O terrorismo do Estado brasileiro contra os estrangeiros durante a ditadura civil-militar (1964-1985)
Como os militares perseguiram, torturaram e assassinaram estrangeiros e descendentes de imigrantes no Brasil, expulsaram religiosos estrangeiros progressistas e monitoraram de perto até mesmo a ONU e setores da Igreja Católica que tentavam proteger cidadãos de outros países.
O movimento na baía de Guanabara é anunciado em um jornal de 1929: às primeiras horas da manhã, registra o jornal O Paiz1, fundeou no ancoradouro dos navios mercantes o vapor nacional “Raul Soares”, vindo de Hamburgo, na Alemanha, com escalas em Roterdã, Havre, Leixões, Lisboa, Pernambuco e Bahia. No total, foram 28 dias de viagem. Apesar das boas condições sanitárias, informa o diário em sua edição de 13 de abril, o navio demorou “longo tempo” para atracar devido ao “grande número de immigrantes que trouxe para esta cidade, o que obrigou minuciosa inspecção da parte da polícia marítima”. O Raul Soares segue para Santos, para onde levará 26 outros passageiros.
Transatlântico alemão no início do século XX, o Raul Soares tinha a função de transportar imigrantes europeus para a América do Sul, até ser adquirido pela Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, em 1925, quando continuou a cumprir em parte esta função, além de prestar outros serviços. Esta embarcação pode ser considerada um exemplo de como as prioridades do Estado brasileiro mudariam drasticamente a partir da década de 1930: o Raul Soares funcionaria como navio-prisão em 1935, durante o Levante Comunista e na Revolta dos Sargentos em Brasília.
Logo após o golpe de 1964, entre abril e novembro, o navio permaneceu ancorado no porto de Santos e voltou a funcionar como navio-prisão, afirma um relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) publicado em dezembro de 2014. Para a nova função de abrigar presos políticos, diz o documento, a composição do navio foi adaptada: os porões foram divididos em pequenas celas. Os calabouços do navio foram utilizados como locais de tortura: em uma pequena sala, semelhante a um frigorífico, o preso ficava com água gelada até os joelhos. O local era chamado de “Night and Day”, e a área de despejo de fezes foi apelidada de “Casablanca”. O navio teve presos políticos até 2 de novembro de 1964, acrescenta o relatório da CNV, quando desatracou do porto de Santos.2
Até mesmo uma das mais importantes hospedarias de imigrantes da História do Brasil, a Ilha das Flores, virou estrutura para as sessões de tortura da ditadura civil-militar (1964-1985). Segundo o mesmo relatório, a base de fuzileiros navais da Ilha das Flores, situada em São Gonçalo (RJ), foi uma das instalações militares utilizadas pelas Forças Armadas para a realização de “torturas, morte e outras graves violações de direitos humanos contra presos políticos”. A CNV apurou que cerca de 200 pessoas estiveram presas no local entre os anos de 1969 e 1971. Esse número, no entanto, é impreciso e “há a probabilidade de ser maior”, diz a Comissão. Antes de 1969, a Ilha das Flores abrigou prisioneiros de guerra durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
Entre 1883 e 1966, a Ilha das Flores abrigou também a Hospedaria dos Imigrantes. Integrada ao Complexo Naval da Marinha do Brasil, às margens da rodovia Niterói-Manilha, a Ilha das Flores foi um dos locais em que a CNV realizou uma visita de diligência, em outubro de 2014, contando com a participação de dois peritos criminais, cinco membros da Comissão da Verdade, um ex-soldado do corpo de fuzileiros navais da Marinha e dez ex-presos políticos que foram levados para sessões de tortura na Ilha. A ex-presa política Zilea Reznik relatou em vídeo à CNV, durante a visita, que durante as sessões de tortura um dos militares a questionou: “Como que uma branca vai ficar casada com um preto?”3
Assim, a estrutura do Estado brasileiro se transformou profundamente de modo a ampliar a repressão àqueles cidadãos que considerava “subversivos” e “comunistas”. Os estrangeiros, mais do que nunca, seriam vistos sob a perspectiva da “segurança nacional”, com as políticas públicas sendo elaboradas, aberta ou reservadamente, sob este princípio.
