Retirantes estrangeiros? Um relatório de 1906 investiga os ‘factos’ em São Paulo
A edição de 30 de dezembro de 1906 do Jornal do Brasil1 divulga um relatório que investiga o aumento do êxodo de imigrantes em São Paulo. O documento – datado de 22 de dezembro e apresentado ao então ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon – aponta a saída de imigrantes do Estado para a Itália e para a Argentina, bem como para outras fazendas no Estado, tendo despertado “suspeitas de anormalidade capazes de perturbarem a organização do trabalho nas fazendas de café”.
“Justamente ao tempo em que a superior administração do paiz nutre o decidido empenho de acelerar o povoamento do vasto territorio nacional e de amparar com vivificantes estimulos as forças productoras de nossas riquezas, semelhante occurrencia levou V. Ex. a confiar-me o estudo das suas causas afim de serem adoptadas medidas conducentes a repressão”, diz o engenheiro responsável pelo relatório no Jornal do Brasil.
O engenheiro – Joaquim Francisco Gonçalves Junior – afirma ter percorrido todo o Estado, visitando as fazendas e ouvindo “os principaes interessados”, fazendo uso inclusive de intérpretes e dando “muita attenção para o desdobramento do serviço nas fazendas de café, estudando a situação dos immigrantes e as vantagens por elles auferidas”.
Segundo o investigador, são dois os motivos para o êxodo: “(…) abundantes peculios [economias, recursos] de que se acham os immigrantes providos e torpe exploração, de que estão sendo victimas, por parte de alguns de seus patricios estabelecidos no commercio do Estado”. A explicação é um pouco confusa, mas ele prossegue: “A terminação de uma grande safra proporcionou-lhes fartos recursos. Uns, em menor numero, emprehendem viagem ao torrão natal, por iniciativa própria; outros por suggestão de terceiros, que lhes descrevem a facilidade e os reduzidos gastos do passeio, e lhes offerecem os prestimos de guias; e alguns, finalmente, retiram-se em busca de fabulosa fortuna, que, a rodo, lhes aguarda alhures, segundo a insidiosa labia de compatriotas seus, avidos de partilharem das economias acumuladas pelos inexpertos camponios”.
A conclusão do engenheiro, em termos mais simples, é a de que o deslocamento de imigrantes tanto para o exterior quanto para outras fazendas é uma consequência direta do “systema de suprimento de braços á lavoura sem radical-o ao solo”. A falta de fixação do imigrante em sua terra de que muitos falavam à época. O engenheiro, em tom crítico, afirma ser este um hábito “já inveterado”, principalmente após o fim da colheita de café, “quando [os imigrantes] fazem a liquidação de suas contas e se munem de saldos, não raro elevados”.
Observa-se que é no mínimo curiosa a conclusão do engenheiro, dentro do contexto da época, dado que a propaganda oficial da época – tanto do governo federal quanto das empresas parceiras e dos governos estaduais – centrava-se justamente no fato que os imigrantes poderiam fazer fortuna no Brasil, na tentativa de atraí-los para o campo e, em especial, para o setor agrícola.
O autor do relatório conclui, então, que “não é pela escassez de vantagens que a retirada se opera”. Ele lembra que o imigrante tem vários benefícios – passagem para ele e toda a família, transporte, hospedagem e alimentação por oito dias ou mais, acesso a serviços médicos etc. – e podem tomar o “destino que lhes approuver”. O emprego, se não for garantido, será facilitado pelo governo, diz o engenheiro. Na fazenda, as facilidades continuam, diz: “(…) encontram casas relativamente confortáveis para sua residencia, em cujas proximidades existem abundante e superior agua potavel, lenha, pastos para seus animaes e fertilissimas terras para plantações de mantimentos”.
