretensões. O funcionário enche um formulário e remete uma via para o nosso consulado ou embaixada, no país onde reside o homem procurado, onde é entrevistado e, se corresponder às exigências do seu futuro patrão, será aceito. Daí pra frente tôdas as despesas com o imigrante, (transporte, papéis, etc.), serão feitas pelo empregador que as descontará do salário do seu novo empregado”.

Evidentemente que a proposta não é nada mirabolante, de acordo com o relato, mas o próprio jornalista se justifica: “A coisa é mais complexa e tem bases sólidas. Não posso, entretanto, numa reportagem deste tipo, entrar em maiores detalhes”. E acrescenta: “(…) aprovado o MOPC de Demetrius, lucraremos não só na seleção do imigrante, como também faremos grandes economias”.

Os tão falados coreanos”

O jornalista registra que, após sua visita à hospedaria, chegou à conclusão que o “melhor tipo de imigrante” que por ali passou foi o “representado pelos tão falados coreanos”. Quase todos de “instrução secundária ou superior”, eles são – diz o texto – “de um caráter digno de elogios e mantêm, bem alto, o amor próprio”, segundo informou à reportagem a supervisora do Serviço Social que o SESI mantinha na Ilha – a senhora Inatá de Morais. “Durante o tempo que ali estiveram jamais aceitaram dinheiro ou favores outros de quem quer que seja”, registrou o jornal.

A reportagem exemplifica a impressão com o caso de um coreano de 23 anos que desejava se ordenar sacerdote no Seminário Presbiteriano Geral do Rio e que “de modo algum queria aceitar o ensino gratuito” porque “os estudos teriam de ser por êle custeados com trabalho fora do Seminário”.

O então administrador da Ilha das Flores acrescenta, citado pela reportagem: “Já com o grego não acontece o mesmo. Êles aqui chegam, gostam do passado, das instalações e do clima da Ilha, e é um custo danado para botá-los no trabalho”. O administrador identificado como Sr. Gouvêa completa: “A luta do Demetrius com êles é tremenda. Este moço que tem verdadeiro amor pela sua pátria de adoção não admite tais molezas. Ainda há poucos dias êle se desdobrou para realocar uma turma que o INIC havia colocado no Alto Paraná, e abandonara o emprêgo para vir aqui ”veranear””.

Entre os serviços disponíveis na Ilha, informa o diário, estão aulas de português; conferências sobre assuntos brasileiros em geral e sobre o Estado de destino do imigrante; festas em datas nacionais (brasileiras); correios; disponibilização de roupas para recém-nascidos; além de uma biblioteca “composta, na maioria, de livros didáticos, em várias línguas com traduções em português”. Entre as poucas reclamações, registra a reportagem, um aparelho de raio-X quebrado e “aquela dos funcionários que não se conformam com refeitórios separados no restaurante do SAPS”.

A segunda reclamação, informa a reportagem, possui um registro interessante da hospedaria: “Julgam que a separação [no refeitório] pode causar mal-estar aos imigrantes e não corresponde a estes versos de Olavo Bilac, à entrada do Serviço Social, que é traduzido para todo imigrante no dia imediato ao da sua chegada (…)”.

Olavo Bilac servia de inspiração para a boa recepção dos imigrantes. Trecho de reportagem no A Noite de 26 de abril de 1956.

Olavo Bilac servia de inspiração para a boa recepção dos imigrantes. Trecho de reportagem no A Noite de 26 de abril de 1956.

O verso é o seguinte:

“Pára! Uma terra nova a teu olhar fulgura!

Detém-te . Aqui de encontro a verdejantes plagas

Em caricias se muda a inclemência das vagas…

Este é o reino da Luz, do Amor e da Fartura.”

E o repórter completa: “Verdades incontestes ao que se refere á aprazivel, acolhedora e atualmente quase deserta Ilha das Flores”.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=348970_05&pagfis=35930&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Referência aos uniformes brancos utilizados pelas profissionais da enfermagem.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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