Latino-americanos em busca do ‘milagre brasileiro’ da ditadura: temidos como ‘um elemento indesejável e suspeito’

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da edição do jornal O Globo de 26 de fevereiro de 1978.

Trecho da edição do jornal O Globo de 26 de fevereiro de 1978.

Uma matéria do jornal O Globo de 26 de fevereiro de 1978 aponta que já são 100 mil os imigrantes sul-americanos em São Paulo. “Eles começaram a chegar em maiores grupos a partir de 1973. Hoje, indicam as estimativas, constituem um contingente de mais de 100 mil sul-americanos vivendo em São Paulo, a maioria na clandestinidade”, começa a matéria. Fogem, diz o jornal, das “agudas crises econômicas e políticas que atingiram seus países, de privações e do desemprego”, sendo principalmente chilenos, argentinos e uruguaios.

Em São Paulo, buscam – diz O Globo – “um novo Eldorado”, mas, em vez disso, “encontram a desilusão antes reservada aos migrantes nordestinos, que corriam ao sul em busca de vida melhor”. Vivem em “precários quartos nas pensões dos bairros da Bela Vista” e, em vez de altos salários, “o custo de vida que consome rapidamente seus ”pesos””. O diário constata, quase em tom de lamento: “Mas eles continuam chegando”. São Paulo, relatam os imigrantes segundo o jornal, foi a cidade escolhida porque é um “mito econômico”, o centro do “milagre brasileiro”.

O cenário é um tanto quanto catastrófico, segundo o relato d’O Globo: “Poucos (…) conseguem obter o cobiçado visto de permanência, que lhes permitirá trabalhar e viver no Brasil. Alguns voltam. Outros, continuam vivendo na clandestinidade, burlando a lei, falsificando passaportes, pedindo esmolas ou simplesmente trabalhando em alguma firma por metade do salário pago a um funcionário brasileiro na mesma função, quando encontram algum patrão disposto a manter oculta sua situação irregular”.

Chegam sozinhos, em sua maioria, com a família esperando que o imigrante regularize sua situação no país, segundo o jornal – que, destaca-se, não cita nenhuma fonte, governamental ou não, nem mesmo qualquer estudo, para citar tais informações. Normalmente, continua o diário carioca, entram como turistas e só aqui descobrem que o prazo da vigência de turista – 90 dias, prorrogáveis por mais 90 – são insuficientes para a tramitação dos pedidos de residência.

As primeiras dificuldades, registra o jornal, começam na Delegacia de Estrangeiros: “Os funcionários explicarão que hoje só interessa ao Brasil receber químicos nucleares, físicos eletrônicos e nucleares, geólogos, engenheiros de rodovias, eletrotécnicos, eletrônicos e de telecomunicação, engenheiros para máquinas e ferramentas industriais, engenheiros mecânicos, de motores a explosão e de barcos, engenheiros metalúrgicos, de minas e energia, desenhistas projetistas, técnicos em eletrônica, professores especializados, especialistas em métodos do ensino, [incompreensível], técnicos-mecânicos de instrumentos de precisão e dirigentes de empresa, quando solicitados para trabalhar em alguma firma”. Na primeira citação a alguma fonte, a matéria conclui: “Fora disso – garantem – o Ministério da Justiça não aprovará o pedido de residência”.

No entanto, na saída do prédio da Delegacia de Estrangeiros, uma figura dá esperanças aos imigrantes: “El despachante”, segundo o jornal, ao preço de 8 ou 10 mil cruzeiros, cuidará de todos os papéis necessários para o pedido de residência, além de dar “dicas” sobre como permanecer no país, mesmo sem se enquadrar na classificação profissional do governo. À reportagem, o governo admite que “não é muito fácil conseguir um bom despachante”, garantindo que é “perfeitamente possível fazer tudo sozinho”.

