‘O país carece de braços que venham em auxílio da lavoura’
Breve leitura do livro de Delso Renault, “O Dia-a-dia no Rio de Janeiro segundo os jornais, 1870-1889” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1982)
Estamos no começo do ano de 1871. No dia 14 de janeiro, o governo cria, por decreto, a Diretoria de Estatística. O país não conta com um censo. Uma das principais discussões é a reforma do estado servil, através do ventre livre, que gerou intensa reação dos latifundiários, donos de terra e de escravos.
A atração de imigrantes europeus, principalmente italianos e alemães, é tida como um equívoco por fazendeiros para substituir a mão-de-obra escrava. A agricultura é o maior setor da economia e isso ecoa na política.
Um dos temas de debate da imprensa carioca é a importação dos chins, nome dado ao povo do território chinês.
O Diário do Rio de Janeiro, por meio de um editorial no dia 15 de setembro de 1869, defende: “São os homens de que precisamos”, face ao perigo do êxodo de trabalhadores das lavouras de algodão, cana, café e fumo.
Os imigrantes franceses possuem uma contribuição — entre as tantas — peculiar: com a prática de higiene ainda não se popularizado entre a sociedade fluminense, a indústria francesa oferece uma coleção invejável de loções, perfumes, depilatórios, tinturas, desinfetantes e outros produtos destinados à higiene em geral (tanto corporal quanto da casa).
Não é por menos: o hábito era tão raro que uma empresa e a companhia de bondes se associam e garantem que quem tomar “o bond que sahe do Largo de São Francisco de Paula, às 5 horas e 3 minutos da manhã para a Tijuca, tem direito a um banho gratuito de água comum, na chácara de água ferrea do Amorim” (Jornal do Comércio, 15/11/1871).
No comércio — descreve o mesmo periódico, desta vez na edição de 27 de junho do mesmo ano — acha-se “papel cheiroso inflamável, queimando sem bulha”. perfuma e purifica o ar, produz sensações agradáveis, “desinfecta o ar dos doentes, mata mosquitos”.
Em 1872 acontece o primeiro recenseamento do país — na verdade, o primeiro censo nacional do Brasil, chamado de Censo Geral do Império. São cerca de 10 milhões de pessoas em todo o País, sendo oficialmente 274.972 habitantes no Rio de Janeiro, vivendo a maior parte nas freguesias urbanas (230 mil).
Novidades do paquete”, anuncia um livreiro, se referindo à embarcação que acaba de atracar com literatura estrangeira. São obras vindas da Europa de Victor Hugo, Michelet, Miguel de Cervantes, Bernadim Ribeiro, Rebelo da Silva e, claro, a Bíblia. Também há clássicos de autores como Voltaire, Homero e Rousseau. A competição é com os autores do realismo brasileiro.
Um debate atual se fez à época: a questão dos direitos autorais. Em 1862, um editorial do Diário do Rio de Janeiro lembra que as literaturas inglesa, alemã e francesa se popularizam mais facilmente do que a portuguesa. “O escriptor português, e não precisa chamar-se Alexandre Herculano, Rebello da Silva, Latino Coelho, seja quem fôr, aparece no mercado mais caro, mais pesado á bolsa do que Humbold, Stuart Mill ou Victor Hugo” (p.35).
Portugal julga ser prejudicado. “Na verdade, prejudicados são ambos: autor e leitor” (Ib.), completa Delso Renault. Ainda não há solução à vista, mesmo após sucessivas “revoluções” tecnológicas da comunicação.
A cidade: Rio de Janeiro. O ano: 1876. Na rua do Ouvidor, a Livraria Universal dos Laemmert anuncia os jornais estrangeiros que poderão ser assinados pelos leitores em 1877: La Nature – Revue des Sciences, Petit Journal pour rire, Journal du dimanche, La Mode Illustrée, La Toilette des Enfants, Conseiller des Dames et Demoiselles e Les Modes Françaises – Journal des Tailleurs.
