Reino Unido fecha as portas para os migrantes e abre uma janela para a xenofobia
Em junho de 2016, 52% dos eleitores britânicos optaram, por meio de um referendo, pela saída do Reino Unido da União Europeia. O intenso debate público acirrou os ânimos, fechando as portas para os migrantes e abrindo uma janela para a xenofobia, como se pode perceber nas ruas e nas redes sociais logo após o referendo.
“Não estava preparado para ser um alvo da xenofobia. Sou um homem branco de classe média. Nunca tinha passado por algo do tipo no Brasil, onde faço parte de uma minoria privilegiada. Mas, aqui, sou estrangeiro e estou sujeito a esse tipo de tratamento”, escreveu um brasileiro no relato abaixo, após um ato de xenofobia no país onde atualmente mora. Ele acrescentou, em outro momento: “Sinto que há uma maioria silenciosa que condena a xenofobia – só seria bacana que fosse um pouco menos silenciosa”.
A matéria abaixo é assinada por Rafael Barifouse, da BBC Brasil em São Paulo, e foi publicada em 14 de julho de 2016:
‘Nunca pensei que ia acontecer comigo’, diz brasileiro alvo da xenofobia pós-Brexit no Reino Unido
O paulista Danilo Venticinque, de 30 anos, mudou-se em janeiro para Southampton, no sul da Inglaterra, após ser convidado para ser professor de Jornalismo da Universidade Southampton Solent.
Desde então, ele acompanhou de perto a polêmica em torno do Brexit – entre elas, as manifestações de xenofobia contra alguns estrangeiros no país.
Casos assim foram compartilhados pela internet logo após 52% dos eleitores britânicos no referendo optarem pela saída do Reino Unido da União Europeia.
Venticinque já havia escutado relatos de conhecidos e participado de um protesto contra uma manifestação de dois grupos de extrema-direita na cidade onde mora.
Mesmo assim, não esperava tornar-se um dos alvos da xenofobia – até ficar frente a frente com o preconceito.
Confira seu relato à BBC Brasil:
“Sabia que havia uma onda de xenofobia no Reino Unido após a votação do referendo e, nas últimas semanas, vinha escrevendo sobre o aumento destas agressões. Mas nunca pensei que aconteceria comigo.
No dia 8 de julho, tive a infelicidade de tornar-me um dos alvos deste preconceito – aparentemente, falar com minha mulher, que é mexicana, em espanhol é suficiente para ofender algumas pessoas.
Buscávamos um lugar maior para morarmos, porque ela está grávida. Hoje, vivemos em Portswood, onde há uma grande comunidade de origem polonesa. Mas, naquele dia, fomos ao Centro, onde há menos imigrantes, para ver um apartamento.
Depois da visita, fomos para o ponto esperar por um ônibus. Em meio a uma brecha em nosso papo, fui abordado por uma senhora de idade.
‘Você fala inglês, não? Você consegue entender o que estou dizendo?’, disse ela em um tom de voz elevado.
‘Este é o meu país. Estamos saindo na União Europeia. Não vamos ter mais tantas pessoas como vocês por aqui. Os tempos serão outros.’
Naquele momento, fiquei sem reação – nosso ônibus chegou, e fomos embora. Parecia não ser capaz de falar inglês na hora, ao menos não bem o suficiente para elaborar uma resposta coerente.
Consegui boas notas nos testes de proficiência do idioma, mas as aulas de inglês não tinham me preparado para essa situação. Infelizmente, as provas não avaliam nossa capacidade de lidar com comentários ofensivos aleatórios proferidos por estranhos.
Vim para o Reino Unido há dois anos para estudar e voltei como cidadão europeu (tenho cidadania portuguesa) após ser convidado para dar aulas em uma universidade.
Trabalho duro, pago meus impostos e evito meter-me em problemas. Para mim, seria suficiente para ser bem-vindo neste país.