No dia 1o de abril de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo legalmente constituído do então presidente João Goulart. O editorial do jornal O Globo de 2 de abril assim interpretou o acontecimento: “Ressurge a Democracia! Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente das vinculações políticas simpáticas ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é de essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ter a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada” (grifo nosso).
Em outro trecho, o diário carioca registraria: “Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos” (grifo nosso), acrescentando: “Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais” . Acrescenta O Globo: “Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranquilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-a do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal”. Na página superior da primeira página, uma foto do prédio da União Nacional dos Estudantes em chamas tem a seguinte legenda: “O incêndio da UNE mostrou o sentimento de revolta do povo contra os agitadores e falsos estudantes”. O diário carioca diz em sua edição de 5 de abril que a “Revolução democrática antecedeu em um mês a revolução comunista”.
Outros jornais reagiram de modo semelhante, como é o caso do O Estado de Minas de 2 de abril: “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do estado e chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade”.
O jornal Tribuna da Imprensa do dia posterior ao golpe, 2 de abril, foi ainda mais violento: “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou., o Sr João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”. O Jornal do Brasil de 1o de abril segui o mesmo caminho: “Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade (…) Legalidade que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem: a disciplina e a hierarquia militares. A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas” .
Editorial do Correio da Manhã do dia 31 de março antecipa o clima na imprensa: “O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual. Agora, basta!” No dia seguinte, de modo pouco sutil, sentencia: “Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: Saia!” Em uma das manchetes do dia 2 de abril, Carlos Lacerda “anuncia volta do país à democracia”. Registrando a posse de Castelo Branco, a edição de 16 de abril do Correio Braziliense escreve: “Milhares de pessoas compareceram, ontem, às solenidades que marcaram a posse do marechal Humberto Castelo Branco na Presidência da República (…) O ato de posse do presidente Castelo Branco revestiu-se do mais alto sentido democrático, tal o apoio que obteve”. 4
Estava instalada, com o apoio massivo da imprensa brasileira, mais uma ditadura latino-americana fortemente marcada pelo contexto da Guerra Fria e, no caso brasileiro, fortemente amparada pelo governo estadunidense.5 Neste subcapítulo, faremos uma breve e essencial contextualização desse período, para em seguida retomar a análise da imprensa do período.
A disputa ideológica que opunha o mundo capitalista de um lado e o mundo socialista de outro – liderados respectivamente pelos governos dos Estados Unidos e da União Soviética – encontrava um campo de disputa desigual no Brasil, com praticamente todas as publicações impressas de grande circulação orientadas pela perspectiva capitalista. Ao mesmo tempo, a campanha internacional contra o comunismo capitaneada pelos estadunidenses já mostrava resultados, mesmo que o Brasil ainda vivesse sob um governo relativamente democrático e de orientação socialista ou, pelo menos, social-democrata.
Em 31 de janeiro de 1960, na reunião dos representantes de seus países-membros realizada em Punta del Este (Uruguai), a Organização dos Estados Americanos (OEA) resolveu, por pressão dos Estados Unidos, que a adesão por qualquer membro da OEA ao marxismo-leninismo era “incompatível com o sistema interamericano e o alinhamento de qualquer governo com o bloco comunista quebraria a unidade e a solidariedade do continente”. Mesmo com a oposição do representante brasileiro, a decisão levou à suspensão de Cuba da organização continental.6
Ainda na década de 1950, uma das principais estruturas de repressão do Estado brasileiro era o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ampliado e fortalecido durante o governo Vargas. Com seu centro de inteligência baseado em São Paulo, as funções do órgão eram, segundo a Comissão da Verdade, dirigir os serviços policiais ligados à investigação, à prevenção e à repressão dos delitos de caráter político, social e econômico; fiscalizar importação, exportação, comércio, fabricação, emprego ou uso de armas, explosivos, inflamáveis, munições, produtos químicos agressivos ou corrosivos; e, no que interessa ao nosso objeto, fiscalizar a entrada, a permanência e a saída de estrangeiros do território nacional, a partir do estado de São Paulo.
Destaca-se que, ao mesmo tempo que o DOPS/SP era responsável por fiscalizar os estrangeiros, também comandava o presídio político, que funcionava em dois locais, na rua Paraíso e na avenida Celso Garcia, além de operar em outros dois setores, o Serviço Secreto e o Serviço Especial de Vigilância.7 Assim, a criminalização dos imigrantes indesejáveis se tornava muito mais eficiente, como veremos mais à frente.
