Mais de um século depois, o governo ainda bate cabeça na política imigratória
Enquanto isso, a imprensa continua reforçando lugares comuns ao abordar o tema. No início dos anos 2010, uma tendência é confirmada: a sociedade civil é mais forte e mais organizada. A análise é de uma edição do carioca O Globo de outubro de 2011.
O jornal O Globo publica em sua edição de 30 de outubro de 2011 uma matéria sobre o que é chamado de “onda estrangeira” – o nome da série de reportagens sobre imigração no Brasil –, afirmando que a dificuldade de legalização é o “maior pesadelo na nova vida dos imigrantes”. Publicada no caderno de Economia – e não no caderno “O País” –, uma das matérias completa a chamada do título: “Autorização permanente exige comprovação de trabalho, mas maioria é informal”. A foto de uma médica boliviana é colocada em destaque, com uma citação sua: “Procurei muito emprego aqui, qualquer um, até de servente”.
A matéria principal faz uma menção a uma ideia em geralmente atribuída a reportagens que tratam do chamado sonho americano, o sonho de milhares de imigrantes de “ganhar a vida” nos Estados Unidos – “O sonho brasileiro”. A chamada d’O Globo completa: “Crise global e crescimento do país fazem número de imigrantes crescer 52% ao ano, superando 2 milhões”. O jornal aponta que, depois de duas décadas “exportando mão de obra brasileira para o mundo”, o Brasil “volta a ser um país de imigrantes”.
O diário carioca argumenta que este movimento migratório estaria resgatando “uma característica de sua História que parecia perdida após anos de crises econômicas”, citando um levantamento do Ministério da Justiça que teria mostrado que a quantidade de estrangeiros vivendo no Brasil – seja a trabalho, estudo ou acompanhando cônjuges – superou “pela primeira vez em 20 anos” o número o número de brasileiros que deixam o país pelos mesmos motivos.
Em seis meses, diz o Departamento de Estrangeiros, vinculado ao Ministério da Justiça, o número de estrangeiros em situação regular no Brasil aumentou 52,4%, “e continua crescendo este semestre”, acrescenta o jornal. Não havia estatísticas oficiais sobre a quantidade de imigrantes em situação irregular no país, registra o jornal, mas “institutos e ONGs que trabalham com imigrantes no Brasil calculam esse número em 600 mil”, levando o total de estrangeiros para mais de 2 milhões.
Ao mesmo tempo, registra o jornal, o número de brasileiros vivendo no exterior é de 2 milhões, contra os 4 milhões de 2005. A razão, diz a fonte do diário – o secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão –, é “econômica”. Além do crescimento da economia brasileira, os “três maiores polos de desenvolvimento mundial” (EUA, Europa e Japão) teriam transformado o país em um – conforme cita o diário carioca – “ímã de mão de obra legal e ilegal”.
Uma das fontes ouvidas pelo jornal é o empresário Miguel Assis, que veio abrir uma empresa de eventos para ampliar seus negócios em Portugal. Diz Assis: “A economia do Brasil está crescendo. Há empresas internacionais que olham para o Brasil com outros olhos, e muitas já eram nossas clientes em Portugal. Elas pediam para a gente vir para o Brasil, abrir uma unidade aqui”.
O português criou uma comunidade no Facebook que reunia à época, segundo o diário, 780 portugueses no Brasil, tendo chegado ao país recentemente, em sua maioria. “É uma geração diferente da que veio em 1970 e 1980, porque tem formação acadêmica. São arquitetos, advogados, que vêm devido à crise que está afetando Portugal. Em 1980, os patrícios vinham para fazer negócios pequenos. Hoje já há oportunidades maiores”, disse Assis ao jornal.
Seguindo um modelo comum do jornalismo contemporâneo, uma outra matéria começa com uma personagem – a já referida médica boliviana – e uma história de dificuldades no Brasil. Entre elas, a luta para conseguir revalidar o diploma de médica e o temor de não conseguir a autorização permanente para morar no Brasil, “uma possibilidade que o governo brasileiro criou em 2009 ao conceder anistia a imigrantes em situação irregular que tivessem entrado no Brasil até fevereiro daquele ano”.
