‘Morreu um árabe, morador na rua do Senhor dos Passos’
Por Machado de Assis, na Gazeta de Notícias, 27 de maio de 1894
Morreu um árabe, morador na rua do Senhor dos Passos. Não há que dizer a isto; os árabes morrem e a rua do Senhor dos Passos existe. Mas o que vos parece nada, por não conhecerdes sequer esse árabe falecido, foi mais um golpe nas minhas reminiscências românticas. Nunca desliguei o árabe destas três coisas: deserto, cavalo e tenda. Que importa houvesse uma civilização árabe, com alcaides e bibliotecas? Não falo da civilização, falo do romantismo, que alguma vez tratou do árabe civilizado, mas com tal aspecto, que a imaginação não chegava a desmembrar dele a tenda e o cavalo.
Quando eu cheguei à vida, já o romantismo se despedia dela. Uns versos tristes e chorões que se recitavam em língua portuguesa, não tinham nada com a melancolia de René, menos ainda com a sonoridade de Olimpio. Já então Gonçalves Dias havia publicado todos os seus livros. Não confundam este Gonçalves Dias com a rua do mesmo nome; era um homem do Maranhão, que fazia versos. Como ele tivesse morado naquela rua, que se chamava dos Latoeiros, uma folha desta cidade, quando ele morreu, lembrou à câmara municipal que desse o nome de Gonçalves Dias à dita rua. O Sr. Malvino teve igual fortuna, mas sem morrer, afirmando-se ainda uma vez aquela lei de desenvolvimento e progresso, que os erros dos homens e as suas paixões não poderão jamais impedir que se execute.
Cumpre lembrar que, quando falo da morte de Gonçalves Dias, refiro-me à segunda, porque ele morreu duas vezes, como sabem. A primeira foi de um boato. Os jornais de todo o Brasil disseram logo, estiradamente, o que pensavam dele, e a notícia da morte chegou aos ouvidos do poeta como os primeiros ecos da posteridade. Este processo, como experiência política, pode dar resultados inesperados. Eu, deputado ou senador, recolhia-me a alguma fazenda, e ao cabo de três meses expedia um telegrama, anunciando que havia morrido. Conquanto sejamos todos benévolos com os defuntos recentes, sempre era bom ver se na água benta das necrologias instantâneas não cairiam algumas gotas de fel. Tal que houvesse dito do orador vivo, que era “uma das bocas de ouro do parlamento”, podia ser que escrevesse do orador morto, que “se nunca se elevou às culminâncias da tribuna política, jamais aborreceu aos que o ouviam”.
A propósito de orador, não esqueçamos dizer que temos agora na câmara um deputado Lamartine, e que estivemos quase a ter um Chateaubriand. Estes dois nomes significam certamente o entusiasmo dos pais em relação aos dois homens que se tornaram famosos. Recordem-se do espanto que houve na Europa, e especialmente em França, quando a revolução de Quinze de Novembro elevou ao governo Benjamin Constant. Perguntaram se era francês ou filho de francês. Neste último caso, não sei se foi o homem político ou o autor de Adolfo, que determinou a escolha do nome. Os Drs. Washington e Lafaiete foram evidentemente escolhidos por um pai republicano e americano. Que concluo daqui? Nada, em relação aos dois últimos; mas em relação aos primeiros acho que é ainda um vestígio de romantismo. Estou que as opiniões políticas de Lamartine e Chateaubriand não influíram para o batismo dos seus homônimos, mas sim a poesia de um e a prosa de outro. Foi homenagem aos cantores de Elvira e de Atalá, não ao inimigo de Bonaparte, nem ao domador da insurreição de junho.
Vede, porém, o destino. Não são só os livros que têm os seus fados; também os nomes os têm. Os portadores brasileiros daqueles dois nomes são agora meramente políticos. Assim, a amorosa superstição dos pais achou-se desmentida pelo tempo, e os nomes não bastaram para dar aos filhos idealidades poéticas. Não obstante esta limitação, devo confessar que me afligiu a leitura de um pequeno discurso do atual deputado. Não foi a matéria, nem a linguagem; foi a senhoria. Há casos em que as fórmulas usuais e corteses devem ser, por exceção, suprimidas. Quando li: O Sr. Lamartine, repetido muitas vezes, naquelas grossas letras normandas do Diário Oficial, senti como que um sacudimento interior. Esse nome não permite aquele título; soa mal. A glória tem desses ônus. Não se pode trazer um nome imortal como a simples gravata branca das cerimônias. Ainda ontem vieram falar-me dos negócios de um Sr. Leônidas; creio que rangeram ao longe os ossos do grande homem.
Mas tudo isso me vai afastando do meu pobre árabe morto na rua do Senhor dos Passos. Chamava-se Assef Aveira. Não conheço a língua arábica, mas desconfio que o segundo nome tem feições cristãs, salvo se há erro tipográfico. Entretanto, não foi esse nome o que mais me aborreceu, depois da residência naquela rua, sem tenda nem cavalo; foi a declaração de ser o árabe casado. Não diz o obituário se com uma ou mais mulheres; mas há nessa palavra um aspecto de monogamia que me inquieta. Não compreendo um árabe sem Alcorão, e o Alcorão marca para o casamento quatro mulheres. Dar-se-á que esse homem tenha sido tão corrompido pela monogamia cristã, que chegasse ao ponto de ir contra o preceito de Mafoma? Eis aí outra restrição ao meu árabe romântico.
Não me demoro em apontar as obrigações da carta de fiança, da conta do gás e outras necessidades prosaicas, tão alheias ao deserto. O pobre árabe trocou o deserto pela rua do Senhor dos Passos, cujo nome lembra aqueles religionários, em quem seus avós deram e de quem receberam muita cutilada. Pobre Assef! Para cúmulo, morreu de febre amarela, uma epidemia exausta à força de civilização ocidental, tão diversa do cólera-morbo, essa peste medonha e devastadora como a espada do profeta.
Miserável romantismo, assim te vais aos pedaços. A anemia tirou-te a pouca vida que te restava, a corrupção não consente sequer que fiquem os teus ossos para memória. Adeus, Árabes! adeus, tendas! adeus, deserto! Cimitarras, adeus! adeus!
* * *
[Publicado originalmente na ‘Gazeta de Notícias’, no Rio de Janeiro, no dia 27 de maio de 1894, e disponibilizado posteriormente em ‘Obra Completa de Machado de Assis’. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Disponível também aqui, dica de Guigga Tomaz.]