O constante movimento do Centro Pastoral dos Migrantes, continua a matéria, mostra que não é tão fácil assim. Um dos responsáveis pelo Centro, o padro Mario Miotto – fundador, em 1977, da Pastoral dos Latinos1 – conta ao jornal que recebe cerca de 20 latino-americanos por dia, que procuram informações mais detalhadas sobre a documentação exigida. A burocracia é um circulo vicioso que perdura em toda a História do Brasil: “Miotto preenche fichas, dá instruções e tenta obter junto a empresários ”uma promessa de emprego”, que permitirá ao imigrante entrar com o processo pedindo fixação de residência. Sem esse documento, é praticamente impossível trabalhar”.

Miotto registra um cenário nada positivo: “Eles chegam quase sem dinheiro, sem a documentação necessária e, embora tenham certo nível de instrução, poucos se enquadram na classificação de profissionais que interessam ao Brasil”. A esperança de serem aceitos pelo governo é baixa: segundo estimativas da própria Pastoral dos Migrantes, naquele momento 80% dos pedidos eram indeferidos. Quando o pedido não é aceito, afirma o jornal, “muitos recorrem a expedientes como falsificar passaportes, trabalhar por metade do salário em troca de sigilo do patrão quanto a sua situação irregular ou ainda arrumar um documento falso”.

Segundo o diretor de Divisão de Estrangeiros, ouvido pela matéria, a deportação “dificilmente acontece”. Segundo a fonte: “O volume de serviços de Delegacia de Estrangeiros é enorme. A maior parte dos funcionários do órgão está trabalhando nos serviços de rotina e investigações só são realizadas na medida do possível. Além disso, a grande extensão do País dificulta o controle das fronteiras”. Os imigrantes que “não se enquadram na lista de profissionais interessantes para o Brasil” tem apenas duas opções para conseguirem o visto de residência: o casamento com um brasileiro ou um filho nascido aqui. Segundo a reportagem, “não é raro eles optarem por uma das duas soluções”.

A matéria afirma que “nem sempre (…) foi tão difícil para o imigrante fixar residência”. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, afirma O Globo, um “simples documento de identificação transformava estrangeiros em brasileiros” e, até 1939, “quando foi instituído o Estatuto do Imigrante, era possível obter o visto de residência sem qualquer especialização”. O diretor da Divisão de Estrangeiro completa, citado pelo jornal: “Agora o Brasil não permite mais que os estrangeiros venham concorrer com a nossa mão de obra. E, daqui [a] uns cinco anos, será ainda menor a lista de profissionais admitidos no País”2.

As restrições à entrada dos estrangeiros no período posterior à Segunda Guerra Mundial, e já durante todo o governo Vargas, era bem maior, como já destacado no capítulo deste trabalho sobre o tema.

O decreto-lei nº 406, de 4 de maio de 19383, por exemplo, que regulamentava a entrada de estrangeiros no território nacional, afirmava logo em seu artigo primeiro que não seria permitida a entrada de estrangeiros, “de um ou outro sexo”, que fossem “aleijados ou mutilados, inválidos, cégos, surdos-mudos”; os “indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres”; os que “apresentem afecção nervosa ou mental de qualquer natureza, verificada na forma do regulamento, alcoolistas ou toxicomanos”; os “doentes de moléstias infecto-contagiosas graves, especialmente tuberculose, tracoma, infecção venérea, lepra e outras referidas nos regulamentos de saúde pública”; os que “apresentem lesões orgânicas com insuficiência funcional”; os menores de 18 anos e maiores de 60, que viajarem sós, “salvo as exceções previstas no regulamento”; os que não provem o exercício de profissão lícita ou a posse de bens suficientes para manter-se e as pessoas que os acompanhem na sua dependência; os “de conduta manifestamente nociva à ordem pública, à segurança nacional ou à estrutura das instituições”; os já anteriormente expulsos do país, “salvo se o ato de expulsão tiver sido revogado”; os “condenados em outro país por crime de natureza que determine sua extradição, segundo a lei brasileira”; e os que “se entreguem à prostituição ou a explorem, ou tenham costumes manifestamente imorais”.

