Uma nipo-brasileira no cinema: um olhar sobre a imigração japonesa no Brasil
Matéria no caderno de Cultura do jornal O Globo de 29 de fevereiro de 1980 destaca o lançamento de Gaijin – caminhos da liberdade1, que segundo o jornalista traz para as telas uma “problemática até então desconhecida pelo cinema brasileiro” – a imigração japonesa. O filme é dirigido pela cineasta nipo-brasileira Tizuka Yamasaki, que o diário informa ser neta de imigrantes japoneses, nascida no Rio Grande do Sul e criada em uma fazenda de café no interior de São Paulo.
“Gaijin, um ideograma que pode ser traduzido como o homem do lado de fora, foi caracterizado no filme como uma marca de todos os imigrantes que, por circunstâncias econômicas, políticas e sociais, tiveram de abandonar seus países ou estados de origem para tentar construir a vida em lugares desconhecidos e distantes”, registra a matéria. “Gaijin”, continua o jornalista, “não é apenas um painel da vida do imigrante japonês, é todo um processo de imigração em que se misturam italianos, portugueses, espanhóis e nordestinos, em luta no início do século 20 pela integração numa sociedade que se transformava”.
A reportagem lembra o início da imigração japonesa em massa, com o primeiro contrato assinado em 1907 entre o governador de São Paulo e o presidente da empresa Empire Emigration Company. “Estava aberto o ciclo da imigração japonesa. O imigrante ia chegando para o trabalho nas fazendas, juntava-se a italianos, espanhóis, negros e alguns nordestinos”, descreve o jornalista d’O Globo.
A matéria descreve que o processo de adaptação foi “difícil”, pois os hábitos japoneses e a barreira da língua impediam uma “integração rápida no meio”. Além disso, o trabalho sob sol intenso e as doenças tropicais “dissipavam em suas mentes a idéia de retorno”. O salário, pago anualmente, era pouco, completa a matéria, “e muitos fugiam para as cidades em busca de melhores oportunidades”.
Os contrastes entre os imigrantes começam a aparecer, registra o texto: “alguns ficam ricos, ‘fazem o Brasil’ e retornam para o Japão”, enquanto outros “morrem miseráveis nos país que os acolheu”. A própria Tizuka Yamasaki dá seu relato ao jornal: “Minha idéia foi sempre a de falar do sentimento do homem no instante em que ele chega a este país, de sua sensação de se sentir estrangeiro. Tomeiu como referência o japonês, sem achar, em nenhum momento, que ele estava em posição diferente de outros trabalhadores imigrantes; tomei como referência a minha realidade mais próxima”.
A cineasta relata uma realidade diferente daquela apresentada comumente como o brasileiro como um povo acolhedor: “Mesmo nascida no Brasil, sou discriminada, passo a ser estrangeira, destacada pela atenção que dão à minha pele, minhas feições, meu jeito. Então, desenterrando minhas memórias, retornei às histórias contadas por minha avó”. O filme foi realizado em nove semanas em algumas das cidades que compõe a rota dos cafezais – Atibaia, Santos, Paranapiacaba, Campinas e São Paulo –, cidades com grande concentração de imigrantes.
O custo da produção foi de 14 milhões de cruzeiros (Cr$), patrocinados pela Igreja Messiânica Mundial do Brasil, pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e pela Embrafilme. “Em termos de produção nacional pode ser considerado muito pouco, em função de todo um trabalho de reconstituição de época que foi feito”, afirma a cineasta, que afirmou ao jornal que a presença de atores japoneses e brasileiros só veio a “enriquecer” o filme: “São duas escolas de atores muito diferentes. O ator japonês é muito técnico, disciplinado. O brasileiro é isso que a gente conhece: emocional, intuitivo, com uma capacidade de criação imprevisível”.
Tizuka conclui afirmando que não vê o cinema como um “instrumento útil para traçar um tratado sociológico sobre o problema dos imigrantes no Brasil” e “muito menos para apenas expor os meus problemas existenciais”. Ela resume: “O que eu queria desde o início era prestar uma homenagem ao povo imigrante. Era preciso fazer um filme que tivesse mil caras, inclusive a sua. Acho que Gaijin conseguiu isso”.
A edição de 20 de maio d’O Globo, ainda em 1980, destaca o sucesso de Gaijin, juntamente com Bye Bye Brasil (de Cacá Diegues), no prestigiado festival de Cannes com a seguinte manchete: “’Bye Bye Brasil’ e ‘Gaijin’: Em Cannes, o cinema brasileiro reconquista seu prestígio”. A imigração e seus temas relacionados passam a ser, nesse caso em que há grande prestígio internacional, uma conquista do cinema brasileiro, na visão d’O Globo.
Com a repercussão internacional, e mesmo reforçando seu laço japonês e sua ampla reflexão sobre o tema, Tizuka volta a aparecer na edição de primeiro de junho de 1980, no caderno Jornal da Família, agora como “revelação no Festival de Cannes”, e com a seguinte indagação abrindo a matéria: “Quem é esta brasileira que com seu primeiro longa-metragem, Gaijin, Caminhos da Liberdade, recebeu menção especial da crítica internacional”. Tizuka, registra-se, é de fato brasileira, porém a marcação da nacionalidade – e de como um produto “brasileiro” fez grande sucesso no “mundo” – é a principal característica das manchetes sobre o filme.
Nesta matéria, Tizuka explica que Gaijin é uma palavra usada pelos japoneses para, jocosamente, se referirem aos que “vêm de longe com dificuldade de sobrevivência”. O diário carioca faz uma analogia: “Seria por exemplo como certas expressões que trazem um fundo de racismo: pau de arara, carcamano, gringo, crioulo, cigano, japona, china etc…”
O repórter se atém a este tema: quer saber se Tizuka, neta de japoneses, tem “complexo” em relação aos outros brasileiros, “fisicamente tão diferentes de você”. A cineasta responde: “É claro que muitas vezes senti o problema de perto. A começar pela minha carteira de identidade que diz que sou brasileira de cor amarela. Na realidade, os outros é que produzem em nós um sentimento de complexo pelo que somos. Os outros, quero dizer, são certas pessoas que antes de nos ver como brasileiros e seres humanos, nos qualificam pela cor e grupo social”.
A cineasta que o filme foi importante porque ela descobriu que não estava falando de uma minoria: “No Brasil, as minorias formam a maioria e a partir da consciência disto poderemos nos libertar desses falsos conceitos colonialistas”.
Assista ao filme abaixo:
Breve entrevista com a autora nos cem anos da imigração japonesa, em 2008:
NOTA
1 Assista em https://www.youtube.com/watch?v=i_IHKd25ssg; breve entrevista com a autora nos cem anos da imigração japonesa, em 2008: https://www.youtube.com/watch?v=tzSrIdprlrA