Em 1966, já sob a ditadura, o governo federal criou o Centro de Informações do Exterior (Ciex), voltado não apenas à coleta mas também “à aquisição de informações com o uso de meios encobertos, não raro clandestinos”, segundo a Comissão da Verdade. O Ciex trabalhava em conjunto com o Ministério das Relações Exteriores (MRE), por meio da Divisão de Segurança e Informações e do Departamento Político e Cultural, com a função de coletar informações que interessavam ao governo e monitorar indivíduos brasileiros ou estrangeiros que consideravam subversivos.
Um dos principais agentes repressores do período foi o diplomata e empresário Manoel Pio Corrêa Júnior, que ocupou o cargo de embaixador do Brasil no Uruguai de setembro de 1964 a janeiro de 1966 e conduziu uma severa política de monitoramento dos brasileiros exilados, de acordo com o relatório da CNV. Secretário-geral do Ministério de Relações Exteriores (MRE) de janeiro de 1966 a março de 1967, foi ele quem criou o Ciex. Foi também embaixador na Argentina, de outubro de 1967 a janeiro de 1969, além de ter presidido as filiais brasileiras das multinacionais Siemens (alemã) e Ishikawajima (japonesa).8
No plano internacional, começavam a circular nos anos 1970 denúncias, inclusive nos âmbitos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), de violações sistemáticas de direitos humanos e da existência de presos políticos no país, o que era enfaticamente negado pelo governo brasileiro. As autoridades nacionais buscaram reagir: já em 1970, o então secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e futuro presidente da República, João Figueiredo, submeteu à Presidência um documento intitulado “Política governamental de comunicação social no campo externo”.
Resultado das atividades de um grupo de trabalho presidido pelo representante do CSN e integrado por representantes do Serviço Nacional de Informações (SNI), Assessoria Especial de Relações Públicas, MRE e Estado-Maior das Forças Armadas, conforme relata a Comissão da Verdade, esse documento propunha que o governo brasileiro enfrentasse e combatesse “sistematicamente a guerra psicológica adversa no campo externo, em especial a campanha de difamação contra o Brasil, movida pelo comunismo internacional, a fim de neutralizá-la ou, pelo menos, minimizá-la no mais curto prazo. Outrossim, atuará de forma permanente, objetivando elevar o prestígio internacional do país” (grifo nosso).9
A ação internacional mais bem estruturada dos regimes opressores sul-americanos, no entanto, foi a denominada Operação Condor (Plan Cóndor, ou ainda Operativo Cóndor), nome dado, conforme definição da CNV, a um “sistema secreto de informações e ações criado na década de 1970, por meio do qual Estados militarizados do continente americano (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) compartilharam dados de inteligência e realizaram operações extraterritoriais de sequestro, tortura, execução e desaparecimento forçado de opositores políticos exilados”. Sob a inspiração da doutrina de segurança nacional (DSN), de alcance continental naquele período, as ditaduras aliadas na Operação Condor elegeram, de forma seletiva, inimigos ideológicos, denominados “subversivos”, como os alvos por excelência de suas práticas de terrorismo de Estado, acrescenta a CNV.10
Grande parte dos cidadãos mortos e torturados eram argentinos, segundo a Comissão da Verdade, que conclui: “Diante dos documentos e testemunhos expostos, está claro que graves violações de direitos humanos foram praticadas contra cidadãos argentinos em território brasileiro, por ações de agentes brasileiros e argentinos, com o conhecimento de altas autoridades governamentais do Brasil e da Argentina”.11
Um dos casos mais emblemáticos foi o do cidadão argentino Norberto Armando Habegger, jornalista, ensaísta e escritor que desapareceu em 31 de julho de 1978, quando chegou ao Rio de Janeiro (RJ), proveniente da cidade do México. Influente jornalista na Argentina, Chile e Uruguai, foi secretário político do Movimento Peronista Montonero e, durante a Copa do Mundo deste mesmo ano, realizada na Argentina, liderou uma importante campanha de denúncias das atrocidades cometidas pela ditadura militar que tinha à frente, em seu país, o general Jorge Rafael Videla. Segundo a Comissão da Verdade, as circunstâncias do desaparecimento sugerem que Norberto Armando Habegger foi capturado em uma operação conjunta de agentes da repressão brasileiros e argentinos. O objetivo era monitorar a movimentação de militantes de esquerda argentinos em território brasileiro. 12