Em relação a esta medida, informa a matéria d’O Globo, os imigrantes ganharam um visto de residência temporário, válido por dois anos, que podem se tornar permanentes mediante comprovação de trabalho ou renda formal. “Aí está o problema da maioria dos 47 mil que se inscreveram no programa de anistia na época: como comprovar o trabalho quando se atua em empresas informais ou como autônomo (ambulantes ou artistas)?”
A própria médica, registra a matéria, não tem carteira de trabalho assinada, conforme declarou: “Minha autorização provisória vence em março [de 2012] e não tenho como comprovar que trabalho aqui. E sem a autorização permanente, não consigo dar entrada no Conselho Regional de Medicina para ser médica no Brasil”. Na Bolívia, disse à reportagem, um clínico geral ganha 300 dólares por mês. “Saí de lá para me especializar aqui e ganhar uma vida nova”, disse a médica.
A reportagem afirma que, apesar do “barulho do governo sobre a adesão ao projeto de anistia”, apenas 22 mil dos 47 mil inscritos conseguiram regularizar sua situação. Em São Paulo, acrescenta, dos 35 mil inscritos, só 10,8 mil estão regularizados.
A então diretora da área responsável por estrangeiros do Ministério da Justiça está confiante: “Tenho certeza de que todos vão acabar conseguindo visto permanente”, disse Izaura Miranda à reportagem. O então diretor executivo do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), Paulo Illes, discorda, apontando que o imigrante não consegue provar que trabalha numa empresa formal e, com isso, não ganha a Cédula de Identidade do Estrangeiro que lhe permite trabalhar no Brasil. “É um círculo vicioso”, lamenta.
A reportagem afirma que, além da economia, há outros fatores para a “explosão de imigrantes irregulares” no Brasil, como a “enorme fronteira terrestre não policiada que separa o país dos vizinhos sul-americanos” onde teriam 600 mil estrangeiros. Helion Póvoa Neto, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios, opina: “Há uma imensa faixa de imigrantes que ficam nas regiões de fronteira, em área brasileira, que não entram nas estimativas do governo. A maioria nunca ouviu falar de anistia, até porque o governo não fez uma comunicação oficial e dependeu única e exclusivamente das ONGs do setor”.
Paulo Illes acrescenta: “As principais fronteiras por onde entram os imigrantes, como a fronteira perto de Corumbá, a Tríplice Fronteira no Sul ou a Amazônia, são áreas de movimentação intensa, onde o foco da Polícia Federal é o contrabando, não as pessoas”. Os maiores grupos de “irregulares”, conforme descreve a matéria d’O Globo, são bolivianos, peruanos, paraguaios, chineses, coreanos e africanos.
A historiadora Maia Sprandel, outra fonte da matéria e apresentada também como “assessora parlamentar no Senado”, afirma que a maioria sul-americana se deve, além da proximidade, ao Acordo de Residência do Mercosul, de 2009. Ele prevê que brasileiros, argentinos, paraguaios, uruguaios, bolivianos e chilenos podem estabelecer residência em quaisquer países membros do Mercosul, estejam em situação regular ou irregular.
A então advogada da Pastoral do Migrante em São Paulo, Ruth Camacho, acrescenta que os latinos são muito discriminados no Brasil e, “acuados e sem informação, demoram a perceber que estão sendo explorados”. Ela afirma que “nos últimos anos”, têm vindo muitos imigrantes de zonas mais afastadas e rurais da Bolívia. “É uma situação que lembra a dos nordestinos na década de 1970. O boliviano chega e tudo que tem é uma cama. Mas ele se sente bem, porque pensa: ”aqui tenho casa, comida e ainda ganho um dinheirinho””, diz Ruth na matéria.