A pior parte foi chegar à conclusão de que a senhora só falou verdades. Este é seu país. O Reino Unido está deixando a União Europeia. E, levando em conta o forte discurso contra a imigração da campanha em prol do Brexit, é possível que, no futuro, sejam criadas regras que impeçam pessoas como eu de virem para cá.
Seu discurso parecia ser um reflexo do referendo. Era algo padronizado, como se ela o tivesse aprendido em algum lugar.
Acho que a campanha fez estas pessoas sentirem-se no direito de abordar alguém. Já tinha percebido algumas pessoas me olhando feio na rua quando falava em espanhol. Mas acho que, antes, elas tinham vergonha de agir.
Agora, parecem acreditar ter o mandato de 52% da população para dizer a uma pessoa que ela não pertence a determinado lugar.
Já tinha ouvido sobre casos assim pela imprensa, e uma colega de trabalho da Lituânia me contou ter enfrentado dificuldades para achar um colégio para a filha – reagiam mal quando viam que a menina não falava inglês. E, aqui na cidade, havia comparecido a uma manifestação em reação a um ato de grupos de extrema-direita previsto para o mesmo dia.
Ainda assim, não estava preparado para ser um alvo da xenofobia. Sou um homem branco de classe média. Nunca tinha passado por algo do tipo no Brasil, onde faço parte de uma minoria privilegiada. Mas, aqui, sou estrangeiro e estou sujeito a esse tipo de tratamento.
Tudo isso me lembrou de outro episódio ocorrido há algumas semanas, quando fui com minha mulher ao hospital para fazer o segundo ultrassom, no mesmo dia em que ocorreu a votação do referendo.
Ela teve de responder a uma série de perguntas sobre sua situação como imigrante e mostrar documentos para que verificassem se tinha direito de ser atendida pelo sistema público de saúde. Isso nunca havia acontecido antes.
A recepcionista nos disse especificamente que, agora, precisavam fazer isso por causa ‘de toda essa história do Brexit’. Um casal à nossa frente na fila e que falava inglês não teve de responder a nada nem mostrar documentos.
Decidi compartilhar o caso no Facebook, porque acho importante mostrar o que está acontecendo. Também foi uma maneira de reagir e dar uma resposta à senhora que nos abordou no ponto de ônibus. Aquilo tinha ficado entalado na minha garganta.
As reações majoritariamente positivas que recebi mostram que o pessoal anti-imigrantes é minoria. Várias pessoas que votaram pelo Brexit me mandaram mensagens de apoio, mostrando que nem todos a favor da saída são contra a imigração.
Houve uns dois ou três que apoiaram a senhora e, inclusive, quem me acusasse de estar contando uma história falsa, porque ‘brasileiros não falam espanhol, falam português’.
Mas muitos britânicos me escreveram pedindo desculpas por seu povo ou dizendo que ela não falava em seu nome. Inclusive, muitas pessoas da Escócia, onde o voto contra a saída foi majoritário, disseram para me mudar para lá.
Sinto que há uma maioria silenciosa que condena a xenofobia – só seria bacana que fosse um pouco menos silenciosa…
Mesmo com tudo isso, ainda me sinto bem-vindo no Reino Unido. Caso contrário, não teria sido convidado para vir para cá. Devo muito ao país, onde tive e continuo a ter grandes oportunidades de estudo e trabalho.
A antipatia de poucos e uma manifestação isolada não apagam toda a relação que tenho com o país. Mas, assim como outros estrangeiros, estou preocupado. O futuro é incerto. Não sabemos quais serão as novas regras de imigração após o Reino Unido deixar de fato o bloco. Não há como fazer planos de longo prazo.
Esse sentimento contra imigrantes será momentâneo ou duradouro? Casos isolados se tornarão corriqueiros? Como serão os empecilhos no dia a dia?
E pensar que, há alguns meses, pensava que este seria um ótimo lugar para criar raízes, começar minha família, criar meus filhos.
Aquela senhora estava mesmo certa: os tempos estão mudando.”