Há outros, publicados em Londres e Nova York: Illustrated London News, The Graphie, Punch, All the year round, The London Journal, The Young Ladies Journal, Family Herald, The Mechanic’s Magazine, The Engineer.
Um dos mais procurados, no entanto, se chamava “Brasil” e era publicado em Lisboa – “dedicado à defeza dos interesses dos subditos portuguezes residentes no Império”.
É importante lembrar que o país era tido como “campeão mundial do analfabetismo”: em 1872, a taxa nacional de analfabetismo era de 82,3% para as pessoas de 5 anos ou mais, situação que se manteve inalterada pelo menos até o segundo censo, realizado em 1890 (82,6%), já no início da República.
O cotidiano do Rio de Janeiro de 1876 é descrito com pompas a partir, por exemplo, das peças de Carlos Gomes ou, ainda, pelo “lado amargo” do cotidiano fluminense:
O lado amargo do cotidiano fluminense também está nas colunas. O Editorial do Diário do Rio de Janeiro chama a atenção das autoridades para uma indústria ”summamente incommoda ao público”. Pequenas orquestras ambulantes, compostas de meninos italianos, de ambos os sexos, de 5 a 12 anos, andam, diariamente, pelas ruas da Corte e arrabaldes. Em troca de concertos de canto, rabeca e harpa atacam a bolsa ”dos moradores e transeuntes”. Mal se pode passar nas ruas ou entrar numa casa comercial.
O redator condói-se da sorte desses miseráveis. Mas, acaba convencido de que as pobres crianças maltrapilhas e sujas ”fazem musica a contra gosto seu e mais ainda dos que as ouvem”. Os menores são explorados por gananciosos aventureiros. E formam novo sistema de exploração do escravo.” (Diário do Rio de Janeiro, um periódico de orientação governista, edição de 3 de junho de 1876)
Os jornais criticam a insegurança que, como se pode imaginar, não é sequer próxima da vivida hoje em dia. No entanto, nos jornais aparece o desejo de se portar armas para a defesa pessoal. “Ratoneiros” e “capoeiras” eram os então marginalizados, os “inimigos da sociedade”.
O autor do livro, Delso Renault, descreve um dos crimes daquele ano no que é hoje o centro histórico, pertinho da Avenida Rio Branco: “O dia está no seu começo. São 10 horas da manhã. A rua da Quitanda é o palco da cena de sangue. Seus protagonistas, dois estudantes da Escola Politécnica. João Capistrano da Cunha fora absolvido pelo júri no julgamento da ação movida pela família de Antônio Alexandre Pereira, cuja filha fora desvirginada. O irmão da moça ofendida descarrega cinco tiros no ofensor, que morre no local.”
A prostituição é algo assustador para a época: “O Chefe da Polícia expede circular às autoridades distritais e recomenda melhor patrulhamento nas ruas onde ”transitam prostitutas”. Comenta o jornal que a prostituição aumenta. Nessas ruas homens ociosos ”dialogavam com essas mulheres de maneira affrontosa e horripilante, dizendo phrases muito semelhantes ás que se ouvem na Whitechapel ou baixa City de Londres” [Whitechapel, antigo bairro londrino, de má reputação].”
Como sempre ocorre, diz o autor, “a ação policial se excede”: “Nem mesmo o domicílio é respeitado. Certa feita, moradora da rua Teófilo Otoni é intimada a comparecer perante a autoridade policial, por se achar na janela, ”quase vestida somente com a propria pelle” [Diário do Rio de Janeiro, 21/09/1876].”
Retomando a questão da imigração, o governo enfrentava um desafio atual, o da tentativa de atrair mão-de-obra estrangeira. Há escassez de trabalhadores para a indústria e, apesar do desembarque de alguns imigrantes no cais do Rio, não são boas as notícias vindas da Europa – “(…) circular do governo francês proíbe a emigração de franceses para o Brasil. E daqui a pouco O Globo divulgará a notícia da prisão, na Europa, de vários estrangeiros que haviam entabulado negociações com o governo e celebrado contratos relativos à imigração. Maus fados perseguem os esforços dirigidos no sentido de atrair colonos para o país” (Renault, p.93, vide referência ao final).
