‘O fiscal do trabalho que atuou no caso relatou que o alojamento deles lembrava uma senzala’

Por Gustavo Barreto (*)

Matéria dominical do jornal O Globo expõe violações dos direitos dos imigrantes africanos e haitianos por empresários brasileiros.

Matéria no jornal O Globo, 17 de agosto de 2014

Matéria no jornal O Globo, 17 de agosto de 2014

Matéria dominical do jornal O Globo da edição de 17 de agosto de 20141 afirma, em sua manchete, que imigrantes africanos e haitianos estão sendo “explorados em carvoarias e frigoríficos”, estimando que, até o fim do ano, haverá cerca de 50 mil cidadãos do Haiti no Brasil.

O personagem principal é um imigrante haitiano que chegou ao país para trabalhar em uma carvoaria em Maringá, no interior do Paraná. Seu trabalho: “corta madeira, abastece fornos que produzem carvão vegetal e ensaca o produto que será enviado a centros urbanos do país”. A matéria completa, logo no primeiro parágrafo: “Ele não se senta um minuto. Emagreceu tanto que está abaixo do peso”. Segundo o jornal, ele sequer tem dinheiro para ligar para a família.

A reportagem aponta violações de direitos humanos dos imigrantes: “A 230 quilômetros da carvoaria, num frigorífico em Cascavel (PR), 380 migrantes haitianos fazem, cada um, cerca de 90 movimentos por minuto para desossar frangos e pendurar galinhas. Por um salário mensal de cerca de R$ 1 mil, suportam a rotina de oito horas e 48 minutos diários sob um frio de nove graus, temperatura abaixo do limite de 12 graus estabelecido pelo Ministério do Trabalho”.

“Trabalho degradante, insalubre e de baixa remuneração em empresas de setores que, frenquentemente, figuram na lista suja do trabalho escravo têm sido o destino final de haitianos e africanos que enfrentam uma travessia dispendiosa e arriscada, muitas vezes patrocinadas por coiotes, para chegar ao Brasil”, completa a matéria, que relata diversas outras violações, como o não pagamento de horas extras, a negação do direito à saúde e falsas promessas feitas aos trabalhadores estrangeiros quando ainda estão no Acre, de onde a maior parte chega vindo do Peru.

No começo de 2014, continua a matéria d’O Globo, haitianos participaram de uma greve em um frigorífico de Maringá. Exigiam aumento, pagamento de horas extras e fim da jornada aos sábados. Suas reivindicações foram atendidas pelo empresário, diz o diário carioca, “diante da ameaça de pedidos de demissão em massa”. E conclui: “Haitianos e africanos se tornaram hoje peças fundamentais para a produção avícola do país”.

Segundo um empresário ouvido pela reportagem, a oferta de trabalho é grande e não há mão de obra para suprir as necessidades dos empresários. “O próprio governo sentiu isso e abriu as portas para esses imigrantes. Sem eles, o país não cresceria o que deveria”, opina o empresário ouvido na matéria, que registro, em um dos subtítulos: “Haitiano custa menos do que chinês”. O dado é citado em um estudo feito pelo economista britânico Paul Collier para as Nações Unidas, referente ao ano de 2009.

As violações também se reproduzem em outro setor, a construção civil, com empreiteiras sendo constituídas apenas para contratar esses imigrantes. Entre outras violações, os imigrantes da construção civil estariam cumprindo jornadas de trabalho acima do limite estabelecido por lei e recebendo abaixo do piso, sem direitos. Foi o que aconteceu em Conceição do Mato Dentro (MG), relata o diário, onde cem haitianos trabalhavam na construção de um mineroduto da empresa Anglo American. “O fiscal do trabalho que atuou no caso relatou que o alojamento deles lembrava uma senzala”, cita a reportagem. “A comida fornecida era de baixa qualidade, o que teria provocado hemorragias estomacais.”

Em Cascavel, os imigrantes reagiram, diz a matéria no último parágrafo. Há relatos em outras partes do país da organização dos haitianos, ainda no Acre, com a criação de associações. “Para tentar se defender, em Cascavel, onde há pelo menos 1,5 mil haitianos, eles criaram há dois meses a Associação de Defesa dos Direitos dos Imigrantes Haitianos. A entidade já ganhou uma ação contra um frigorífico que demitiu uma haitiana grávida e obteve acordo com uma empreiteira que não havia pago verbas rescisórias”, aponta a reportagem d’O Globo.

Seleção de emprego “lembra mercado de escravos”

Uma das matérias dentro da reportagem especial do jornal afirma, no título: “Em São Paulo, imigrantes têm ofertas de emprego, mas seleção lembra mercado de escravos”2. Segundo dados do jornal, somente no primeiro semestre de 2014, 472 empresas já haviam contratado pelo menos 1,4 mil trabalhadores “de fora do país”. Resumo a matéria: “São Paulo se tornou palco de uma romaria de empresários e analistas de recursos humanos, especialmente das regiões Sul e Sudeste do país. Desde o começo do ano, mais de 1.300 empresas enviaram representantes à Igreja Nossa Senhora da Paz, na Baixada do Glicério, Zona Central da capital paulista e ponto de concentração de migrantes haitianos e africanos na cidade. Ali, eles estão em busca de mão de obra. De preferência, boa e barata”.