A crítica às políticas públicas do setor se repetem desde a primeira República, pelo menos, passando pela Era Vargas – o processo decisório não é coordenado e está distribuído entre muitos setores distintos e sem comunicação. Ainda em 2011. Uma outra matéria d’O Globo, do mesmo dia, faz as seguintes chamadas: “Especialistas criticam falta de política; Decisões sobre imigração estão repartidas em secretarias de 3 ministérios”. A maioria das entidades que trabalham na assistência a imigrantes afirmou ao jornal que o Brasil “avançou na regulamentação sobre o tema”, porém a “falta de uma política nacional para migrações (que abranja tanto estrangeiros em solo nacional quanto brasileiros no exterior) ajuda a transformar a imigração num assunto de polícia”.
“Imigrantes irregulares em território nacional só aparecem na mídia, dizem essas instituições, quando a Polícia Federal desbarata um esquema de trabalho ilegal ou revela redes de tráfico de pessoas ou prostituição em áreas de fronteira. Mas estes, diz o próprio governo, são minoria”, diz a matéria d’O Globo. “Imigrantes irregulares não são criminosos, por isso evitamos usar a palavra ilegal”, disse ao jornal Paulo Abrão, então secretário nacional de Justiça.
Não há no governo, ainda em 2011, uma instância ou secretaria que concentre tudo ligado à imigração, o que mostraria a “falta de prioridade para a questão”. Neste momento, em 2011, registra o jornal, a política é feita pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), ligado ao Ministério do Trabalho; a fiscalização e controle de permanência de estrangeiros pela Polícia Federal, que está subordinada ao Ministério da Justiça, e que por sua vez regulariza os vistos, enquanto negociações diplomáticas são realizadas pelo Itamaraty.
O então presidente do CNIg, Paulo Sergio de Almeida, que também era coordenador-geral de Imigração do Ministério do Trabalho, é um dos entrevistados pela reportagem especial. A primeira pergunta do jornal expõe o viés da matéria, publicada no caderno de Economia: “Por que o tema imigrantes em situação irregular está invariavelmente ligado a questões de segurança e crime, em vez de ser abordado como um assunto econômico?” A questão de cidadãos estrangeiros é assim, ainda no século 21, tratada: não são direitos humanos ou uma questão mais ampla populacional, com vínculos evidentes à educação ou à saúde. Trata-se, na percepção do diário carioca, de um “assunto econômico”.
O entrevistado lembra que a “antiga Lei dos Estrangeiros” – a legislação em vigor – foi elaborada em 1980, na “ditadura militar”, e foi “fortemente influenciada pela preocupação dos generais em segurança”. Ele destaca que membros do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) faziam parte do CNIg. Com o tempo, no entanto, ele argumenta que o Conselho “foi baixando resoluções que mudaram a abordagem do tema para um viés mais ligado ao respeito aos direitos humanos”. Apesar desta fala, logo na frase seguinte o representante do governo acrescenta: “Nossa percepção é que a questão dos imigrantes irregulares é um assunto econômico ligado ao mercado de trabalho. O fato é que os imigrantes irregulares ligados a ilegalidades, como trabalho escravo ou prostituição, são muito poucos”.
A curiosa percepção sobre os direitos humanos dos imigrantes chamam a atenção. Aparentemente, pela interpretação de sua fala, o então presidente do CNIg acredita que por direitos humanos deve se entender as eventuais violações dos direitos humanos – tráfico de pessoas ou trabalho escravo, por exemplo. O fato de os imigrantes não poderem votar e ser votados, um direito fundamental em qualquer democracia – apenas para citar um exemplo – é menor do que a “percepção” de que o “imigrante irregular” é um “assunto econômico ligado ao mercado de trabalho”. Trata-se, ainda no século 21, de uma percepção muito parecida com as concepções de dois séculos de História da imigração no Brasil.
O representante do governo admite que “falta realmente o que poderíamos definir como uma política sobre o tema”. Em 2009, lembra, o governo havia preparado “um conjunto de regras que foi discutido no âmbito dos ministérios encarregados do assunto, como Justiça, Trabalho, Educação, Saúde e Itamaraty”, mas a discussão “acabou atropelada pelas eleições”. Agora, diz o entrevistado, “com uma nova equipe nos ministérios”, a questão “está sendo reavaliada”. Ele tem “esperança” de que este “conjunto de regras” seja adotada “em breve”.
