O “conchavo oculto” de colonos alemães na Piracicaba da segunda metade do século XIX

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da pág. 2 do Correio Paulistano de 10 de junho de 1874

Trecho da pág. 2 do Correio Paulistano de 10 de junho de 1874

O Correio Paulistano traz em sua edição de 10 de junho de 1874, logo à página dois, um extenso artigo assinado pelo comendador e fazendeiro Luiz Antonio de Souza Barros intitulado “Negocios de colonisação”. Publicado, destaca-se, na “Secção particular” do importante jornal, com o texto em si datado de 5 de junho. O autor do texto é “um dos senhores de engenho e fazendeiros de café de maior prestígio em Piracicaba” (Elias Netto, 2003).

Em fins de 1852, registra o Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, criou a colônia de São Lourenço, que em 1855 reunia 225 alemães, 62 suíços franceses, 5 portugueses e 20 brasileiros (Guerrini, 1970). Lá, também plantou chá utilizando trabalhadores chineses.1 Suas fazendas também faziam uso de mão de obra escrava, mas Barros foi um dos que percebeu – conforme muitos argumentavam à época – que poderia lucrar mais com os colonos europeus.

No artigo do Correio, Barros reclama de uma nova comissão encarregada, em abril de 1872 – dois anos antes do artigo, portanto –, de “examinar a contabilidade de minhas colonias de S. Lourenço e Paraizo, de de ouvir as queixas dos colonos nelas estabelecidas”. Barros reclama do ministro da Agricultura de então, que “dava ouvido a insinuações calumniosas”, e conta ter apelado ao “único tribunal que me restava, o da opinião pública”. Ele afirma ter colaborado inteiramente com a referida comissão.

No artigo, Barros afirma que o público verá com surpresa “com quão pouca descrição se houve o sr. ministro da agricultura, barateando a honra de um seu patricio, sobre o qual deixou pesar por dois annos a imputação de irregularidade em suas contas com seus empregados”. Apesar de extensa investigação sobre as queixas dos colonos, estava “toda a contabilidade em regra”.

Os colonos – diz o autor – queixavam-se da “falta de renda”. A explicação é curiosa:

Segundo o parecer da comissão, a falta de renda de que se queixavam-se os colonos provinha mais do que tudo de não tratarem elles de tantos pés de café, quanto podiam, e cuidarem quasi que exclusivamente de plantar cereaes, cujo producto não é repartido com o proprietário, trazendo isso como resultado atrazo no pagamento dos dinheiros adiantados por este, visto que elles consomem esse producto, e nada entregam ao credor, para pagamento do qual applicam somente a colheita do café, necessariamente insignificante, attento número de pés que receberam para tratar; acrescendo ainda a ciscunstancia calamitosa de duas falhas successivas na producção deste género, circumstancia de que foram victimas o proprietário, e a provincia inteira.

Foram avaliados pela comissão – cujo parecer foi publicado na íntegra pelo Correio Paulistano, no corpo do artigo – as casas dos colonos, as respectivas plantações nas respectivas roças e os cafezais de cada colono.

O relatório afirma que as casas dos colonos são “arejadas e limpas”, possuindo em média quatro cômodos que, segundo a comissão, acolhe bem as famílias. Em todas as casas há um quintal, alguns deles com a criação de porcos, cabras, galinhas “e outras aves domésticas”, além de algumas pastagens com cavalos e “vacas de leite”.

Apesar de os cafezais parecem produtivos, a comissão admite que viu alguns deles “aniquilados pela geada”, e outros “de pouco desenvolvimento, o que prova que nesses lugares o terreno não é tão fértil como nos demais”. Os pareceristas estão otimistas, no entanto: “Se as colheitas annuaes da colonia fossem tão abundantes como promette ser a do corrente anno, poderiam em breve os colonos não só pagar o seu debito como reunir um peculio (reserva em dinheiro)”.

