RESENHA: Os usos da diversidade, de Clifford Geertz

Por Gustavo Barreto (*)

Gustavo Barreto e Raquel Marina (*). Texto disponível clicando aqui.

O etnocentrismo é lembrado frequentemente, no campo da cultura e áreas conexas, como um importante ‘vilão’ contemporâneo: ‘autor’ de importantes guerras ‘civilizatórias’, destruidor de povos ancestrais, síntese do autoritarismo tipicamente ocidental no campo da cultura etc. A partir do conceito – em um sugestivo título, ‘O Futuro do Etnocentrismo’, de 1986 –, Clifford Geertz busca sintetizar porque, ao lado do ‘paroquialismo’, o universalismo tipicamente propagado pela UNESCO à época também representa uma ameaça ao trabalho do antropólogo e de seus semelhantes – a saber: o etnógrafo, o historiador e o romancista.

Neste curto e importante texto, Geertz parte do princípio de que o mundo contemporâneo – o mundo dos anos 1980 de onde fala, que se parece muito com o mundo dos 2010 neste tema – não possui mais fontes tão bem definidas de contextos culturais: “Haverá diferenças, com certeza – os franceses jamais comerão manteiga com sal. Mas os bons velhos tempos de queima de viúvas e canibalismo foram-se para sempre” (p.14). Os antropólogos, argumenta, “terão simplesmente de aprender a fazer alguma coisa com diferenças mais sutis, e seus escritos podem tornar-se mais argutos, embora menos espetaculares”. A partir deste problema, Geertz formula a questão: qual é o ‘futuro do etnocentrismo’?

Geertz lembra um episódio em que o comemorado antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, convidado a fazer uma palestra na UNESCO por ocasião do Ano Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial (1971), decidiu fazer uma interessante defesa do etnocentrismo – para surpresa dos autores do convite –, ao mesmo tempo em que se insurgiu contra o universalismo generalizante a la UNESCO.

Em síntese, o etnocentrismo não apenas não seria uma coisa ruim em si mesma, mas, “desde que não acabe fora de controle”, é uma coisa “bastante boa”. A lealdade a um certo conjunto de valores torna as pessoas inevitavelmente “parcial ou totalmente insensíveis a outros valores”, não se tratando no entanto de uma autorização para a opressão ou a destruição dos valores rejeitados. Segundo Lévi-Strauss, o etnocentrismo:

Pode mesmo representar o preço a pagar para que os sistemas de valores de cada família espiritual ou de cada comunidade se conservem, e encontrem no seu próprio fundo as fontes necessárias à sua renovação. Se… existe entre as sociedades humanas um certo optimum de diversidade para além do qual elas não poderiam existir, mas abaixo do qual elas não podem também descer sem perigo, deve reconhecer-se que esta diversidade resulta em grande parte do desejo de cada cultura de se opor àquelas que a rodeiam, de se distinguir delas, numa palavra, de ser ela mesma; elas não se ignoram, apropriam-se de coisas umas das outras sempre que há ocasião, mas, para que não pereçam, é preciso que, sob outras relações, persista entre elas uma certa impermeabilidade. (Lévi-Strauss apud Geertz, p.16).

A distância ofereceria, portanto, neste argumento, se não encanto, pelo menos indiferença e, consequentemente, “integridade”, afirma Geertz. Como este não parece ser mais o caso e – argumenta Geertz – todo mundo, “cada vez mais apertado num pequeno planeta, está profundamente interessado em todo mundo e no que todo mundo faz, a possibilidade de perder tal integridade, por causa da perda de tal indiferença, paira no ar”. Para Lévi-Strauss, continuando sua argumentação, “a verdadeira criação implica uma certa surdez ao apelo de outros valores, podendo ir até à sua recusa, senão mesmo até à sua negação” (apud Geertz, p.17).

Concordando que um consenso cultural global parece estar longe de acontecer, como supõe o cosmopolitanismo oco do internacionalismo – e como quis denunciar Lévi-Strauss –, Geertz propõe um caminho alternativo a este tipo de etnocentrismo, que o autor classifica como uma “filosofia moral medrosa” (p.20), por rejeitar a aproximação das culturas a partir de temor de que sejam destruídas a criatividade e a integridade cultural. “O problema com o etnocentrismo é o que nos impede de descobrir em que tipo de ângulo (…) nós nos postamos em relação ao mundo”, sintetiza.

Um dos principais problemas com o etnocentrismo é a idealização acerca das fronteiras das sociedades. Questões da antropologia, argumenta, surgem “não simplesmente nas fronteiras de nossa sociedade, (…) mas nas fronteiras de nós mesmos”. Ele resume: “O sentimento de ser estrangeiro não começa à beira d’água, mas à flor da pele”.