Nas reuniões sobre o tema, mantidas no nível do mais alto escalão dos governos do Brasil e da Argentina, eram debatidas informações de inteligência, obtidas pelos órgãos da repressão, relativas ao cenário internacional. Em um destes encontros, datado do final dos anos 1970 e disponível nos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI), foi discutida a “situação de estrangeiros no Brasil sob a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Os agentes de informações do SNI observam que “os serviços responsáveis pela segurança interna têm manifestado preocupação quanto aos antecedentes de algumas pessoas relacionadas pelo ACNUR, cuja seleção e triagem não se processam de maneira muito rigorosa”.13
Os estrangeiros, acrescenta o documento, se locomoviam livremente pelo país em razão da “incapacidade do ACNUR em monitorar seus refugiados”, e poderiam participar de possíveis “atividades subversivas” contra o Brasil ou contra seu país de origem. “Há indícios de que o ACNUR vem dando prioridade aos elementos originários da Argentina”, diz o relato da reunião, observando que “o recente decreto aprovado pelo Governo argentino, concedendo ao preso político o direito de opção para deixar o país, deverá aumentar o afluxo de refugiados buscando a proteção do Comissariado”.
O parágrafo final do documento demonstra a preocupação dos agentes com os possíveis “subversivos” que estariam no país e deixa claro que, para eles algo “mais contundente” deveria ser feito: “(…) a situação de estrangeiros − argentinos em sua maioria − que se encontram no BRASIL sob a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), vem sendo estudada por representantes do Ministério da Justiça, do Ministério das Relações Exteriores, do Serviço Nacional de Informações e da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional”.14
Em depoimento à Comissão da Verdade no dia 25 de março de 2014, o coronel Paulo Malhães fez outras revelações sobre uma operação militar encoberta desenvolvida pelos governos do Brasil e da Argentina entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980, à qual se referiu como “Operação Gringo” e cujos objetivos eram os mesmos: realizar buscas por “subversivos” argentinos em território nacional, contando para isso com todo o efetivo de agentes do Centro de Inteligência do Exército (CIE) do Rio de Janeiro.
Um relatório do CIE denominado “Operação Gringo/CACO no 11/79”, de 31 de dezembro de 1979, apreendido na residência de Malhães durante busca e apreensão realizada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal em 28 de abril de 2014, diz o seguinte: “No nosso trabalho, a entidade que mais se sobressai no apoio aos refugiados políticos alienígenas é a CARITAS BRASILEIRA (…) Suas atividades no BRASIL, em apoio aos subversivos do continente, em especial do CONE SUL, têm sido alvo de nossas operações de informações ”. Durante outro depoimento à CNV em 7 de fevereiro de 2014, o ex-analista do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do Exército brasileiro, Marival Chaves Dias do Canto, explicou como foi montada a Operação Gringo, que incluía o apoio de um agente infiltrado:
(…) Eles pegaram um gringo, (…) esse sujeito eu não sei o nome dele, (…) veio para o Brasil e passado ao controle dos militares (…) da seção de operações do CIE, que tinha esse braço no Rio de Janeiro. E aí criou-se a chamada Operação Gringo. (…) Esse agente infiltrado, argentino, o que ele fazia? Ele se ligava com vários indivíduos ativistas e organizações também. Eu sei que ele fez contato com um sujeito que foi preso lá atrás, numa fazenda, lá no Mato Grosso, lá atrás. São dois irmãos que, nessa ocasião do contato, estavam militando no PCdoB. Esse sujeito produziu muita informação, e ele era assalariado. Era por conta dessa operação que a Argentina mandava U$ 20 mil para cá todo mês.15
Uma das organizações citadas pelo Exército é a Cáritas, um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e à Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e que à época dava apoio aos refugiados que entravam no território brasileiro, em grande parte tidos pelo governo como subversivos. O próprio clero progressista, no entanto, era alvo da repressão militar, o que aumentava o estigma dos líderes católicos progressistas junto às autoridades do regime.