O anúncio das vagas é trilíngue: inglês, francês e creole, este último um idioma do Haiti. Segundo registra a jornalista, a seleção dos trabalhadores “por vezes faz lembrar a escolha feita por senhores de engenho em mercados de escravos no Brasil, até o século XIX”. No Acre, ponto de entrada de haitianos e senegaleses, empresários chegam a “checar os dentes, os músculos e a pele dos imigrantes”, diz a matéria citando “pesquisadores da Universidade Federal do Acre”. Em um vídeo disponível na internet, continua, um dos recrutadores “admite que escolhe os empregados pela canela”. Segundo ele, na seleção de trabalhadores para um frigorífico, levava em conta “uma tradição antiga, do pessoal da escravidão, de que quem tem canela fina é bom de trabalho, canela grossa é um pessoal mais ruim de serviço (sic)”.

A igreja possui um “cursinho para tirar preconceito”, nas palavras de uma assistente social ouvida pela reportagem, voltado para os empresários. Nas palavras da assistente social, segundo o diário carioca: “Eles são diferentes da gente. Vão trabalhar felizes, cantando, enquanto os brasileiros relacionam o trabalho à tortura. Já ouvi empresários dizerem que a produção aumentou de 15% a 35% depois da contratação dos haitianos. Os caras são muito bons e aceitam trabalhos abaixo de sua qualificação porque precisam pagar dívida e mandar dinheiro para a família”.

A igreja “recomenda” que se respeita as leis trabalhistas e que se pague “ao menos mil reais mensais”. Novamente nas palavras da assistente social: “Eu tento garantir que eles vão ser bem tratados. Mas aqui dá de tudo, já chegou aliciador, traficante de pessoas, gente que queria não um trabalhador, mas um escravo”. Uma das empresárias que participou de uma das palestras reclama: “brasileiro é preguiçoso, se esconde atrás da lei para não trabalhar”. Uma outra participante, dona de casa, pretendia pagar 850 reais por 12 horas de trabalho diário, reclamando da legislação: “Agora é só bolsa disso, bolsa daquilo. Acho que os haitianos seriam mais bem agradecidos pelo emprego”.

A reportagem também descreve como os haitianos mudam aos poucos a rotina cultural e comunicacional de algumas cidades brasileiras. Uma rádio da região de Cascavel estreou este ano, por exemplo, o programa dominical “Haiti universal”. Em português, francês, inglês e creole, quatro radialistas haitianos “mandam recados a parentes e amigos fora do país e tocam compas, um merengue típico do Haiti”3. Segundo a matéria, o sucesso de audiência “surpreendeu os donos da rádio”. Já em Curitiba, um grupo de haitianos fundou uma banda do ritmo haitiano e já tem feito shows em casas noturnas da cidade.

Parte das matérias dos jornais impressos brasileiros é publicada na Internet, como neste caso. Essa novidade traz uma reação imediata do leitor, nos casos em que são permitidos comentários, ao contrário dos jornais dos dois séculos anteriores. Nesta matéria, por exemplo, parte dos comentários4 são dedicados a repudiar a vinda dos imigrantes, por vezes com menções racistas. Um dos leitores chega a sugerir que os negros “são os que menos gostam dos países de origem”, enquanto outro leitor sugere que os imigrantes são “mal agradecidos”, pois imigrante tem que “ralar” – menção às violações de seus direitos, como as jornadas prolongadas de trabalho –, concluindo: “Não gostam do que fazem e do que o país tem a oferecer? Tem sempre a opção de voltar de onde vieram”.

Outros leitores se dedicam a culpar diretamente o governo e o partido da presidente da República, enquanto apenas um comentário sai em defesa dos imigrantes, se declarando “enojada com certos comentários”, afirmando: “São seres humanos e feliz é um país com pessoas que lutam para a melhoria de todos e a eliminação das injustiças”.

O pesquisador Helion Póvoa Neto, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios da UFRJ, comenta, em outro espaço reservado ao debate exclusivo sobre o tema, que considera “positivo” o jornal O Globo ter realizado uma reportagem sobre os direitos destes imigrantes que, “poucos meses atrás, foram retratados em manchete (pelo próprio Globo) como invasores”. Póvoa Neto destaca ainda que, “como habitual neste mesmo jornal e na imprensa em geral, os dados aparecem jogados e o sensacionalismo prevalece”. Ele observa que não é possível saber exatamente onde e quando ocorre o mencionado mercado de escravos, no qual seriam checados dentes, músculos e canelas dos trabalhadores imigrantes.

Ainda segundo o pesquisador, “parece-me algo inadequado – para não dizer injusto, e mesmo mal-intencionado – retratar como mero balcão de empregos ou agência improvisada a Igreja Nossa Senhora da Paz, em São Paulo”, pois “durante algumas semanas, ela foi a instituição que acolheu, vestiu, alimentou e abrigou centenas de haitianos que saíam do Acre e chegaram a São Paulo. Enquanto isso, o poder público demorava a se posicionar e a imprensa, em grande parte, os retratava de forma hostil, alarmista e criminalizadora”.

A atitude crítica quanto à exploração do trabalho é bem-vinda, ressalta, e “muito temos a caminhar para fazer valer os direitos dos trabalhadores migrantes no Brasil. Denunciar é importante, mas não menos do que procurarmos ser justos e termos atenção aos que realmente defendem a causa dos migrantes”5.

NOTAS

1 Disponível em http://glo.bo/1kMGjJx

2 Disponível em http://glo.bo/1vZgXgq

3 Este trecho da reportagem está disponível em http://glo.bo/1vZjirR

4 Disponíveis em http://glo.bo/1kMGjJx

5 O comentário foi publicado na conta pessoal do pesquisador no Facebook, disponível apenas para as contas conectadas ao seu perfil, bem como no grupo de troca de informações “Brasil País de Imigração”, disponível em http://on.fb.me/1BuOoI2. Acesso em 18. ago. 2014.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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