Minas Gerais em busca de um ‘elemento assimilável de melhoria econômica’ – e branco, se possível

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho do jornal 'O Paiz' de 1. de outubro de 1925.

Trecho do jornal ‘O Paiz’ de 1. de outubro de 1925.

O jornal O Paiz traz em sua edição de 1o de outubro de 1925 um artigo de destaque, intitulado “Immigração e colonização”, de autoria do secretario de Agricultura de Minas Gerais, Daniel de Carvalho, expondo os motivos para uma nova regulamentação sobre o tema. A “exposição de motivos”, na verdade, é um misto de argumentação pública para a sociedade como um todo e uma justificativa política e conceitual para a adoção de novas medidas sobre o tema.1

O jornal traz três fotos: em destaque, no centro da página, a do próprio secretário; em menor destaque, nas laterais, os secretários de Interior e de Finanças de Minas; e, abaixo, uma foto grande de uma estrada entre as cidades de Cambuquira e Lambari. O subtítulo afirma: “O presidente [de Minas Gerais] Mello Vianna acaba de baixar o regulamento dos serviços, precedido de notavel exposição de motivos pelo secretario da agricultura Dr. Daniel de Carvalho”. O texto a seguir é a transcrição, sem cortes, da exposição de motivos.

A sua longa argumentação começa com um amplo histórico sobre o tema no Estado. Segundo Carvalho, Minas se povoou rapidamente ao final do século XVII e início do XVIII devido à exploração das minas de ouro e de diamantes, que determinariam um “verdadeiro ‘rush’ em busca das ricas alluviões dos nossos rios e ribeiros”. Esgotados os recursos, diz, cessou a “transmigração para as minas” e “vieram os dias dificeis do seculo XIX em que a pobre gente montanheza teve de trocar o almocafre e a bateia pelo laço do vaqueiro e pela enxada do lavrador”.

As “cidades opulentas da mineração”, diz o secretário, entraram em decadência dando lugar às terras novas do café no sul e leste da província. Com isso, ocorreu uma onda de migração interna, principalmente para São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Goiás e Mato Grosso. “Nos últimos tempos da Monarchia”, afirma Carvalho, “o problema do povoamento começou a preoccupar os estadistas, convencidos de que, apesar do alto coefficiente de natalidade, o crescimento demographico de Minas não podia acompanhar, proporcionalmente, o de outras provincias, para onde rumavam levas e levas de colonos europeus”. Ele lembra que, mesmo assim, só diante da abolição definitiva da escravidão, em 13 de maio de 1888, foi criada em Minas a Inspectoria de Immigração, financiada pelo governo provincial e sediada em Juiz de Fora.

A nascente República fez com que o serviço de imigração e colonização não funcionasse adequadamente até 1893, ano em que o serviço foi reestabelecido por uma lei adotada em meados do ano anterior2. O regulamento autorizava o governo a promover a introdução e localização de imigrantes, com operações de crédito de até 5 mil contos — a receita total do Estado não chegava a 10 mil contos.

Apesar de ameaças como epidemias e revoltas populares, argumenta o secretário, o número de imigrantes estabelecidos entre 1894 e 1897 passou de 51 mil. Uma crise no ano seguinte interrompeu momentaneamente o fluxo migratório e os dados não voltariam a subir tão cedo. Pequenos núcleos, no entanto, foram estabelecidos: em Lambari (à época “Águas Virtuosas”), Pouso Alegre, Barbacena e em pequenas cidades próximas a Belo Horizonte.