Apesar de constatarem a maior dedicação dos colonos às plantações, a comissão registra: “É verdade que muitos colonos queixam-se de serem ruins e velhos os cafezaes”, mas – continua o relatório – “parece que não é esta a causa do seu atraso, porque alguns mais conscienciosos não fazem semelhante queixa e até alguns, quer dos que existem ainda na colonia, quer dos que já della sahiram, tendo pago a sua divida, puderam até ajuntar um peculio”.

A falta de colheita por dois anos seguidos, disse a comissão, pode ter sido o motivo para que tenha se formado entre os alemães residentes em Piracicaba uma “opinião desfavorável” ao proprietário da colônia, a quem “attribuem até vexames e extorsões aos colonos”. E o último parágrafo do parecer vale ser transcrito:

Esta opinião (contra o proprietário) tem influido no animo de alguns dos colonos que, ou persuadidos de que seus direitos tem sido postergados, ou por quererem tirar partido dessa opinião, são uniformes nos pontos de queixa, e até no modo de as fazer. Esta uniformidade parece ser o resultado de algum conchavo occulto, para que por esse meio seja pago o debito sem ser pelo producto do trabalho individual.

Apenas alguns dos trechos acima já são um prato cheio para os estudiosos de distintas disciplinas, mas destaco aqui a desconfiança sobre a organização dos trabalhadores imigrantes, classificada como um “conchavo oculto”.

Luiz Antonio de Souza Barros, o proprietário, continua sua reclamação pública: quando julgava ter chegado ao fim a questão, viu publicado no Jornal do Commercio um anexo apenas com as queixas dos colonos, sem o teor do parecer que declarou as queixas infundadas. “Assim, os que leram as queixas, e não sabiam serem ellas sem precedencia, ficaram entendendo estar a razão do lado dos colonos, quando o contrário é que é a verdade”, escreve Barros, que no entanto seguiu o mesmo caminho: não publicou em seu artigo no Correio as queixas dos colonos, tampouco indicando a data da publicação no Jornal do Commercio.

Apesar disso, Barros enumera nove queixas de um homem chamado Adão Fray e duas de outro chamado Alyzio Wiesenfadt, contratado ainda no porto de Hamburgo, como ausência de assistência médica, escola, violação do contrato e dos direitos trabalhistas e condições ruins de colheita e da acomodação.

Barros responde, alegadamente citando o parecer da comissão, a cada uma delas – porém, sem o documento original, evidentemente é pouco provável que consigamos tirar qualquer conclusão daí. Chama atenção, no entanto, a ausência de um poder moderador de direitos, empurrando para a esfera pública o debate sobre a dignidade dos trabalhadores, sobretudo na imprensa e por meio da organização dos colonos. Embora os proprietários rurais tenham uma evidente vantagem em relação aos trabalhadores, uma relação de poder mais ou menos evidenciada, também cabe destacar a preocupação de Barros com seu nome exposto em um grande diário como o Jornal do Commercio.

Trecho da pág. 2 do Correio Paulistano de 10 de junho de 1874

Trecho da pág. 2 do Correio Paulistano de 10 de junho de 1874

Barros encerra sua argumentação citando o sucesso de diversos colonos – publica tabelas com os rendimentos de cada chefe de família com os cafezais –, buscando “provar que não é difficil ao colono laborioso e moralisado ajuntar peculio (economias) depois de pagar seu debito”.

Sobre os atuais colonos, Barros ataca, citando uma lógica de exploração capitalista em que supostamente todos ganham e os acusando de serem improdutivos: “Mas que culpa tenho eu de preferirem elles vadiar a trabalhar? Não comprehende por ventura o publico sensato que, quanto maior for o interesse que elles tirarem dos cafés, maior lucro terei eu, e que neste ponto, nossos interesses são communs?”

Artigo na íntegra disponível clicando aqui.

NOTAS

1 Ver http://wiki.ihgp.org.br/BARROS,_Luiz_Ant%C3%B3nio_de_Souza

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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