Uma imagem do texto ajuda a explicar nossa percepção sobre “nós” e os “enigmáticos ‘eles’”: nós somos, diz Lévi-Strauss citado por Geertz, passageiros nos trens que são nossas culturas, “cada qual movendo nos seus próprios trilhos, no seu próprio ritmo e na sua própria direção”. Conseguimos apreender mais facilmente os “trens que rolam lado a lado, em direções semelhantes e velocidades não muito diferentes das nossas”. Já o mesmo não se dá com os trens “em trilhos oblíquos ou paralelos rolando numa direção oposta”. Argumenta Lévi-Strauss:

Dele não recebemos senão uma imagem confusa e depressa desaparecida, dificilmente identificável, as mais das vezes reduzida a uma mancha momentânea do nosso campo visual, que não nos dá qualquer informação sobre o próprio acontecimento e que só nos irrita, porque interrompe a contemplação plácida da paisagem que serve de pano de fundo aos nossos devaneios. (Lévi-Strauss apud Geertz, p.22)

O mundo contemporâneo não está mais dividido em vagões de trens, argumenta, e sim em “sensibilidades conflitantes em contato inevitável”, ao mesmo tempo em que o espectro cultural torna-se “mais pálido e mais contínuo sem tomar-se menos discriminatório”, segundo alerta Geertz.

O autor ressalta que questões morais advindas da diversidade cultural que costumavam surgir sobretudo entre as sociedades – “costumes contrários à razão e à moralidade” do qual o imperialismo se alimentava – agora surgem cada vez mais dentro delas. A complexidade desta nova e frequente situação é explicada por meio de um exemplo de embate cultural entre um indígena e uma comunidade de médicos dos EUA cujos entendimentos de mundo se tornam inconciliáveis, em meio à obrigação de conviverem na mesma sociedade (vide p.25-27).

Diante deste desafio, diz Geertz, se colocam figuras como o antropólogo, o etnógrafo, o historiador e o romancista, “dramatizando a estranheza, exaltando a diversidade, e respirando a profusão de pontos de vista”. Profissionalmente, argumenta o autor, estes têm a “obsessão pelos mundos distantes e por torná-los compreensíveis primeiro para nós mesmos e depois, através de esquemas conceituais, (…) para nossos leitores”.

Essa metodologia funcionou melhor enquanto os mundos estavam distantes, descontínuas ao “nosso” mundo, surgindo um novo desafio à medida que se tornam parte de “nossa” sociedade, uma alternativa que se coloca próxima e acessível. A partir deste problema é necessário, diz Geertz, redefinir os usos da diversidade cultural e o papel do antropólogo. Na contramão do etnocentrismo vislumbrado por Lévi-Strauss, e igualmente do universalismo vazio da UNESCO, “explorar o caráter do espaço que separa [as diferenças culturais]”. A etnografia pode proporcionar “um contato viável com uma subjetividade variante”; é, por fim, a “grande inimiga do etnocentrismo, do confinamento de pessoas em planetas culturais” (p.29).

A tarefa da etnografia, ou uma delas, é, segundo Geertz:

fornecer, como fazem a história e as artes, narrativas e cenários para refocalizar a nossa atenção; não, no entanto, os que nos tornam aceitáveis para nós mesmos pela representação de outros reunidos dentro de mundos onde não queremos e não podemos chegar, mas os que nos tornam visíveis para nós mesmos pela representação de nós e todos os demais postos no meio de um mundo cheio de estranhezas irremovíveis das quais não podemos nos manter distantes. (p.30)

Antes usando mais facilmente as “anomalias selvagens” para apartar ‘outras’ sociedades, a etnografia se põe diante de novos tempos. Mesmo a literatura de viagem, que usava as superfícies exóticas para ressaltar virtudes do explorador – “o inglês mantendo-se calmo, o francês racional, o americano inocente” –, agora se vê diante dessa importante tarefa, destaca Geertz: localizar aquelas estranhezas e descrever suas formas. (p.30)

Se estávamos, possivelmente, “separados em unidades cercadas e espaços sociais com bordas bem definidas, modos de viver seriamente díspares”, agora nos posicionamos em “áreas mal definidas e espaços sociais de bordas soltas, irregulares e difíceis de localizar”. A questão, portanto, é como lidar com os “quebra-cabeças de julgamento” que tais disparidades levantam. “Confrontar paisagens e naturezas-mortas é uma coisa; panoramas e colagens é outra muito diferente”, conclui. (p.31)

Trata-se, argumenta Geertz, de um dos “principais desafios morais que hoje em dia defrontamos e integra virtualmente todos os demais desafios, desde o desarmamento nuclear até a distribuição mais justa dos recursos do planeta” (p.32).

Para abordar essa “colagem”, diz Geertz, é preciso separar os seus elementos, determinando o que são – “determinar de onde vêm e o que valiam quando estavam lá” – e como, na prática, eles se relacionam um com o outro, “sem que ao mesmo tempo se embace o próprio sentido de localização e de identidade própria do indivíduo dentro dela” (p.32-33). E conclui: “Precisamos aprender a apreender o que não podemos abraçar”.

(*) Doutor pela UFRJ e Mestranda pela UFF

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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