Os religiosos foram alvo de investigação militar também durante a Guerrilha da Araguaia, ocorrida no sudeste do Pará e norte de Goiás, como mostra um relatório de 9 de agosto de 1973 de autoria do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA). Segundo o informe, os freis da ordem dominicana são conhecidos por sua proximidade com a esquerda desde 1968 e, no caso específico do Araguaia, teriam contribuído para “insuflar o conflito latente entre posseiros e latifundiários, chegando a incitar a resistência armada dos posseiros em ocasiões específicas”, relatou a Comissão Nacional da Verdade.16
Uma atenção especial é dedicada aos clérigos estrangeiros, considerados “portadores de ideologias exógenas ao ordenamento social existente no Araguaia”. A preocupação dos órgãos de segurança com os religiosos tem origem na relação desenvolvida entre estes e os posseiros pobres da região, diz a CNV. Na avaliação dos organismos oficiais, o clero progressista, ao prestar assistência social e orientação doutrinária aos camponeses, teria condições de fazer o que os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pretenderam fazer, sem ter obtido sucesso.
“Em outras palavras, os religiosos teriam condições de conquistar a confiança da grande maioria da população pobre na região e, assim, mobilizá-la na direção do enfrentamento direto dos elementos mais poderosos do local, os grandes proprietários de terra”, diz o relatório da Comissão da Verdade, acrescentando que o cerne da questão, tanto durante como após a Guerrilha do Araguaia, era a “terra e a disparidade entre as condições de vida dos posseiros pobres e as dos grileiros e latifundiários ricos, associados à polícia local e a outras instituições do Estado”.17
A partir dessa desconfiança com as ideologias exógenas, “(…) uma das formas da violência do estado ditatorial contra a ICAR [Igreja Católica Apostólica Romana] foi restringir o acesso de missionários estrangeiros para atender os serviços religiosos no país e expulsar aqueles que desenvolviam ações em favor dos direitos de indígenas, camponeses e operários – em oposição ao modelo de desenvolvimento econômico e político proposto pela ditadura militar”. Soma-se a essa ação arbitrária, acrescenta a Comissão da Verdade, o banimento de clérigos brasileiros com base na Lei de Segurança Nacional. “Os missionários e os agentes de pastoral eram tomados como inimigos do Estado. Vários missionários estrangeiros foram expulsos exclusivamente pela solidariedade que prestaram ao povo brasileiro”, diz a CNV.
No âmbito das graves violações de direitos humanos perpetradas entre 1964 e 1985, a Comissão Nacional da Verdade confirmou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime civil-militar, sendo 191 os mortos, 210 os desaparecidos e 33 os desaparecidos cujos corpos tiveram seu paradeiro posteriormente localizado. Este número é “certamente” maior, nas palavras da Comissão, devido à “falta de acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas, oficialmente dada como destruída”.18 Desse total, segundo nosso levantamento, cerca de 6% das vítimas haviam nascido em outro país (entre estrangeiros e naturalizados) e outros 10% eram descendentes de imigrantes.19
Do total de 434 mortos ou desaparecidos pela ação do Estado brasileiro entre 1964 e 1985, 24 nasceram no exterior. A nacionalidade estrangeira com o maior número de vítimas é a argentina (11).20 Entre os identificados pela Comissão, outros três eram uruguaios21, com os demais tendo nascido na Bolívia, Espanha, França, Itália (2), Iugoslávia, Paraguai, Reino Unido, Síria e Tchecoslováquia.22
Uma das mais importantes lideranças da guerrilheira brasileira no período, Carlos Marighella, foi o primeiro dos sete filhos do imigrante italiano Augusto Marighella e da baiana Maria Rita do Nascimento, uma negra descendente de escravos hauçás.23 Uma música do compositor Caetano Veloso lançada em sua obra “Abraçaço”, em 2012, homenageia a vida de Marighella, e um dos trechos do canção lembra sua ascendência estrangeira: “Filho de um italiano / E de uma preta hauçá”.24
Chama atenção, ainda, a grande quantidade de descendentes de japoneses, em comparação com as demais nacionalidades estrangeiras, entre as vítimas do regime militar. É o caso de Luiz Hirata, nascido em Guaiçara (SP) e oriundo de uma família de imigrantes japoneses e agricultores. Hirata cursava Agronomia na Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, e foi militante da Juventude Universitária Católica (JUC) e, depois, da Ação Popular (AP).25
Em outro caso notável, a estudante de Letras da USP e filha mais velha de um casal de imigrantes japoneses do interior de São Paulo, Suely Yumiko Kanayama – cujo codinome era“Chica” e foi chamada pelos militares de “japonesa” ou “japonesinha” – foi capturada e presumivelmente morta em 1974 durante a Guerrilha do Araguaia, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Na universidade, Suely tornou-se amiga de Rioko Kaiano e, juntas, ingressaram no grupo guerrilheiro Ação Popular (AP). Mais tarde, outra nikkei, Nair Kobashi, as convidou para militarem no PCdoB. Passaram, então, a serem chamadas de o “exército japonês”.