O autor do relatório acrescenta: “E tudo isso sem onus algum para elles”, incluindo um adiantamento de recursos pelo fazendeiro “para manterem-se até que os possam obter pelo trabalho”. O empréstimo, adiciona, é realizado sem juro algum até 12 mezes após a entrada para a fazenda. Tais recursos garantem, assegura, “a subsistencia folgada dos immigrantes e algumas sobras”. Durante todo o documento, o engenheiro cita números em relação aos altos ganhos dos imigrantes advindos tanto da boa produtividade que encontram quanto dos benefícios contratuais que possuem.
Para o autor do relatório, os imigrantes encontram-se em situação melhor do que o próprio fazendeiro. “Que maiores regalias, que proventos mais altos querem elles?! Ao passo que o fazendeiro soffre os effeitos da crise, vendendo o café a preço baixo, o immigrante prospera e emancipa-se da penuria que o atormentava ao emigrar para o Brasil”, diz.
O autor diz ainda que o número de imigrantes que mudam de fazenda dentro do próprio Estado ultrapassa em muito os que emigram do Estado, consequência – diz ele – da propaganda boca a boca sobre as supostas vantagens oferecidas por outros fazendeiros. “Às vezes um toma a resolução de mudar-se e muitos o acompanham por mera sympathia. Estão, em geral, sempre predispostos à mudança, sempre crédulos em quantas fantasias se lhe apregoam”, resume o argumento.
Outro fator informado pelo autor do relatório é a presença frequente de agentes que vendem viagens ao exterior, “para isso usando todos os meios suasorios, desde o baixo preço da passagem, até a descripção bem architectada de avultadas riquezas conquistaveis”. Segundo o relatório, “alvejam esses propagandistas – compatriotas das victimas – a espoliação pela hospedagem e o despropositado agio pela acquisição e troca da moeda”.
Ele informa ainda que os imigrantes em geral os desconhecem, “mas acreditam no engodo, deixam-se embalar com os olhos fitos nas vantagens imaginadas pela argucia destes fantasiadores de edens”. O engenheiro exime o governo do Estado, “activo e zeloso” e que “não se tem descurado de providenciar no intuito de por cobro a esses abusos”. O engenheiro chega a culpar os anúncios publicitários das empresas de navegação, cujas passagens de terceira classe custam entre 75 francos (Buenos Aires) a Gênova e Nápoles (170 francos) – “inclusive o imposto, diziam os reclames que vi”, adicionou, concluindo: “É forçoso convir que os immigrantes providos de grandes sommas, a lerem frequentemente taes annuncios, se predispõem a viajar à terra natal, ou para tentar [trecho incompreensível] fortuna”.
O engenheiro sugere que, para fixá-lo ao campo, é essencial torná-lo proprietário, passando a citar exemplos nacionais e internacionais de colônias em que esta aspiração foi responsável pela fixação do homem à terra – à época, o termo utilizado é localização. “Os nucleos coloniaes disseminados por diversos Estados ahi estão para testificarem o valor do immigrante proprietario.”
“Fosse o immigrante proprietario e rarissimo seria o caso de abandono da gleba (…) A valorisação da propriedade e a abastança são o seu escopo”, resume o responsável pelo estudo. O documento cita como exemplo uma colônia conhecida como núcleo Campos Salles, fundada em 1897 e situada a 41 quilômetros de Campinas, a 760 metros de altura. O núcleo conta com 212 famílias, diz o relatório, com imigrantes alemães, suíços, italianos, suecos, austríacos e dinamarqueses.
Apesar da conclusão propositiva – para o imigrante –, em outro trecho do relatório o engenheiro conclui também que “ao governo da União não cabe intervenção directa e immediata no proposito de reprimir o exodo de immigrantes”, pois as providências adequadas, diz, “são de natureza policial e da alçada do governo estadual, que se tem aprestado em pôr em pratica medidas capazes de embaraçarem a reproducção dos abusos de que são alvo os retirantes, mesmo por parte de seus patricios”.
Observa-se, ainda, o completo estado de abandono dos ex-escravos e da população negra no país, em comparação com os vastos benefícios dos imigrantes.
NOTA
1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/docmulti.aspx?bib=030015