Curiosamente, pelas mãos de imigrantes, vem de Lambari um dos principais produtos da culinária brasileira, o “catupiry”. O criador do produto, que hoje virou um sabor único, é o italiano Mário Silvestrini, que passou a industrializar o requeijão 1911. Pouco tempo depois, em 1922, ele passaria a processá-lo em São Lourenço e, em 1949, teria sua matriz transferida para São Paulo.3

O serviço ganharia novo fôlego apenas a partir do decreto federal 6.455, de 19 de abril de 1907, sendo que no Estado de Minas ganhou uma “feição mais liberal”, diz o secretário, garantindo ao colono não só os favores antigos — lote dividido e demarcado, uma casa provisória, apoio financeiro por três meses, serviço médico, sementes e ferramentas — como também “a certeza de encontrar, em cada lote, cercado o terreno de cultura, destocada, lavrada e plantada uma área de cerca de três hectares e feitos os caminhos e canaes de irrigação”4.

Com estas medidas, foram fundadas colônias em Vargem Grande (próximo à capital), Itajubá, Sete Lagoas, Cataguases, Ponte Nova, Leopoldina, Mar de Espanha, Carangola, São Domingos do Prata e Viçosa, entre outros lugares menores. Um decreto publicado no final de 1911 e que contou com a participação do próprio secretário de Agricultura buscava fixar os imigrantes que chegavam com apoio da União.

Apesar da crise europeia em grande parte do início do século XIX e, sobretudo, com a Primeira “Grande Guerra” — ou, talvez, por ocasião dela –, o Estado de Minas Gerais viu seus produtos valorizados e, com isso, sua renda multiplicada. “Nessa situação lisonjeira das finanças, pôde o presidente Bernardes5 alargar a colonização, quer por meio da fundação de novos nucleos ruraes, quer por meio da ampliação dos existentes, apesar do preço elevado das terras particulares”, afirma Carvalho, lembrando que, nesse contexto, foram instalados núcleos coloniais em Paracatu e Teófilo Otoni.

Carvalho lamenta, inclusive, que o Estado não estava preparado “para aproveitar convenientemente as excepcionaes condições creadas pela grande guerra que, no velho continente, desorganizou a vida economica e determinou o exodo de milhares de individuos em busca de paz e bem estar”. Não possui, por exemplo, um único albergue para receber os imigrantes, não dispunha de uma “agência oficial de colocação” e não possuía uma “legislação adequada para garantia dos operários”.

O ex-presidente da província mineira Raul Soares (1922-1924), citado por Carvalho, havia alertado que “a falta de braços para a lavoura cresce dia a dia” e é “um dos assumptos mais dignos da solicitude do governo”. Soares informa ainda que o assunto foi tema de debate em um recente congresso, cujos participantes teriam sugerido “medidas contra a repressão da vadiagem e o alliciamento de trabalhadores e no sentido de tornar mais attraente a vida rural”. O secretário de Agricultura, em sua exposição, completa: “Isso, porém, não basta”.

Qual seria a solução, então? “Só uma larga politica de immigração, acompanhada de medidas garantidoras da nova situação do immigrante, poderá remover o mal ou minorar-lhe a extensão”, afirma Carvalho. As políticas migratórias foram facilitadas por uma lei de meados dos anos 1920 que estimulava a parceria entre a União e os governos estaduais para a “introducção de immigrantes em larga escala”.

Minas – argumenta o secretário – sequer possuía uma hospedaria e, além disso, não possuía legislação no que diz respeito aos contratos de locação dos serviços agrícolas. A nova legislação – expõe Carvalho –, pretende satisfazer “uma das necessidades mais prementes dos nossos fazendeiros, cujas queixas a esse respeito são de todo justificaveis”.

O secretário de Agricultura cita, em sua exposição, as palavras do presidente da província à época, Fernando de Mello Vianna (1924-1926), que afirmara que “a immigração estrangeira não é apenas util”, mas “necessaria e indispensavel ao Brasil para impulsionar o seu progresso economico, pelo augmento mais rapido e intenso dos valores produzidos, e deve ser animada por todos os modos efficientes, praticos e de resultados immediatos”.

Sobre a questão das “raças”, Mello Vianna argumenta: “O criterio economico adoptado para julgar das vantagens da immigração exclue, pelo menos durante certo tempo, a questão de raças. Todo homem valido e capaz de se fixar no Brasil e ahi trabalhar e produzir deve ser julgado um elemento economico de valor relativo”.

