‘Qual é a nova realidade? O Brasil é destino de imigrantes. Não era’

Por Gustavo Barreto (*)
Na rodoviária de São Paulo, imigrantes haitianos não possuem qualquer informação para onde podem ir. Quem os orienta é um membro da imprensa local. Foto: reprodução/Folha de S. Paulo

Na rodoviária de São Paulo, imigrantes haitianos não possuem qualquer informação para onde podem ir. Quem os orienta é um membro da imprensa local. Foto: reprodução/Folha de S. Paulo

Reportagem do jornal Folha de S. Paulo de 30 de maio de 2014 relata a longa travessia pelo qual passam imigrantes vindos principalmente do Haiti e de Senegal, tendo como destino principalmente o sul do país e São Paulo.1 Os imigrantes relatam ao jornal que são roubados principalmente no Peru pelos chamados “coiotes”, que vendem o serviço da travessia – o valor pode chegar a 4 mil reais.

“A grande maioria ainda são os haitianos, que iniciaram o movimento após o terremoto que devastou o país caribenho em 2010. Desde então, a rota tornou-se conhecida internacionalmente, sendo utilizada sobretudo por africanos e latinos. Eles também viajam nas mãos de grupos de tráfico de imigrantes que atuam na fronteira”, registra a Folha. Os haitianos passam pela República Dominicana, Equador e Peru. Os senegaleses vão até a Espanha, onde pegam um avião também para o Peru. Por vezes uma rota pela Bolívia é utilizada. No caminho, uma grande quantidade de propina tem de ser paga, tanto para policiais peruanos quanto para bolivianos.

“Eu vou quebrar sua câmera se você voltar”, ameaça uma funcionária de um albergue, precário, onde ficam os imigrantes em Puerto Maldonado, no Peru, muito próximo à Bolívia e ao Brasil. Curiosamente, os quartos – simples e sujos – possuem fechadura do lado de fora, mas não dentro das acomodações. Um esquema com taxistas já está montado na chegada ao Peru.

Na chegada a São Paulo, após mais de 70 horas de viagem, é o repórter quem entra em contato com representantes da Missão de Paz, uma das organizações da sociedade civil que recebem os imigrantes em São Paulo. Os haitianos e senegaleses estão totalmente desorientados e é o repórter o único guia deles – uma evidência sobre a completa ausência de uma política imigratória que minimamente os receba. Alguns não têm família ou conhecidos. Quase todos não têm dinheiro. “A confusão de imigrantes comoveu alguns passantes, que contribuíram com dinheiro para que eles embarcassem”, relata a matéria. Eles embarcam no metrô.

Nilson Mourão, secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Acre, registra na Folha a mais completa ausência de qualquer política de recebimento dos imigrantes, situação que já perdura desde 2010, após o terremoto no Haiti:

“Nós não temos estruturas. Então, uma política imigratória do governo federal tem que contemplar isso. Os imigrantes veem a porta aberta, eles entram. Eu preciso saber o que eu vou fazer com eles aqui. Vamos recebê-los? Vamos. Estamos recebendo. Dando atenção. Eles vão ficar aqui? Não vão. Vão pra onde? A gente deixa pra que eles se virem? Eles vão por conta própria? Nós vamos organizar esse procedimento? Então isso tá tudo em aberto, para que seja discutido. Eu creio que agora é uma boa oportunidade.”

Depois de desembarcarem do metrô, o repórter da Folha continua a direcioná-los. No local, no entanto, o jornalista é barrado, sem maiores justificativas. O responsável fecha a porta na sua cara.

“O governo do Brasil foi pego também, eu diria, de surpresa com relação a essa nova realidade. Qual é a nova realidade? O Brasil é destino de imigrantes. Não era”, completa Mourão.

