Imigração é “fantasma que ameaça a Europa”, com “enchentes” e “enxurradas” de imigrantes
Uma reportagem de março de 1991 do jornal ‘O Globo’ sintetiza modos concretos de desumanizar seres humanos por meio do uso do símbolo da “alma do outro mundo” e da transformação de histórias de vida em números frios.
O ano de 1991 foi um ano conturbado na Europa, com seus países discutindo intensamente as unidades econômica e política do continente. Em julho, é realizado em Londres uma cúpula econômica ocidental1 da Comunidade Europeia para discutir a relação dos países participantes com a União Soviética, bem como a abertura de seus mercados aos produtos e serviços dos países da Europa Central e Oriental. Entre os diversos conflitos em andamento, a situação nos Balcãs e no Oriente Médio, além de conflitos no continente africano, preocupam profundamente a comunidade internacional.
Ao tratar do tema da imigração, a edição de 24 de março de 1991 do jornal O Globo anuncia, em tom de catástrofe, o que classifica como uma “enchente de chegadas”, citando um jornal britânico. O título da reportagem já diz a que veio: “Fantasma da imigração ameaça a Europa”. Em outro título, na mesma página, a expressão “enxurrada de exilados” é utilizada sem aspas para se referir aos requerentes de refúgio na França e na Itália. Para “pesadelo” das autoridades, acrescenta a matéria, ainda há a ameaça da “invasão vermelha”, em referência ao regime comunista – tomando, portanto, as pessoas que buscam segurança e uma vida melhor como agentes ideológicos.
O correspondente do jornal carioca em Londres assim começa a matéria: “Os gritos de ”Viva a Itália” dados pelos refugiados albaneses ao desembarcar no porto italiano de Brindisi, no início do mês, ecoaram fundo nos gabinetes das autoridades dos governos da Europa Ocidental. A ruidosa chegada à Itália dos milhares de fugitivos da Albânia fez ressurgir o espectro da imigração em massa para os países ricos da Europa Ocidental, o novo desafio que assusta o Velho Continente a menos de dois anos da sua unificação”. Observa-se que a “Europa” do título da matéria d’O Globo, portanto, é a “Europa” rica, ocidental, capitalista.
A “ameaça” não vem apenas dos “imigrantes que não param de chegar dos países ex-comunistas do Leste”, registra o texto: “Os prognósticos alertam para a aproximação de outra onda de refugiados, dessa vez originária dos países pobres do Terceiro Mundo, especialmente do Norte da África e do Oriente Médio, afetados pela guerra do Golfo Pérsico”. A “invasão vermelha”, diz o jornal, inclui entre 5 e 7 milhões de soviéticos que tentarão deixar o País “nos próximos anos” e, sem citar fontes, diz que “a maioria não medirá esforços para se estabelecer nos países vizinhos da Europa Ocidental.
O Globo cita uma expressão de um jornal britânico (também não identificado) – a “enchente de chegadas” – para identifcar o tema de discussão da Comissão da Comunidade Europeia, que preparava naquele momento a unificação do continente. Entre as medias adotadas antecipadamente por alguns países, como a Alemanha, a “mais ostensiva” – informa o jornal carioca – é o aumento do policiamento ao longo da fronteira com a União Soviética e com os países do extinto bloco comunista do Leste. Itália e Grã-Bretanha segue o mesmo caminho, informa o diário.
A primeira onda de imigrantes, afirma o jornal, teve início em 1990, com a chegada de mais de meio milhão de pessoas do Leste Europeu e da União Soviética. “Muitos deverão seguir o mesmo caminho nos próximos anos, em razão do agravamento da crise econômica nos países ex-comunistas e da possível desintegração da União Soviética”, acrescenta. Seriam 800 mil imigrantes da URSS e dos países do Leste Europeu por ano, nos quatro anos seguintes, diz o jornal citando uma pesquisa da Comunidade Europeia.
Em tom novamente de catástrofe, o correspondente d’O Globo escreve em uma das manchetes: “O alerta para uma ‘invasão dos pobres’”. Esse alerta trata, especificamente, do “extraordinário aumento da população do Terceiro Mundo”. O diário carioca repercute o alerta da revista inglesa The Economist: “A maioria desses bilhões pode preferir ficar em casa, mas mesmo o movimento de uma minúscula fração desse número seria como uma invasão para a população do Norte”.
Cabe observar que as expressões “enchentes” e “enxurrada” são utilizados, em geral, para designar fenômenos da natureza onde há grande concentração de água em um mesmo espaço, causando a subida do nível dos rios e lagos, por exemplo. A função específica desse uso para se referir a seres humanos reafirma o nosso entendimento sobre a tentativa de quantificar o imenso contigente populacional de imigrantes para, como isso, desumanizá-los. A melhor forma de conter uma enchente é, afinal, colocar barreiras físicas contra ela ou, em outra hipótese, construir formas de escoamento da água.
Mais grave ainda é a utilização da figura do “fantasma da imigração” – uma opção do editor, visto que o termo não aparece em nenhum outro lugar senão no título. O “fantasma” é, nesse sentido, uma “aparição” (originalmente do grego), geralmente apavorante, de uma pessoa morta ou afastada, uma “alma do outro mundo”2.
“A imagem da alma do outro mundo materializa de alguma forma, e simboliza ao mesmo tempo, o medo dos seres que vivem no outro mundo. Talvez também seja uma aparição do eu, de um eu desconhecido, que surge do inconsciente, que inspira um medo quase pânico e que as pessoas reprimem nas trevas. A alma do outro mundo seria a realidade renegada, temida, rejeitada”, registra Jean Chevalier (Dicionário dos Símbolos, 2007). A psicanálise, acrescenta, veria nela um “retorno do que foi reprimido, produtos do inconsciente”.
NOTAS
1 Vide http://europa.eu/about-eu/eu-history/1990-1999/1991/index_pt.htm
2 Michaelis online.