Era esta a visão de muitas lideranças à época: os imigrantes eram elementos econômicos de valor relativo. O Brasil, que na avaliação de Mello Vianna sofria de “profunda anemia economica e financeira”, não poderia prescindir de qualquer raça, “pelo menos até reparal-a completamente e consolidar uma situação de prosperidade tranquilla”, sendo portanto inoportuno “e talvez prejudicial recusar qualquer cooperação, por minima que seja”.

Em momentos de dificuldade econômica, todos devem ser aceitos – desde que sejam tomadas “as providencias indispensaveis para evitar a formação de kystos ethnicos na nossa nacionalidade”, ou seja, “garantida por medidas seguras a assimilação do immigrante estrangeiro pela raça brasileira em formação”, ou ainda “evitados os agrupamentos importantes de uma mesma raça em certos pontos do paiz”. Uma vez feito isso, diz Mello Vianna, “qualquer trabalhador valido e são, aqui fixado, representa um elemento de melhoria economica”.

Nesta concepção, portanto, o trabalhador – e apenas o trabalhador – deve ser “assimilável” pela “raça brasileira”, não difundir sua cultura local, não se aglomerar indevidamente com seus conterrâneos e ser válido e são. Este é o imigrante ideal, diz o presidente da província de Minas Gerais.

Uma vez que a situação econômica se estabilize, “póde e deve haver preferencias em materia de immigração”, continua. “As raças brancas mais aproximadas do nosso typo são, por todas as condições biologicas, sociaes e até de religião – as mais assimilaveis pelo Brasil. Economica e politicamente é acertado animar a immigração dellas aqui, de preferencias a outras raças dispares.”

Para se chegar a um resultado ideal sobre a imigração, “as questões de eugenia e de cruzamentos humanos devem ser estudadas á luz dos factos”, com o reforço “da experiencia e da observação acurada e paciente”.

O interesse econômico de Minas Gerais, diz seu presidente, o aconselha a aceitar todos os que sejam capazes de trabalhar. O interesse político “nos leva a preferir os mais facilmente assimilaveis”. Os princípios são os seguintes: animar a imigração sem “exclusivismos discutíveis ou, pelo menos, anti-economicos no momento”; preferir na aplicação dos auxílios e favores “as raças mais aproximadas da nossa”.

As conclusões de um eventual estudo “baseado na observação e na experiencia” poderão levar o Brasil a limitar e até proibir – diz Mello Vianna – a entrada “de taes e quaes elementos ethnicos no territorio nacional”, exercendo “um simples acto de soberania”. Será sempre “o seu interesse legitimo que o levará assim a agir”, conclui.

O presidente da província afirma ainda, em tom de alerta, que “só se póde attribuir valor economico definitivo e apreciavel ao immigrante fixado ao sólo”. O imigrante deve se solidarizar com os interesses do país “que adoptou para segunda patria”. Mello Vianna compara os trabalhadores “que vêm ganhando salarios e se vão” às “nuvens de gafanhotos” que pousam para devorar as lavouras e não deixam, “lá de onde levantam vôo, mais do que um ligeiro adubo”. Sua comparação, diz, não possui “intenção pejorativa”, apenas como “simile economico”.

O apoio ao braço estrangeiro não está vinculado, ao contrário de outros discursos comuns no século XIX, à acusação sobre uma suposta “indolência” do brasileiro. “Quanto ao trabalhador nacional póde-se affirmar que a sua decantada indolencia é uma lenda destruida”, diz ele. Para Mello Vianna era preciso facilitar a aquisição de terra para trabalhar, porque “a terra brasileira ao brasileiro deve caber, antes de a mais ninguém”.