Um mês antes, no dia 24 de abril2, a Folha repercutiu um desentendimento entre os governos do Acre e de São Paulo. Por meio da imprensa, a secretária de Justiça de São Paulo, Eloisa Arruda, chamara de “irresponsável” a conduta do governo do Acre ao facilitar a viagem de 400 haitianos para São Paulo nos 15 dias anteriores à matéria. A Folha chama a atenção para uma eventual disputa partidária – enquanto o governo do Acre é do PT, o de São Paulo é do PSDB, sigla opositora dos trabalhistas.

A secretária paulista argumenta existir “um risco real dos imigrantes do Haiti serem aliciados para trabalho escravo ou até mesmo pelo tráfico de drogas”. Um repórter da Folha esteve na paroquia Nossa Senhora da Paz – a Missão Paz, citada na reportagem anterior –, na região central da capital, e afirma ter presenciado “a situação precária dos haitianos”. Novamente, destaca-se que é uma instituição religiosa a responsável por acolher os imigrantes.

A situação é descrita da seguinte forma: “Eles passam o dia vagando pelo entorno da igreja. A comida só chega por doações. Como muitos não têm documentação e endereço fixo na cidade, fica praticamente impossível arrumar um emprego formal. Haitianos que estão há mais tempo em São Paulo tentam auxiliar os compatriotas recém-chegados a encontrarem emprego e estadia.”

O fenômeno não é novo, lembra a matéria da Folha: “Por causa dos sérios problemas sociais do Haiti, há pelo menos três anos, a onda migratória daquele país em direção ao Brasil é grande”.

Nilson Mourão, secretário do Acre já citado anteriormente, afirma à Folha que “não entende a postura do governo paulista”. Segundo Mourão, há três e anos e meio, mais de 20 mil haitianos chegaram ao Acre. Ele argumenta que os haitianos não ficam no Acre: “É apenas uma porta de entrada. A maioria segue viagem rumo ao sul do país. (…) Esse processo não tem nada de novo”, acrescentou.

Mourão argumentou que, nos 15 dias citados, após o fechamento de um abrigo para haitianos na cidade de Brasileia, perto da Bolívia e do Peru, o governo do Acre ficou “obrigado a acelerar a ida dos imigrantes para os seus destinos finais no Brasil”. Ele afirma que o município chegara ao seu limite. “A cidade de Brasileia, de 10 mil habitantes, está com 20% da sua população formada por imigrantes”, afirma, acrescentando que o estado de São Paulo tem condições de abrigá-los por ser “o mais rico da federação”.

O cadastro dos recém-chegados, nesse caso, foi o Ministério Público do Trabalho. A secretaria de Estado paulista diz que existem “apenas 100” na Missão Paz. “Não sabemos onde está o resto”, afirmou.

‘[A vida] não me parece ser muito melhor do que eu tinha no Haiti’

Uma reportagem do jornal O Globo de 19 de abril de 20143 afirma que o fechamento do abrigo de Brasileia “espalhou cerca de 1.700 haitianos por várias cidades do Brasil”, registrando que “ao menos três entidades da sociedade civil oferecem abrigo aos estrangeiros em São Paulo”. A matéria usa ainda o verbo “dispersar” para se referir aos haitianos. Ao jornal carioca, o padre Paolo Parise, diretor do Centro de Estudos Migratórios da Missão Paz, afirmou: “No fim de semana chegaram 40 haitianos na igreja. Já tínhamos 110 pessoas do movimento corriqueiro. Outras entidades também estão cheias. Como fez frio nos últimos dias, não encontramos vagas nos albergues da prefeitura. Colocamos cobertores no chão de um salão e os pusemos lá”. Desde 2009, diz o padre n’O Globo, cerca de 4.200 haitianos passaram pela Missão Paz.

Em depoimento ao jornal, o haitiano Demet Debuier, fotógrafo de 28 anos, disse estar passando por uma “humilhação muito grande”, acrescentando: “Viemos para o Brasil em busca de uma vida melhor, mas isso não me parece ser muito melhor do que eu tinha no Haiti. Na última noite, dormi na chuva. Estou sem tomar banho e sem comer desde que cheguei, há três dias. E não sei quando vou conseguir arrumar emprego”.