O então projeto da nova Lei do Estrangeiro foi enviado pelo governo ao Congresso em 2009, lembra o jornalista ao representante do governo, que informando que ele está tramitando, sob responsabilidade do relator da Comissão de Turismo da Câmara – o deputado Carlos Eduardo Cadoca (PSC-PE). “Ele disse que está parando a tramitação para forçar a aprovação de projetos de seu interesse”, registra o jornal para o entrevistado, que responde: “Lamentável”.
Um editor de uma revista temática – Dirceu Cutti, editor da Travessia, da Pastoral do Migrante – também é citado como fonte pela matéria. Ele argumenta que, enquanto o Ministério da Justiça admite que a maioria dos imigrantes só quer uma vida melhor, a Polícia Federal “dificulta como pode a regularização de quem vive na informalidade”. Já o então representante da Associação Nacional de Estrangeiros e Imigrantes do Brasil (Aneib) afirmou que a “explosão nas imigrações pegou o governo de surpresa”.
A matéria relata o motivo pelo qual, naquele momento, em outubro de 2011, a nova lei do estrangeiro estava parada no Congresso Nacional. “Após discussões com vários ministérios, ONGs e instituições, o governo preparou em 2009 um conjunto de resoluções sobre o assunto. Mas o projeto de lei 5.655 – a nova Lei do Estrangeiro – está parado no Congresso, nas mãos do deputado relator Carlos Eduardo Cadoca (PSC-PE), da Comissão de Turismo e Desporto”, registra a matéria. Ele “admitiu”, segundo a reportagem, que está “prendendo a tramitação para pressionar a aprovação de projetos de sua autoria”, como a isenção de visto para os EUA, Canadá, Japão, Austrália e Nova Zelândia, bem como o visto pela internet. O deputado argumenta: “Passei da fase da exaustão para a do confronto”.
Um quadro explicativo da mesma matéria, que deveria trazer um contexto histórico e social sobre o tema, repete o antigo lugar comum: “Um país aberto a quem vem de fora”, diz o título, completando: “Imigrantes influenciaram cultura e economia do Brasil”. Diz o redator: “Num país fundado sob o mito das três raças e orgulhoso de sua condição mestiça, não é de se estranhar que o Brasil tenha desenvolvido uma índole simpática ao estrangeiro”.
A suposta “índole” mencionada carece de fontes, o que pode ser observado após uma breve análise dos comentários do público nas matérias publicados nos principais portais na Internet sobre, por exemplo, os haitianos e africanos que migram para o Brasil buscando melhorar sua vida no país ou mesmo fugindo de conflitos étnicos ou religiosos. Esse discurso da hospitalidade – comuns no discurso da imprensa em dois séculos cobertos por esta pesquisa – serve tão somente para os chamados “imigrantes desejáveis”, expressão que também perpassa diferentes momentos da História do Brasil. Em geral, europeus, com eventuais concessões para os asiáticos e árabes.
O redator d’O Globo continua, omitindo a tentativa de europeização do país: “Desde a abertura dos portos pela família real portuguesa, em 1808, quando chegaram ao Rio ingleses aliados de D. João VI, o país acolheu sucessivas levas de estrangeiros, que tiveram grande influência na economia e na cultura do país”. E cita dados que denuncia essa ênfase eurocêntrica (bem-sucedida) das políticas migratórias: “Segundo o IBGE, em 1959, viviam no país 1,5 milhão de italianos, 1,3 milhão de portugueses e 683 mil espanhóis”.
O redator continua, fazendo generalizações que não dão conta, minimamente, do cenário geográfico da imigração no Brasil, com aproximações com não condizem com as entradas nos portos e com os dados dos governos, além de omitir a presença de estrangeiros em outras regiões do país e a complexidade dos movimentos migratórios: “Alemães e suíços se instalaram na Região Serrana fluminense e no Sul do país, introduzindo técnicas agrícolas germânicas. Sírios, libaneses e judeus chegaram fugindo do império turco-otomano, e se espalharam pelo Brasil, atuando no comércio de roupas, tecidos e jóias. Como eles, surgiu a figura do mascate. Italianos e japoneses fixaram-se em São Paulo; portugueses e espanhóis, no Rio”.