Sobre Suely, Lesser escreveu em seu Uma diáspora descontente (2008):
A “luta até a morte”, semelhante a de um kamikaze, também foi importante para Célia Abe Oi, jornalista da Página Um e hoje diretora do Museu da Imigração Japonesa de São Paulo. Ela me disse: “Yumiko foi uma heroína para nós”. Quando lhe perguntei o que ela queria dizer com isso, ela explicou que Kamayana representava o “caminho do samurai”, que significa levar algo até seu limite máximo, e também que ela era uma pessoa com um senso de brasilidade forte ao ponto de torná-la disposta a dar a vida por seu país.
A pesquisadora Cristina Miyuki Sato Mizumura comenta a interpretação de Célia feita a Lesser dizendo o seguinte:
A jornalista atribuiu, assim, à morte de Suely um sentido heroico e nobre. A jovem nikkei seria uma guerreira samurai com forte sentimento de lealdade ao Brasil, e não uma guerrilheira subversiva que traiu sua família, sua comunidade de origem e a própria juventude brasileira com sua militância política. A história da guerrilheira nikkei do Araguaia é um contraponto à impressão generalizada de que os nipo-brasileiros não se envolvem em questões políticas ou em situações de conflito, preferindo abster-se de polêmicas ou no máximo buscando formas de entendimento que evitem o confronto direto.
A primeira matéria sobre Suely na imprensa brasileira foi anunciada na revista da comunidade japonesa Página Um de 3 de julho de 1979, a ser publicada na edição seguinte, e segundo Mizumura se tornaria uma das mais marcantes do jornalismo nipo-brasileiro.
Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil pelo desaparecimento de 62 pessoas na região do Araguaia no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, incluindo Suely. A Comissão da Verdade afirma que ela é considerada desaparecida política por não terem sido entregues os seus restos mortais aos familiares, o que não permitiu o seu sepultamento. “Recomenda-se a retificação da certidão de óbito de Suely Yumiko Kanayama, assim como a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso para a localização de seus restos mortais e identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos”, disse a Comissão no relatório.
Outros, como Antônio Benetazzo, seguiram a trajetória de perseguição de sua família no país de origem. Nascido em Verona, na Itália, Benetazzo foi um dos cidadãos estrangeiros mortos pela ditadura militar brasileira, um filho de imigrantes perseguidos em seu próprio país pelo fascismo. Ele chegou ao Brasil com 9 anos de idade e, no interior paulista, iniciou a participação no movimento estudantil, fazendo parte do Centro Popular de Cultura (CPC) e, em pouco tempo, sendo eleito um dos dirigentes da União Nacional dos Estudantes (UNE). Em 1962, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). 26
Uma das primeiras vítimas da repressão foi uma mulher de 65 anos nascida na Síria em 1899 e criada no Brasil. Logo após ter tomado conhecimento do golpe militar de 1964, Labibe Elias Abduch dirigiu-se para o centro da cidade, no Rio de Janeiro, à procura de informações sobre o desenrolar do movimento militar no estado do Rio Grande do Sul, onde um de seus filhos se encontrava. De acordo com uma edição especial da revista O Cruzeiro, de 10 de abril de 1964, Labibe morreu durante uma manifestação de oposição ao golpe, em frente ao Clube Militar, na Cinelândia:
Na verdade, populares tentaram, pouco depois, invadir a sede da entidade de classe dos oficiais do Exército, no que foram obstados pelos disparos dos tenentes, capitães, majores, coronéis e generais que lá se encontravam. Os oficiais dispararam de início para o ar e, por fim, para valer. […] 14 horas. É o sangue. A multidão tenta, mais uma vez, invadir e depredar o Clube Militar. Um carro de choque da PM posta-se diante do Clube. O povo presente vaia os soldados. Mais tarde, choques do Exército, chamados a pedido do marechal Magessi, presidente do Clube Militar, dispersam os agitadores. Que voltam na recarga, pouco depois (para sua infelicidade). Repelidos a bala, deixam em campo, feridos, vários manifestantes; entre eles Labib Carneiro Habibude e Ari de Oliveira Mendes Cunha, que morreram às 22 horas, no Pronto-Socorro.27
Segundo a Comissão da Verdade, a causa mortis registrada na certidão de óbito indica que Labibe morreu em decorrência de “ferimento transfixante do tórax, por projétil de arma de fogo, hemorragia interna”. Uma lei de junho de 2004 aumentou a abrangência da responsabilidade do Estado em episódios como este durante a ditadura, passando a considerar também os “que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestação pública ou em conflitos armados com agentes do poder público” . Com isso, Labibe passou a constar como uma das 434 vítimas da repressão no período, tendo morrido no dia 1o de abril em um hospital público no centro do Rio.28
Um dos principais jornais “subversivos” do período analisado neste capítulo (1946-1985) é o jornal Voz Operária. Fundado em 1949, o jornal foi durante mais de uma década o porta-voz do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1959, dentro de um processo de reformulação de sua linha editorial, o PCB decidiu fechar o periódico e fundar um novo jornal, que recebeu o nome de Novos Rumos, este posteriormente extinto logo após o golpe militar. Entre 1964 e 1975, o Voz Operária voltou a ser publicado na clandestinidade, sendo editado no exterior até agosto de 1979. Além disso, teve alguns números editados clandestinamente durante o ano de 1980.29
O periódico publicava, entre outras informações, os debates internos sobre os rumos da resistência contra a ditadura, denúncias sobre as ações de repressão do Estado e a tortura contra presos políticos, bem como textos de setores da Igreja Católica que estavam alinhados com os movimentos de contestação ao regime ditatorial. Quando a imprensa internacional publicava informações sobre as violações de direitos humanos que estavam ocorrendo no país, o jornal frequentemente as repercutia em suas páginas.
Buscamos contextualizar brevemente o período da ditadura civil-militar (1964-1985), mostrando como os estrangeiros, e os imigrantes em especial, foram alguns dos atingidos pelo terrorismo de Estado30 perpetrado por diversos governos sul-americanos, com apoio de potências estrangeiras como Estados Unidos e Reino Unido, contra cidadãos estrangeiros e nacionais, em especial no que diz respeito ao território brasileiro. Aconselhamos, para a continuidade da pesquisa, o relatório da CNV disponível em www.cnv.gov.br
NOTAS
1 O PAIZ. O movimento da Guanabara. 13 abr. 1929. Disponível em http://bit.ly/1Gi0zJx. Acesso em 10 jan. 2015.
2 Relatório da CNV, 2014, v.1, p.827. A lista nominal de presos no Raul Soares em 1964 pode ser acessada em http://bit.ly/1Gicmrd
3 Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), dez. 2014, v.1, p.746. Disponível em www.cnv.gov.br. Relato disponível em http://bit.ly/1GidFGt. O vídeo em que ex-presas e ex-presos reconhecem a casa e indicam as torturas que ocorriam está disponível em http://bit.ly/casailhadasflores
4 CARTA MAIOR. As manchetes do golpe militar de 1964. 31 mar. 2009. Disponível em http://bit.ly/1vrckMs. Acesso em 10 jan. 2015.