Da Europa também vem a novidade: surge a máquina de contar, uma “(…) engenhosa machina com a qual se realizam mechanicamente quase todas as principais operações” (A Nação, 12 de janeiro de 1876)
Assim como o negro era tratado como um custo – efetivo ou social –, os imigrantes surgiam majoritariamente em manchetes a partir de referências econômicas. Em 1877, os latifundiários vão à imprensa reclamar sobre o abandono da lavoura, que atrapalha o crescimento da produção. A edição de 30 de julho do Diário do Rio de Janeiro afirma que, de 1864 a 1873, entraram no Brasil 103.754 imigrantes, com portugueses, alemães e americanos em maior número. Em 1876 foram 30 mil colonos imigrantes a chegar ao Império.
Levada em conta a vastidão de nosso território essas cifras são irrisórias, comenta Renault, que completa: “Que nos falta para atrair o braço alienígena? Urge convencer o europeu de que a justiça no Brasil é uma realidade, a liberdade de consciência um fato sério e não ilusório prometimento. É opinião de certo conferencista naqueles dias” (p.100-101).
O médico estrangeiro precisa apresentar seu título e realizar um exame na Junta da Escola de Medicina – são profissionais muito bem vistos frente ao recorrente uso de ervas, unguento e curandeirismo. Um anúncio recomenda óleo de fígado de bacalhau “a todos que padecem de molestias do peito”.
E não só na área de saúde. Em um cenário em que 82% da população é analfabeta, migrantes desembarcam na cidade e recorrem ao ensino particular como um ganha-pão.
O Jornal do Comércio publica alguns dos classificados. F.T.Valdez, “autor de varias obras, dá lições ou explicações de instrução secundaria e linguas” (26/4/1877); Moça alemã, “habil para o ensino primario de uma ou mais crianças, tanto em allemão, inglez e francez, como em piano e canto, deseja empregar-se em uma casa de família ou collegio” (31/8/1877). Família residente em fazenda, próxima da corte, procura “professora que saiba protuguez, francez, geographia e musica, para lecionar a quatro meninos” (21/9/1877).
Dois aspectos são determinantes para o magistrado domiciliar: a ausência de escolas nas localidades distantes e a demanda por aprendizagem do idioma estrangeiro. “Quem quizer saber fallar o francez, só tem a fazer o pequeno sacrificio de uma hora diaria durante tres mezes”, promete um anúncio no mesmo jornal em 24 de fevereiro de 1877.
Os jornais de oposição criticam o governo por conta do tipo de colonização que julgam equivocada: “Já era tempo de nossos estadistas aprenderem, dizem os jornais. Não prossigam no erro fazendo desembarcar proletários, que constituem um flagelo para a nossa sociedade. O país carece de braços que venham em auxílio da lavoura”, cita Renault (p.111).
Dados oficiais mostrariam, aponta a imprensa, que muito dinheiro é gasto com a colonização – incluindo a medição de terras – e o contingente migratório, no entanto, não teria excedido 4.500 ao ano (O Globo, 2/12/1877). Os conservadores veem o auxílio à lavoura como uma das soluções para o progresso econômico. Enquanto os liberais pedem reformas, os “letrados” invejam a vida no Velho Mundo.
Neste ano, um jornal anuncia o moderno método da “stenographia e o sucesso de escrever 180 palavras por minuto”, além das canetas modernas – à venda por 500 réis –, “canetas mysteriosas que escrevem sem tinta por um tempo infinito”.
A questão da colonização é um dos grandes temas de 1878 — ao lado das finanças e do ensino público. Os jornais afirmam que os resultados práticos não estão de acordo com o dinheiro investido com o objetivo de acelerar a imigração. O governo firma neste ano um contrato com um empresário para “introduzir 100 mil famílias” (p.113). O governo se esforça, mas há “barreiras quase invencíveis” (Ib.).