Fundamentalmente, o regulamento proposto pelo governo estadual propunha a restauração do serviço de introdução de imigrantes que se destinem à lavoura particular, ao povoamento de terras devolutas e aos núcleos coloniais do Estado. Dá ainda, argumenta o secretário, garantias aos trabalhadores nos contratos de locação de serviços ou parceria rural. Cria a Hospedaria de Imigrantes, que serviria de Agência Oficial de Colocação, cujo objetivo é “centralizar as offertas e procuras de braços para a lavoura”. Em uma caderneta criada pela lei devem constar as ações que cabem ao “operário rural”, provenientes de acidentes de trabalho e dos contratos de locação.

Na aplicação de favores e medidas protetoras, argumenta o secretário, o regulamento não faz distinção entre nacionais e estrangeiros: “Todos quantos vierem para Minas em busca de trabalho, aqui encontrarão agasalho e paternal assistencia para vencer as primeiras e mais penosas difficuldades de instalação no novo meio”. Curiosamente, esse argumento se contradiz com a declaração do próprio presidente da província feita citada no próprio artigo, de que os trabalhadores nacionais deveriam ter direito à aquisição de terras prioritariamente, em detrimento dos estrangeiros, a quem caberiam apenas lotes demarcados.

Com o regulamento, o governo espera ainda – segundo anunciado – realizar uma espécie de reforma agrária – ou, nas palavras de Daniel de Carvalho, “o retalhamento dos latifundios e formação de nucleos coloniaes”. O parcelamento das grandes fazendas, afirma, evitariam que permaneçam inaproveitadas áreas imensas de terrenos de cultura, se tornando em “obra de incalculavel alcance economico para Minas”. O secretário observa que, apesar do imposto territorial, “tem sido notada em algumas zonas a tendencia para o alargamento da área das fazendas de criação, como consequencia do exodo dos trabalhadores ruraes”.

E como o governo pretende fazer isso? “Concorrendo com a metade da quantia necessaria para a construcção da casa do colono e dividindo os terrenos em lotes gratuitamente, procura o governo interessar os proprietarios que, com o retalhamento de suas terras e venda aos colonos, não só valorisarão a parte que se reservarem, como terão á mão braços disponíveis para os trabalhos ruraes.”

O argumento, repetido desde meados da segunda metade do século XIX, era simples e direto: as colônias significam mais produtividade e um lucro maior – tanto para o governo quanto para os proprietários rurais. “Caso vingue a idéa” – conclui o secretário – “teremos dado um grande passo para o fortalecimento da nossa economia.” Como política de sucesso, o autor cita curiosamente um caso australiano – mais especificamente do Estado de Vitctoria. Segundo Carvalho, o estado australiano iniciou, em 1904, uma nova política colonizadora por meio da sub-divisão de grandes propriedades. Segundo o secretário, aplicar recursos neste tipo de ação é benéfico porque “a maior parte da despesa constituirá apenas adiantamento que reverterá integralmente aos cofres publicos ao cabo de alguns annos”.

Além disso, a Europa vive uma crise de desempregados e do excesso de população em alguns países, aponta o autor, que calcula: “São milhões de homens disponiveis que poderão ser encaminhados para nossa terra, de vez que os Estados Unidos da America redobraram de rigor contra a entrada de immigrantes”. O regulamento quer, conclui o secretário de Agricultura mineiro, “dotar o Estado do apparelho necessario para aproveitar essa opportunidade e resgar largos horizontes á immigração e colonização de nossa terra”.

NOTAS

1 A carta original foi publicada na referida edição, mas é datada de 24 de setembro do mesmo ano, conforme descrito ao final do texto. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=178691_05&pagfis=22751&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Lei número 32, de 18 de junho de 1892.

3 Vide http://www.catupiry.com.br/index.php/empresa

4 Regulamento n. 2.207, de junho de 1907.

5 Artur Bernardes, antes de ser presidente do Brasil entre 15 de novembro de 1922 e 15 de novembro de 1926, foi presidente de Minas Gerais de 1918 a 1922.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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