“Nem nazistas nem comunistas, os deslocados de guerra”: jornal ‘A Noite’ anuncia transferência de “fábricas inteiras” da Áustria para o Brasil

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da capa do jornal A Noite de 2 de setembro de 1949

Trecho da capa do jornal A Noite de 2 de setembro de 1949

“Emigração de fabricas inteiras!”, estampa em letras garrafais na primeira página o jornal A Noite em sua edição de 2 de setembro de 19491. O diário governista anuncia que cerca de 15 novas indústrias estão “prontas para se transferir da Áustria para o Brasil, logo que seja reestabelecida a entrada de imigrantes”. Quem fez a afirmação ao jornal foi o então chefe da Comissão de Seleção de Imigrantes na Áustria e na Itália, vinculada ao Conselho de Imigração e Colonização, o principal órgão sobre o tema à época.

O jornal informa que o representante do governo realizou uma conferência na sede do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os “métodos” empregados na seleção dos imigrantes, afirmando que o tema é “dos mais interessantes”. Na ocasião, completa o jornal, o conferencista teve a oportunidade de “estabelecer um confronto entre os processos seguidos pelas Comissões Brasileiras de Seleção e os mais modernos métodos atualmente”.

Um dos motivos de sua vinda ao Brasil, diz ele ao jornal, é a “oportunidade que se nos oferece (…) da transferência de nada menos de 15 indústrias, constituídas por estabelecimentos importantes, com suas máquinas e técnicos”. A vinda se dá, acrescenta, “em conexão com a vinda de novos deslocados de guerra”. Os imigrantes, afirma a matéria, foram retirados de seus países pelos nazistas durante a guerra e “não aspiram senão a encontrar um novo lar em país distante, onde não se faça sentir a constante ameaça de conflito internacional que sôbre êles pesa na Europa”.

O jornal A Noite argumenta que trata-se de uma imigração “duplamente valiosa”, por serem técnicos “capazes e experimentados” que estariam vindo, juntamente com “cêrca de 200 toneladas de máquinas”, um “contingente precioso para o fortalecimento da indústria nacional, de nossa estrutura econômica”. Além disso, completa, tratam-se de indústrias que “correspondem às nossas necessidades atuais e às possibilidades de nossas matérias-primas”.

Desde indústrias de maquinário e outras tecnologias agrícolas até fábricas de aparelhos elétricos, móveis e itens alimentícios, todos os estabelecimentos – registra o jornal – estão em funcionamento na Áustria e “já se acham com tudo preparado para se transferirem ao Brasil”, já tendo uma inclusive se instalado em Porto Alegre no ano anterior (1948) “com suas 28 máquinas, pesando em conjunto 13 toneladas” e achando-se “em plena atividade, produzindo satisfatoriamente, perfeitamente integrado na indústria local”.

Em tom comemorativo, o representante do governo, citado pelo diário carioca, classifica como “excepcionais” as condições para a transferência dos estabelecimentos: “(…) serão transportados de graça, com seus técnicos, pela Organização dos Refugiados, graças às concessões que obteve para o nosso país um grande brasileiro, o ministro Hélio Lobo”. Eles entrarão “isentos de direitos, para se associarem ao capital brasileiro ou estabelecimentos congêneres” e “colaborar em nossa grandeza econômica”.

Para a transferência dessas indústrias, diz o jornal, “faz-se necessário que seja reaberta a entrada de imigrantes, que ora foi suspensa em todo o país”. O debate sobre a imigração é tratado, então, em tom obscuro, sem declarar abertamente do que se trata. Diz o jornal: “Este ato [a reabertura para imigrantes] se prende a circunstâncias de ordem administrativa, ou seja, o esgotamento das verbas, que nada têm de irremovível e possivelmente também de ordem psicológica, pela confusão que em tôrno do assunto procuram criar alguns brasileiros”.

Capa do jornal A Noite de 2 de setembro de 1949

Capa do jornal A Noite de 2 de setembro de 1949

O representante do governo afirma que busca “esclarecer” essa “confusão” mostrando o “êrro de nos deixarmos influenciar pela campanha que contra a Organização dos Refugiados movem, desde a fundação da mesma, a Rússia Soviética e em geral os comunistas”. As palestras, diz o representante, procuram “dissipar” a confusão, citando o “testemunho das mais altas personalidades do govêrno norte-americano”.

Os refugiados, argumenta o texto, não poderiam ser “nem nazistas ou fascistas, nem comunistas”, dado que seriam vítimas do nazismo e tampouco desejam “retornar a seus países de origem”. Uma autoridade do governo dos EUA citada pelo jornal garante, “sem hesitação, baseado em minha longa experiência em relação ao assunto, que os deslocados de guerra são do mesmo estofo que os bons cidadãos americanos”.

O representante do governo destaca que os deslocados que o Brasil pleiteava foram retirados de seus países pelos alemães, às vezes com suas indústrias – e por vezes obrigados a se fixar na Alemanha –, justamente por serem “elementos hábeis e capazes, que iriam reforçar a economia do Reich”, e não pessoas “inúteis que apenas fôssem sobrecarregar as condições já precárias em que viviam o povo germanico”.

Por isso mesmo, diz ele ao jornal, é “geral o interêsse dos países de imigração pelo recebimento de deslocados de guerra”. A Inglaterra, argumenta, já recebeu 70 mil “apesar de suas dificuldades econômicas”, o Canadá 60 mil, a Austrália 70 mil anualmente, assim como França, Argentina e Venezuela. Como é comum na imprensa brasileira à época, o jornal termina com a grande referência para o tema, os Estados Unidos, que “com tôdas as restrições postas à entrada de imigrantes”, teria recebido 205 mil deslocados e teria revisado sua legislação restritiva – “depois de um demorado exame do assunto” – para receber um total de 400 mil deslocados de guerra.

NOTA

1 Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/348970/per348970_1949_13274.pdf

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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