Sentindo-se “roubado nesse negócio”: por que alemães estão deixando o Brasil da década de 1910?

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da edição de 2 de setembro de 1916 do jornal carioca A Rua.

Trecho da edição de 2 de setembro de 1916 do jornal carioca A Rua.

Imigrantes alemães no Rio Grande do Sul são notícia no jornal carioca A Rua, em sua edição de 2 de setembro de 19161, com o título “Os colonos allemães abandonam o Brasil”. A manchete anuncia que já estão fundadas diversas colônias no vizinho Paraguai para receber imigrantes dos estados do Sul que estariam deixando o país, com prejuízos que “montam a perto de 4.000 contos”.

A primeira edição do periódico é de 21 de abril de 1910, e custava 200 réis2. Dizia-se “livre e de todos”, apesar de sua primeira edição ter muitos anúncios. O primeiro editorial afirma: “Não tem preferências, nem predilecções, como não tem programa nem política”. O nome “A Rua”, de aparência popular, não descreve bem a que veio, como pode ser lido em outro trecho do primeiro editorial: “Terá a vida elegante de uma Rua moderna, bem… calçada, bem… construída”. O objetivo era fazer o registro semanal da cidade “nas suas exhibições exteriores da Rua”. Funcionou até 1929, extremamente crítico ao governo em algumas de suas principais manchetes.

Seis anos depois, na data da publicação acima mencionada, em 1916, já está muito diferente: maior, mais político e com mais ‘hard news’. Na edição de 2 de setembro, o A Rua lembra que a colonização estrangeira nos estados do Sul tem sido “intensa e proveitosa para a região”. Diz o periódico que as “riquezas incomparáveis do nosso solo têm encontrado seus descobridores nos proletários eurupeos que a existência difficil tange para a America Meridional”.

Os “rios de dinheiro” que o governo tem dado para custear a vinda dos imigrantes – que são segundo o jornal os “propulsores da riqueza nacional” – são “caudalosos”. A crise recente (“aperturas financeiras”), no entanto, obrigaram o país a suspender a imigração subsidiada. “Hoje, os que vêm para a nossa terra, fazem-no á sua custa”, informa A Rua. Dinheiro gasto “em pura perda, quasi completa, á vista do que ao nosso conhecimento chega”.

O jornal informa que ao longo da margem direta do rio Paraná, no território paraguaio, “grandes capitalistas allemães fundaram varias colonias de immigrantes, para as quaes estão removendo os seus compatriotas já estabelecidos no Rio Grande do Sul e outros estados”3. O jornal cita as colônias e detalhes do contrato com o governo paraguaio, “que se obrigou a lhes entregar, promptas para a colonisação 16 leguas quadradas de terra, só fazendo porém, quatro a quatro”.

A mais importante destas colônias era a de Honenau (ou Honenan), que segundo o jornal já possuía em 1907 uma população de 400 habitantes, distribuídos em 80 famílias alemães e brasileiras de origem alemã, vindas do Rio Grande do Sul. Hoje, é um município no departamento de Itapúa. Outras colônias também ajudaram a povoar a região: Obligado, Jesus, Barthe, H. Vega e R. Lavalle, todas à época situadas nas proximidades da vila de Encarnación, às margens do rio Paraná. Hoje, Encarnación é a terceira maior cidade do Paraguai e conta com cerca de 93 mil habitantes no distrito e 67 mil na área urbana, segundo o censo de 2010. Lá, vive uma grande quantidade de minorias de estrangeiros: além dos alemães, há italianos, ucranianos, libaneses e japoneses. A maioria da população segue sendo “mestiça”, de hispanos guarani.

Se em 1907, Honenau possuía 400 habitantes, em 1916 já possuía 1,5 mil pessoas, todas – de acordo com o A Rua – procedentes dos estados do Sul do Brasil. O jornal não esconde que trata a migração como um negócio: “Mas, perguntará o leitor brasileiro, sentindo-se roubado nesse negocio: como e por que se transferem os nossos colonos para o Paraguay?”

O jornal acusa os empresários alemães de terem iniciado uma campanha de “propaganda prejudicialissima aos nossos Estados do Sul” por meio de cartas enviadas aos colonos no Brasil com quem tinham relações. “Attrahidas as primeiras familias, os emprezarios tratam de conseguir com ellas uma propaganda epistolar [por cartas], destinada a provocar a emigração das familias aparentadas e amigas das primeiras, do que resultou estabelecer-se uma inevitavel e incessante corrente emigratoria do Brasil para o Paraguay”, resume o jornal, classificando o procedimento como “desleal”.

Os resultados são muito vantajosos às colônias no Paraguai, reclama o redator do jornal. Só em Barthe, avalia, a colonização foi iniciada com 32 famílias “do Brasil”. Ele classifica a migração dos alemães para o Paraguai de “emigração brasileira” e cita os dados de hectares cedidos aos novos colonos. E a tendência é de crescimento, “pois a propaganda e seducção intensifica-se a todo momento”.

É por meio da imprensa que parte dessa propaganda é realizada, diz o próprio A Rua: “Basta dizer que os emprezarios fazem já circular um semanario de mais de 15 paginas, escripto em allemão, destinado a incrementar essa emigração dos colonos estabelecidos no Brasil para o Paraguay”. O jornal denomina-se “Die Neue Heimat” – em alemão, A Nova Pátria –, com “vasta circulação nos centros germanicos dos Estados do Sul”, informa a matéria do A Rua, que diz ainda que o ministério das Relações Exteriores já estão de posse de algumas edições “desse hebdomadario [semanário] de propaganda contra os interesses do Brasil”.

O jornal chama ainda a mencionada emigração de “clandestina” e calcula o quanto perdemos: quase 4 mil contos. Segundo as contas do governo citadas pelo jornal, cada colono produz 250$ réis anualmente, multiplicando-se pelos 15 mil colonos que estariam se transferindo para o país vizinho. O jornal registra sua indignação: “Simplesmente edificante! Além da somma fabulosa que gastámos com essa immigração, fogem-nos ainda os colonos para o estrangeiro. Hontem era para a Argentina. Hoje é para o Paraguay, fomentada a sahida por capitalistas allemães”.

O cônsul brasileiro em Assunção é quem indica possíveis soluções: a fundação de colônias no Paraná, próximo ao rio homônimo, “além de se melhorar o systhema de impostos das actuaes colonias”. Mesmo registrando os dados preocupantes do governo, não poupa críticas à ação estatal: “O governo sahirá de sua somnolencia para ‘estudar o assumpto’ que tão energicas e promptas providencias reclama?”

Assim como muitas matérias presentes em todo o período desta pesquisa, desde 1808, os imigrantes são vistos sobretudo como trabalhadores, ativos comerciais que vão impulsionar a economia. Nesta perspectiva – aqui mais uma vez demonstrado –, são tratados como mercadorias, de propriedade de seus financiadores (o governo) e, portanto, passíveis de serem “roubados” por interesses financeiros contrários aos interesses nacionais. Não há contratos assinados, neste caso, que justifiquem sua estadia no estabelecimento. Mesmo assim, a mentalidade capitalista que regia a lógica da imigração transborda na imprensa da época.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=236403&pasta=ano%20191&pesq=

2 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=236403&pasta=ano%20191&pesq=

3 Nota-se que a expressão “capitalistas” era então uma palavra atribuída a um empresário, uma pessoa de muito capital. A palavra passa a ter um tom mais ideológico tempos depois, muitas vezes mencionada a partir da definição marxista e de suas interpretações correlatas.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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