5 CNV, 2014, v.1, p.226-229.
6 CNV, 2014, v.1, p.226.
7 CNV, 2014, v.1, p.162.
8 CNV, 2014, v.1, p.181-183.
9 CNV, 2014, v.1, p.360.
10 CNV, 2014, v.1, p.219.
11 CNV, 2014, v.1, p.152.
12 CNV, 2014, v1., 256-257.
13 CNV, 2014, v1., 257.
14 CNV, 2014, v1., 257-258.
15 CNV, 2014, v.1, p.258-259.
16 CNV, 2014, v.1, p.713.
17 CNV, 2014, v.2, p.175-176.
18 CNV, 2014, v.1, p.963.
19 CNV, 2014, v.1, p.438;444; Os descendentes foram identificados a partir das fichas de CNV, 2014, v.3 e de informações biográficas de cada um dos indivíduos recolhidos em sites com informações genealógicas. Pode ser, portanto, muito maior o número de descendentes de imigrantes. São eles: Alexander José Ibsen Voerões, Ana Maria Nacinovic Corrêa, Ana Rosa Kucinski/Ana Rosa Silva, André Grabois, Antônio Marcos Pinto de Oliveira, Arno Preis, Carlos Marighella, Carlos Schirmer, Catarina Helena Abi Eçab, Chael Charles Schreier, Eremias Delizoicov, Francisco Seiko Okama, Frederico Eduardo Mayr, Gelson Reicher, Gustavo Buarque Schiller, Hiroaki Torigoe, Horacio Domingo Campiglia, Iara Iavelberg, Ichiro Nagami, Iguatemi Zuchi Teixeira, Issami Nakamura Okano, João Antonio Santos Abi Eçab, João Carlos Haas Sobrinho, José Guimarães, José Idesio Brianezi, José Lavecchia, José Roberto Spiegner, Leopoldo Chiapetti, Lincoln Cordeiro Oest, Luiz Ghilardini, Luiz Hirata, Massafumi Yoshinaga, Maurício Grabois, Napoleão Felipe Biscaldi, Nelson de Souza Kohl, Norberto Nehring, Olavo Hanssen, Paulo Stuart Wright, Roberto Rascado Rodriguez, Rui Osvaldo Aguiar Pfútzenreuter, Sérgio Fernando Tula Silberberg, Stuart Edgar Angel Jones, Suely Yumiko Kanayama e Yoshitane Fujimori. Ver CNV, 2014, v.3
20 São eles: Antonio Luciano Pregoni, David Eduardo Chab Tarab Baabour, Eduardo Gonzalo Escabosa, Enrique Ernesto Ruggia, Jorge Alberto Basso (que também era brasileiro), Jorge Oscar Adur, Liliana Inés Goldenberg, Lorenzo Ismael Viñas, Mónica Suzana Pinus de Binstock, Norberto Armando Habegger e Roberto Adolfo Val Cazorla. Ver CNV, 2014, v.3
21 São eles: Ary Cabrera Prates, Juvelino Andrés Carneiro da Fontoura Gularte e Marcos Basílio Arocena da Silva Guimarães (Uruguai). Ver CNV, 2014, v.3
22 São eles: Juan Antônio Carrasco Forrastal (Bolívia), Miguel Sabat Nuet (Espanha), Jean Henri Raya Ribard (França), Antônio Benetazzo e Líbero Giancarlo Castiglia (Itália), Vladimir Herzog (Iugoslávia), Soledad Barrett Viedma (Paraguai), Walter Kenneth Nelson Fleury (Reino Unido), Labibe Elias Abduch (Síria) e Pauline Philipe Reichstul (Tchecoslováquia). Ver CNV, 2014, v.3.
23 CNV, 2014, v.3 p.361.
24 BARRETO, Gustavo. Filho de um italiano e de uma preta hauçá. Mídia Cidadã, 5 mar. 2014. Disponível em http://bit.ly/1D0KNyY. Acesso em 10 jan. 2015.
25 CNV, 2014, v.3, p.782.
26 CNV, 2014, v.3, p.1.071.
27 O CRUZEIRO, 10 abr. 1964 apud CNV, 2014, v.3, p.116-117.
28 CNV, 2014, v.3, p.116-117.
29 Ver http://bit.ly/1ySHpV2; CNV, 2014, v.2, p.388; edições digitalizadas entre 1949 e 1959 estão disponíveis no site da Biblioteca Nacional, em http://hemerotecadigital.bn.br/voz-operaria/154512. Sobre o Novos Rumos, ver http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/novos-rumos
30 O termo “terrorismo de Estado” é utilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) para designar a Operação Condor. Ver CNV, 2014, v.1, p.41.
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