Os Italianos no Brasil, obra de N. Marcone publicada na Itália, aborda as críticas condições do trabalho “nas matas brasileiras” — “O Brasil não é o Eldorado que se proclama”. Também é publicado o importante “Boletim da Sociedade Protetora dos Emigrantes” que, segundo o Jornal do Comércio (06/05/1878), dificulta a vinda de italianos “para o Imperio”.
Algumas acusações seriam “aleivosas” (caluniosas), outras são reais e “estão à vista de todos” (Ib.). No começo do ano, por exemplo, o cônsul geral da Alemanha no Rio dirige-se ao ministro da Fazendo “expondo fato grave”, para o qual pede providência: “o mal que está grassando a bordo dos navios em descarga”; já “sucumbiram” de “febre amarella 5 capitães, 2 pilotos e muitos marinheiros”, relata a Gazeta de Notícias de 16 de fevereiro de 1878. Um maquinista de uma embarcação dinamarquesa — Harald — morre após um ataque de “febre” ao “vapor”.
No dia 8 de março do mesmo ano, a Argentina fecha seus portos aos barcos que vinham do Rio. O jornal O Cruzeiro relata a morte de 3.281 pessoas na capital do Ceará e imediações (edição de 18/04/1878). As finanças do Império andam de mal a pior — no mesmo ano o Conselho de Ministros permite a emissão de papel-moeda –, o que influencia diretamente na política migratória.
A política educacional é atacada por parte da imprensa, como o próprio O Cruzeiro, que defenda a ida de uma comissão à Europa para estudar os métodos de ensino e a forma de habilitação do professor: “A civilização póde ser importada do mesmo modo porque se importa a vaccina. Importemol-a” (edição de 12/04/1878).
Em 1887, São Paulo está na frente na busca por imigrantes. Capitalistas formam uma sociedade, por exemplo, e formalizam a imigração junto ao governo de 6 mil colonos, com um custo variável: 85 mil-réis pelos maiores de 12 anos; 42,5 mil-réis pelos que têm entre 7 e 12 anos; e 2,5 mil-réis pelos que têm menos de 7 anos.
Em maio de 1886 entraram na província de São Paulo 2.085 emigrantes — pela ordem numérica: italianos, alemães, portugueses, espanhóis, belgas, franceses e de outras nacionalidades. Santa Catarina e Paraná também dão “exemplo” e sua produção agrícola cresce entre 40% e 45% no período de 5 anos.
Em pouco mais de 4 anos — entre janeiro de 1882 e julho de 1886 –, São Paulo recebeu mais de 44 mil imigrantes. O L’Etoile du Sud é talvez o único periódico francês no Brasil e afirma ser o único a fazer propaganda do país no exterior. O jornal afirma que a tarefa deste momento é “fazer trabalhar os estrangeiros que queiram vir substituir os negros, a fim de que os proprietários possam conservar suas terras, sua posição, sua influência.
Um deputado diverge: não vê relação entre colonização e imigração, defendendo apenas esta. Outros defendem que é preciso dar garantias de que os imigrantes possam se tornar proprietários rurais, uma espécie de “subsídio”.
A opinião pública na Alemanha é contra a emigração e a Itália segue o mesmo caminho, pela falta de garantias. Há, segundo os jornais da época, três principais empecilhos para a emigração europeia: o clima, o “credo religioso” e a “ignorância sobre nossa terra”.
Neste ano, no entanto, é aprovado no Legislativo um projeto sobre a liberdade de culto — até então os cultos não católicos eram tolerados apenas sob certas condições. Em 1887, afirma o periódico franco-brasileiro, o Brasil recebeu 55 mil imigrantes, número que teria pulado para 150 mil no ano seguinte. O governo manda editar, com tradução para várias línguas, o folheto Guia do Emigrante para o Imperio do Brazil. A primeira edição é de 1884.
BIBLIOGRAFIA
- Renault, Delso. O Dia-a-dia no Rio de Janeiro segundo os jornais, 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1982.
- Ferraro, Alceu Ravanello; Kreidlow, Daniel. Analfabetismo no Brasil: configuração e gênese das desigualdades regionais. Educação & Realidade, 2004. http://bit.ly/1b6JkwT