O ‘homem de cor’ na imprensa brasileira do século 19

Por Gustavo Barreto (*)
Largo do Rocio, atual Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Ali, em 1833, a Tipografia Fluminense de Paula Brito publicava o primeiro jornal da imprensa negra no Brasil. Foto sem data conhecida publicada por André Costa no Flickr.com/RioAntigamente

Largo do Rocio, atual Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Ali, em 1833, a Tipografia Fluminense de Paula Brito publicava o primeiro jornal da imprensa negra no Brasil. Foto sem data conhecida publicada por André Costa no Flickr.com/RioAntigamente

 

Conta o jornalista Carlos Chagas, em seu “O Brasil sem retoque – 1808-1964”, que a escravatura – “que hoje brada aos céus e faz indignar o mais plácido e acomodado dos cidadãos”, em meados do século 19 era “tão comum quanto a Coca-Cola”.

O Jornal do Commercio publicava, por exemplo, em sua edição de 20 de setembro de 1835:

“Vende-se na rua do Conde, número 20, uma preta mocamba recolhida, de 15 a 16 anos de idade, muito bonita, de elegante figura, perfeitíssima costureira, que ganha diariamente de 650 a 800 réis, fazendo camisas de homem à moda francesa, com toda perfeição; e também sabe pregar uma senhora; juntamente com um lindo moleque de 13 anos, mocambo de qualquer homem solteiro, sabendo também fazer costuras de senhoras e tudo o mais que é necessário. Sua Senhora se desfaz de qualquer deles, pagando-os conforme o seu merecimento, os quais não têm defeitos, nem físicos nem morais e para melhor conhecimento do exposto, se darão a contento, para casa capaz, o que tudo se afiança.”

No mesmo dia, outro registro:

“Fugiu no dia 1o do corrente mês um preto de nome Manoel, nação Angola, olha pouca coisa, é vesgo, tem uma ferida na face esquerda e um escroto inchado, é escravo de um senhor desembargador dessa província, Joaquim Gonçalves Bandeira. Quem dele souber, ou o agarrar, entregue-o à rua do Sabão, número 154, e será bem recompensado.”

Imprensa negra no Brasil do século XIXPara além da já conhecida (e triste) memória do escravagismo no país, o livro “Imprensa negra no Brasil do século XIX” (imagem ao lado), de Ana Flávia Magalhães Pinto, é uma importante contribuição para a ampliação desse debate.

Dois anos antes das referências acima, mais especificamente no dia 14 de setembro de 1933, nascia na capital do Império o primeiro jornal da imprensa negra no Brasil: o pasquim O Homem de Cor. Foi publicada na Tipografia Fluminense de Paula Brito, loja instalada no Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes), cuja presença negra – conta a autora, Ana Flávia Magalhães – era marcante.

O cabeçalho dos cinco números da publicação, que circulou entre setembro e novembro, trazia uma apresentação do então debate sobre as promessas de libertação dos escravos. No lado esquerdo, constava a transcrição do parágrafo XIV do artigo 179 da Constituição de 1824: “Todo o Cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”.

No canto direito era reproduzido um trecho do ofício do Presidente da Província de Pernambuco, de 12 de junho de 1833: “O Povo do Brasil é composto de Classes heterogêneas, e debalde as Leis intentem misturá-las ou confundi-las, sempre alguma há de procurar, e tender a separar-se das outras, e eis o motivo a mais para a eleição recair nas classes mais numerosas” (O Homem de Cor, n.1, p.1).

A disputa por espaços no serviço público – e, em termos mais gerais, a busca das elites pela limitação da liberdade e da cidadania dos “homens de cor” livres – envolvia “bastante gente”, conta Ana Flávia Magalhães, “tanto que a iniciativa tomada na Fluminense de Brito ganhou espaço e simpatia em outras duas tipografias: o Brasileiro Pardo surgia na Tipografia Paraguassu; O Cabrito, na Tipografia Miranda e Carneiro; e O Lafuente, também na Paraguassu. Depois surgiu uma terceira: o pasquim O Crioulinho passou a ser editado a partir de 30 de setembro do mesmo ano na Tipografia do Diário. Outros viriam.

Quem quisesse comprar tinha de ir até os pontos de venda e adquirir os exemplares, ao preço de 40 réis a unidade ou mediante assinatura. Conta a autora, citando Nelson Werneck Sodré em seu clássico História da Imprensa no Brasil, que era comum o anonimato de seus redatores, o que rendeu muita polêmica. Os números de O Homem de Cor eram assinados, por exemplo, apenas por “O Redator”.

Vale uma leitura atenta do livro de Ana Flávia Magalhães, de modo a pôr no seu devido lugar a verdadeira contribuição negra para a imprensa brasileira. Se puder, compre por exemplo aqui, de modo a prestigiar a autora. Se não puder, acesse online clicando aqui.

REFERÊNCIAS

  • Ana Flávia Magalhães Pinto, Imprensa negra no Brasil do século XIX, p. 24-25. São Paulo: Selo Negro, 2010.
  • Carlos Chagas, O Brasil sem retoque – 1808-1964: A História contada por jornais e jornalistas, volume I, p.99. Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, 4a ed. (atualizada), p.155-160. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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