O artigo segundo da mesma legislação é enfático sobre seu caráter racista: “O Governo Federal reserva-se o direito de limitar ou suspender, por motivos econômicos ou sociais, a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens, ouvido o Conselho de Imigração e Colonização”.

O artigo 14, muito discutido publicamente à época, trazia a conhecida limitação de 2% por nacionalidade, com a seguinte redação: “O número de estrangeiros de uma nacionalidade admitidos no país em caráter permanente, não excederá o limite anual de 2 por cento (2%) do número de estrangeiros da mesma nacionalidade entrados no Brasil nêsse caráter no período de 1 de janeiro de 1884 a 31 de dezembro de 1933”.

Com uma especificação trabalhista, estabelecida no artigo 16: 80% de cada quota serão destinados “a estrangeiros agricultores ou técnicos de indústrias rurais”. Além disso, completa o artigo 17, o agricultor ou técnico de indústria rural não pode abandonar a profissão durante o período de quatro anos consecutivos, contados da data do seu desembarque, salvo autorização do Conselho.

A matéria do jornal O Globo registra de 26 de fevereiro de 1978 registra ainda que, neste momento, “na verdade, é praticamente impossível obter a residência antes do vencimento do visto de turista”, tendo como fonte o então cônsul geral da Argentina. Apesar de todas essas dificuldades, completa a matéria, “calcula-se que cerca de 70 mil chilenos e 20 mil argentinos vivam atualmente em São Paulo”. É interessante observar que a falta de priorização para a área era demonstrado pelo fato de que o levantamento apresentado pelo jornal O Globo não era do governo, e sim do Centro Pastoral dos Migrantes, ligado à igreja católica.

Segundo a Pastoral, 76% dos latino-americanos que viviam no Estado de São Paulo, 14% eram argentinos e 10% de outras nacionalidades. Ainda de acordo com a Pastoral, citada pelo diário carioca, 92% dos imigrantes haviam abandonado seus países de origem por motivos econômicos, enquanto outros 6% por motivos políticos. Mais da metade, completa o jornal, não conseguiu qualquer tipo de ocupação profissional.

Para sobreviveram, os latino-americanos se organizavam a partir do local de moradia escolhido pela maioria: o bairro Bela Vista. “Por 700 cruzeiros é possível obter um quarto, dividido com mais uma ou duas pessoas, sem direito à refeição”.

Além do preço, diz o jornal, essas pensões oferecem um outro atrativo: a presença de compatriotas que já estão há mais tempo no Brasil. Sem recursos para frequentar “restaurantes típicos” e com apenas uma “entidade cultural e recreativa” recentemente criada – o “Círculo de Integração Social Latino-Americano” –, os imigrantes se reúnem nas próprias pensões para “uma conversa ou para cantarem canções latino-americanas”.

Uma das fontes ouvidas é Marcelo, um chileno que vive há três anos no Brasil e “pesquisou a situação dos imigrantes latino-americanos”. Ele argumentou que São Paulo e Rio de Janeiro ainda são alguns dos “poucos lugares que, pelo menos em tese, têm capacidade de absorver a mão-de-obra estrangeira”. E ele aponta um outro aspecto para a escolha do Brasil: “Em regimes ditatoriais [latino-americanos] se constroem mitos com muita facilidade e a imigração é vista como a única solução. Basta sugerir o lugar para onde ir”.

Apesar das dificuldades em quase todos os demais países, Marcelo reclama que “mesmo o governo brasileiro não recebe bem o chileno”, que é visto como “um elemento indesejável e suspeito”. No entanto, o governo estaria aceitando “sul-africanos, angolanos, vietnamitas e norte-coreanos, entre outros”. Ele conclui: “A exigência de documento específico para chilenos, argentinos e uruguaios (o atestado ideológico) mostra a relutância dos dirigentes brasileiros em aceitar imigrantes desses países”.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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