Segunda Guerra Mundial foi “excelente oportunidade” para o “aproveitamento de cerca de um milhão de deslocados de guerra na Europa”, diz jornal carioca em 1948
O Diário da Noite, que destaca com grande ênfase o tema dos refugiados em 1948, publica na capa da edição de 12 de novembro1 as manchetes: “Dos campos da Ucrânia para os altiplanos de Goiaz – Pela primeira vez no Brasil, famílias de imigrantes foram selecionadas pelo IRO [ou IRO, Organização Internacional de Refugiados, agência especializada da ONU] e pelas autoridades brasileiras”.
A manchete da capa acrescenta: “Mais de 10 mil refugiados até janeiro”, com uma foto em destaque com alguns dos imigrantes e a legenda: “Despreocupados e cheios de esperança – Essas crianças, esses homens, representam sangue novo na economia nacional”.
O Diário da Noite, dirigido à época pelo destacado jornalista Austregésilo de Athayde e funcionando à rua Sacadura Cabral, 103, no Rio de Janeiro, apresentava-se como o “jornal de maior circulação no Brasil”. Neste ano, Athayde participou da delegação brasileira nas Nações Unidas e integrou a comissão que redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Na matéria do Diário, o discurso dos “braços” é o mesmo observado na maior parte dos jornais desde o início da imigração no país: “Parece agora que o Brasil marcha em rumo certo para a solução de um velho e importante problema: a falta de braços, especializados na indústria, na lavoura, na pecuária e em outras atividades”.
O jornal afirma que o “último conflito mundial”, encerrado em 1945, representou uma “excelente oportunidade” para o “aproveitamento de cerca de um milhão de deslocados de guerra na Europa” pelos países, principalmente sul-americanos, que estariam “necessitados do concurso de trabalhadores especializados”. O serviço estava “grandemente atrazado”, afirma o jornal, acusando técnicos do Itamaraty enviados à Europa para fazer a seleção de escolherem “poetas, cantores e pintores”, em vez de “trabalhadores e técnicos”. O “lamentável fracasso” foi, argumenta o diário carioca, “logo reparado pelo governo”.
A matéria diz que a Ilha das Flores, centro de recepção de imigrantes, está “muito bem aparelhada”, oferecendo todo conforto aos seus hóspedes “como se estes estivessem em sua própria casa”. O jornal descreve com isso se dá: “Não lhes faltam alimentação sadia e abundante, cigarros e liberdade de movimentos dentro da ilha; andam à vontade, tomam banho de mar a qualquer hora e se distraem pescando ou palestrando à sombra de frondosas árvores”. Após de uma Europa “faminta e destroçada”, estar naquele “tranquilo e belo recanto da baía de Guanabara” causa a impressão de estarem “num paraíso”, diz a matéria.
Segundo relata o jornal, a agência especializada da ONU “patrocina a evacuação da Europa dos deslocados de guerra”, escolhendo os “elementos considerados capazes para o trabalho” e os apresentando às comissões de técnicos que representam os países interessados nos mesmos. As comissões, continua o jornal, dão preferência às “espécies de trabalhadores que necessita”, com o Brasil dando preferência a lavradores (principalmente triticultores), além de operários especializados para as indústrias.
De maio de 1947 até a data do artigo, novembro de 1948, o diário informa que o organismo internacional já deslocara para o Brasil 7 mil refugiados em “cinco grandes navios”. Até janeiro de 1948, outros 3 mil chegariam, completando o acordo de 10 mil imigrantes realizado entre o governo brasileiro e a agência da ONU. São Paulo absorvera 60% destes imigrantes, segundo informa a publicação, com o restante indo para Minas, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Goiás. Um “inquérito superficial” divulgado pela matéria dá conta de que haveria naquele momento um deficit de 50 mil braços em São Paulo.
O diário relata o estranhamento de alguns dos novos moradores. “Os primeiros imigrantes chegados aos Estados do Sul, para se dedicarem à lavoura, estranharam grandemente as condições de trabalho. Isto porque, habituados mais ao trabalho mecânico, e não encontrando uma lavoura completamente mecanizada, realizavam as suas tarefas com dificuldade, o que resultava num rendimento pouco compensador”. Sem entrar em detalhes sobre quais condições de trabalho seriam estas, a matéria acrescenta: “Em São Paulo, principalmente, houve grande descontentamento entre os imigrantes, de vez que o trato dos cafezais, todo ele manual, não oferecia compensação satisfatória”. Houve, completa a matéria, “grande êxodo das fazendas para os centros industriais”.
A solução para a questão é no mínimo curiosa: o Diário da Noite informa que a estratégia para evitar o abandono dos campos, “com grandes prejuízos para a agricultura e que desvirtuava completamente a finalidade dessa imigração”, o órgão que trata oficialmente do tema – o Conselho de Imigração e Colonização – teria realizado estudos juntamente com a OIR e encontrado uma solução para o problema.
A ideia, diz o jornal, é suprir a indústria com braços especializados de tal modo que, enquanto não forem mecanizados totalmente os meios de trabalho nos campos, seja “impossível a qualquer imigrante conseguir emprego nas fábricas”. Isso “obrigará o lavrador estrangeiro a se empregar mais a fundo no seu ‘metier’ [profissão], tornando-se perseverante, adaptando-se às condições e, consequentemente, produzindo mais”.
O jornal destaca ainda que os peritos brasileiros darão preferência a famílias de imigrantes, e não indivíduos – uma evidente demanda por controle social. Quando o imigrante está em família, argumenta a matéria, ele fica “praticamente preso à terra em que chegar”. E quanto “mais numerosa fôr a família”, acrescenta, “melhor ainda”, pois “trabalhando todos, prosperarão rapidamente e darão maior rendimento à lavoura”. A matéria relata que o Estado de Goiás estava muito interessado na “aquisição” de imigrantes e, a título de experiência, escolheu 17 famílias ucranianas, com “resultados excelentes”.
NOTA
1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=221961_02&pagfis=47682&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#