‘Ao contrário do que a gente imagina, o Brasil não está pronto para receber os haitianos’

Entre acusações mútuas, o jornal carioca lembra que a ONG Conectas, que atua com o tema, vem denunciando o problema desde agosto de 2013, quando representantes da organização visitaram Brasileia e constataram a emergência humanitária4. Antes mesmo, a organização já vinha se manifestando sobre o tema.5 Ao jornal, uma representante da Conectas – a coordenadora do programa de política externa, Camila Asano – defendeu que o governo “mantenha pelo menos um centro de informações em Brasileia”, pois, segundo ela, esse destino “já está consolidado entre os haitianos” e o fechamento do abrigo “não vai fazer os estrangeiros pararem de viajar para o país”. Ela acrescentou: “A questão dos haitianos é um problema nacional, que envolve uma política de imigração”. Para Camila, o governo deve “incentivar a abertura de locais de acolhida em outras cidades para onde os imigrantes estão seguindo”.

O Ministério da Justiça do governo federal foi procurado pela matéria d’O Globo, mas não respondeu. O pedreiro Romain Ulfreme, haitiano de 42 anos, disse ao diário que as autoridades do Brasil e do Haiti “precisam entrar em acordo”. Ele acrescentou: “Infelizmente, ao contrário do que a gente imagina lá no Haiti, o Brasil não está pronto para receber os haitianos. Se soubesse que ia ser assim, teria ficado em casa. A pobreza é muito grande, mas lá, ao menos, tenho minha casa e minha família”.

No dia 31 de maio de 2014, a Folha anuncia o que seria, aparentemente, uma solução para a questão6.

Em uma ação conjunta, relata o diário, o governo federal, o governo do Estado de São Paulo e a Prefeitura de São Paulo assinaram no dia anterior um termo de compromisso para um “plano de apoio aos imigrantes”. A medida foi assinada durante uma conferência tida como inédita cujo objetivo é, justamente, discutir a política imigratória nacional: a Conferência Nacional sobre Migrantes e Refúgio. Não é totalmente correto afirmar que este encontro foi inédito, pois, como demonstra este trabalho, já ocorreram diversas conferências do tipo, nacionais, regionais e internacionais. No entanto, é parcialmente correto afirmar que esta conferência, no formato das conferências do período democrático pós-ditadura militar – a exemplo das que ocorrem nas áreas de saúde, meio ambiente etc – é inédita.

No Acre, o governo informou à Folha que a Polícia Federal faria o registro inicial dos imigrantes e que seria emitido CPF e carteira de trabalho. O governo de São Paulo, por seu lado, se comprometeu a criar um centro de integração e cidadania para migrantes. “O centro, segundo o governo, emitirá documentação, oferecerá cursos de português e profissionalizantes e terá posto da Defensoria Pública”, diz a matéria, que acrescenta: “A prefeitura é responsável por criar um centro de referência e acolhida, no centro, para abrigar 200 imigrantes”.

O número de vagas, como fica evidente a partir do relato mais amplo da questão, é insuficiente. No entanto, destaca-se que, caso a medida seja efetivamente adotada, uma espécie de “hospedaria de imigrantes”, no modelo das hospedarias existentes durante os séculos 19 e 20, poderia ser novamente implementada.

NOTAS

1 A matéria, que inclui um documentário de 16 minutos, está disponível em http://bit.ly/Snqf3w

2 Disponível em http://bit.ly/Snrjog

3 Disponível em http://glo.bo/SnsxzK

4 O relato completo da Conectas está em http://bit.ly/Sns14R

5 O primeiro posicionamento data de janeiro de 2012, acesse em http://bit.ly/Sns9RY

6 Matéria disponível em http://bit.ly/SnsELA

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *