Estado Novo não pode permitir “elementos raciais indesejáveis” e “pregadores do credo marxista”
Lançada em novembro de 1938 por Antônio José de Azevedo Amaral, um dos principais ideólogos do Estado Novo (1937-45), a revista mensal Novas Diretrizes: política, cultura, economia foi um dos principais veículos de divulgação da doutrina elitista e autoritária que embasou o sistema de governo vigente no Brasil naquele período1. Na edição de setembro de 1939, por exemplo, Amaral define, de modo elogioso, o Estado moderno: “As duas colunas mestras do Estado moderno são o desenvolvimento até a exaltação do espirito nacionalista e a consolidação do poder estatal nas bases seguras da disciplina moral, que coordena as populações em torno do poder público, tornando-as forças doceis e inteligentes de colaboração harmonica com o governo”.
Azevedo Amaral já havia sido redator-chefe de O Paiz e editor, juntamente com o renomado jornalista Samuel Wainer, da destacada revista Diretrizes. Ele se desentendera, no entanto, com Wainer, fundando o Novas Diretrizes e usando, inclusive, a subvenção que havia sido obtida para a Diretrizes. O formato era menor que o tradicional da época e possuía cerca de 60 páginas, parecendo mais uma publicação acadêmica do que propriamente uma revista. Muitos intelectuais colaboraram para a publicação até sem fim, em setembro de 1942, incluindo Nelson Werneck Sodré.
Por sua tendência pró-Estado Novo e pró-Vargas, Novas Diretrizes difundia “ideias nacionalistas, desenvolvimentistas, militaristas e aintiimperialistas, bem como de teses eugenistas, igualmente em voga na época”2. Em suas edições iniciais, a revista assumiu uma postura dura contra a vinda de imigrantes e refugiados de guerra no Brasil, como argumenta por exemplo na edição nº 3, de janeiro de 1939: “Chamaremos apenas a atenção para o fato de que a grande maioria dos refugiados, além de indesejáveis por virem em um estado de verdadeira exaltação da consciência racial e cheio(s) de rancor contra os elementos étnicos diferentes, é formada por indivíduos mais ou menos profundamente influenciados pelo comunismo”.
Em julho de 1941, o artigo “Infiltração judaica”, adotando uma linha violentamente xenófoba, argumentava: “O problema da penetração subreptícia de alienígenas indesejáveis continua misteriosamente a enfrentar as boas intenções e as iniciativas salutares do poder público, para livrar o país desse flagelo (…) o Brasil, com o sentimentalismo que nos veiu com as tradições liberais e com as influências africanas que desvirilizaram entre nós o espírito cristão, dando-lhe a fisionomia de uma doutrina de fraqueza e de tolerancia em relação a todas as formas de atividade maléfica, extendeu insensatamente a sua hospitalidade aos refugiados, que os outros povos se dispunham a repelir à bala, se tanto fosse necessário. (…) As ruas da nossa magnífica capital já se estão desnacionalizando com a presença dessa legião de elementos humanos inconfundíveis pelos estigmas de deterioração física que a decrepitude racial lhes estampou no corpo”3.
O primeiro texto da edição de setembro de 1939 do Novas Diretrizes4 é do próprio Azevedo Amaral – “A Política do Mês e Comentário Internacional” – e destaca “uma deficiência que até agora podia ser apontada na crítica da atuação governamental, através da fase de transformações que se vêm desenvolvendo desde a revolução de 1930”. Segundo Amaral, essa deficiência seria a “falta de coordenação sistematica de providencias de ordem geral concernentes à economia rural”.
Mesmo defendendo as ações no setor agrícola – em relação ao café, ao trigo e à cana, conforme exemplifica –, Amaral sustenta que “não se póde deixar de reconhecer que o novo regime até agora não se mostrara disposto a definir em linhas nitidas uma orientação no tocante ao que se póde qualificar de política rural brasileira”. Em linhas gerais, ele argumenta que, enquanto a democracia liberal pré-Vargas incentivava a concentração das massas nas cidades – “que assim se tornavam mais susceptiveis às manobras da demagogia eleitoral” – o Estado Novo, visando ao “desenvolvimento global da Nação e dependendo da energia e da saude das populações”, é “logicamente induzido a descongestionar os nucleos citadinos super-lotados” e a “estabelecer nas regiões rurais uma situação demográfica mais equilibrada”.
Com base nessa preocupação, o autor destaca que as condições demográficas do Brasil “não nos permitem por enquanto repousar apenas no incremento normal da nossa população”, de modo a assegurar uma “densidade tranquilizadora no conjunto do territorio brasileiro”, pelo menos não “dentro de um periodo conveniente”. A solução? Facilitar a entrada de “bons imigrantes”, o que segundo ele “se acha virtualmente solucionado pela legislação vigente”. Mesmo assim, alerta Azevedo Amaral, é “imperativo” regularizar o afluxo de imigrantes de modo a “impedir o acumulo de elementos alienigenas nas cidades” e “promover sistematicamente o seu encaminhamento para as zonas rurais”.
A principal desconfiança de Amaral é em relação aos não agricultores. “Não ha muito que no proprio Conselho Nacional de Imigração e Colonização um perito estrangeiro, cujo interesse pelos nossos problemas não deixa de ser um tanto suspeito, fez uma conferencia com o intuito de demonstrar a conveniencia de aceitarmos, além dos agricultores, imigrantes que quizessem se fixar nas cidades”, escreveu no Novas Diretrizes, classificando tal ideia como uma “intransigência” e um “erro lamentável” que “no momento atual” poderia levar a “perigosas possibilidades”.
Além da necessidade da expansão agrícola, argumenta, os “interesses iniludiveis da propria segurança nacional nos impõe a adopção inflexivel de uma politica imigratoria”. O postulado primordial desta política, atesta, deve ser “a exclusão sistematica de todos os imigrantes que não chegarem dispostos a trabalhar nos campos”.
O “exemplo argentino” e os imigrantes “inadaptáveis”
Dando continuidade à sua argumentação, Amaral exalta a política imigratória argentina, esta “grande nação do Prata”, pela sua “sábia” orientação “desde meados do século passado, quando Alberdi formulou o seu famoso postulado de que ‘povoar é civilizar’” e com “resultados tão satisfatorios”. Um dos principais pontos da política argentina, exemplifica o articulista de Novas Diretrizes, é a “coordenação invariavel entre os aspectos economicos, politicos e raciais do problema do povoamento”, afirmando que a Argentina “nunca considerou o imigrante apenas como uma unidade trabalhadora”.
O “bom imigrante”, seguindo o exemplo argentino, também é o “futuro cidadão a ser integrado na nacionalidade e destinado a constituir o procreador de elementos sadios, que perpetuassem através do futuro boas qualidades de raça”.
Uma das boas práticas do governo da Argentina, lembra o autor, são as “severas precauções restritivas” em relação à entrada de refugiados vindos da Europa central à época. Amaral exalta a posição do chanceler argentino, que afirmara que as restrições impostas à entrada de refugiados não envolvem modificação da política imigratória tradicional da Argentina, pois “um exilado indesejavel, um refugiado politico ou um refugiado social, que foge da Alemanha, Austria, Italia ou Espanha, não é um imigrante”.
Azevedo Amaral destaca que a posição do Estado argentino é transcrita no Novas Diretrizes com “satisfação” e “justo orgulho”, porque “elas [as palavras do chanceler] coincidem literalmente com o ponto de vista que estamos sustentando ha muitos mêzes”. Após a exemplificação, Amaral volta a atacar a posição do Conselho de Imigração: “Realmente, só se compreende a confusão reinante aqui a esse respeito pela falta de um exame mediocremente cauteloso de um problema, que é aliás de inexcedivel gravidade”.
Segundo Amaral, da Europa Central estão emigrando por motivos políticos, sociais ou raciais indivíduos que “não vêm trazer aos países onde procuram asilo a contribuição util da vontade de trabalhar e de enriquecer”, classificando-os como “inadaptaveis às condições existentes nas suas patrias” e que, uma vez deslocados para ambientes estranhos, “só podem neles tornar-se nucleos de descontentamento, de rebeldia, de difusão de idéas subversivas e de rancores raciais e religiosos”. Esses indivíduos, acrescenta, são os que “todas as nações recusam entrada” e que a “generosa Argentina não hesite em negar tambem sua hospitalidade” – e que o Brasil, diz, está “recebendo em massa”.
Em seu argumento, o articulista aponta que o Império Britânico, com uma área territorial quatro vezes maior que a do Brasil, não permite a entrada “senão de algumas centenas desses refugiados”, enquanto o Brasil, conforme declaração do presidente do Conselho Nacional de Imigração e Colonização citada por Amaral, “recebeu-os em numero de 4.700” no ano de 1938. “Estamos introduzindo elementos raciais indesejaveis e estamos tambem reanimando as forças do comunismo desarticuladas pela energica ação policial em 1935” – diz, em referência histórica à Intentona Comunista – “com o reforço desses pseudo-imigrantes, em cada um dos quais podemos contar com mais um pregador do credo marxista”.
Amaral diz confiar no “alto patriotismo” e na “sabedoria política” de Vargas para tomar providências “imprescindíveis” para que o Brasil deixe de ser “a unica nação do mundo que se mostra insensivel ao perigo da entrada de indesejaveis, que nenhuma sociedade bem organizada quer hospedar”.
Refugiados trazem “certos fatores étnicos”, promovendo uma “alteração indesejável nas proporções em que se vai formando a raça brasileira”
Meses antes, na edição de janeiro de 19395, o autor afirmara que os sofrimentos dos judeus da Europa Central “estão despertando nobres sentimentos de condenação daquelas injustiças por parte da consciência moral dos outros póvos”, porém – argumenta – “todos ficam no terreno da expressão platônica de juízos severos sobre a dureza dos métodos de expurgo racial do governo nazista”. Haveria, diz o Novas Diretrizes, um “consenso mundial sobre a situação intoleravel dos semitas perseguidos no Reich” mas “igual unanimidade de opinião, no tocante à recusa de asilo aos que procurarem escapar à sanha do anti-semitismo nazista”.
Entre os exemplos dados, o autor aponta que a Holanda “tem as suas fronteiras vigilantemente patrulhadas” com o objetivo de que “ninguem venha ter em seu territorio o almejado asilo”, enquanto que a França declarou “já ter dentro de suas fronteiras um número excessivo de refugiados da Alemanha”. A Inglaterra e seu “impédio mundial”, diz o autor, “contenta-se em acenar vagamente para a possibilidade de colocar alguns milhares de refugiados na África Oriental e na Guiana”, enquanto que os Estados Unidos mostram-se “indignados com a brutalidade nazista”, mas permanecem “impassíveis quanto a qualquer alteração das suas quotas de entradas de imigrantes”.
A Argentina teria “resolvido o caso” pela “simples declaração de que os seus consulados, na Europa Central, só visarão passaportes de imigrantes que provarem ser agricultores, com trabalho efetivo nos campos durante alguns anos”. Mas para onde irão, então, os refugiados da perseguiçao nazista, questiona a revista pró-Estado Novo? “As entidades interessadas no caso parecem estar convencidas de que o Brasil é a Chanaan6 predestinada para a solução do problema”, diz o autor.
Antônio José de Azevedo Amaral classifica a eventual cooperação humanitária como um modo de “pôr sobre os seus ombros o fardo total da solução do problema dos refugiados judaicos”, uma forma, na sua opinião, de “introduzir anualmente em nosso país seis mil imigrantes daquela categoria que ninguém quer receber”. Ele acusa Londres e Washington de receber os refugiados em seus países, naturalizá-los seus cidadãos, solicitar ao governo brasileiro que aumente as cotas nacionais para Inglaterra e Estados Unidos para, então, enviar estes refugiados para o Brasil.
Repudiando a manobra, Azevedo Amaral argumenta que as cotas de imigração baseiam-se na ideia de “impedir a entrada no país de elementos que venham acentuar em proporções excessivas e perigosas os traços peculiares de certos fatores etnicos, determinando assim uma alteração indesejavel nas proporções em que se vai formando a raça brasileira”. Daí, completa, a “significação de cada quota de imigração não ser apenas política, mas sobretudo racial”. A manobra inglesa e norte-americana, portanto, visa a “impor-nos sorrateiramente a aceitação de alienígenas”, que “estão sendo julgados indesejaveis por todos os países do mundo”.
Para “frustrar” a manobra, o autor pede que a lei determine que os imigrantes sejam natos dos países onde procedam. Azevedo Amaral volta a alertar que a grande maioria dos refugiados, além de “indesejáveis por virem de um estado de verdadeira exaltação da consciência racial e cheio de rancor contra os elementos etnicos diferentes”, seria formada por indivíduos “mais ou menos profundamente influenciados pelo comunismo”. Seria paradoxal, diz, que “estivessemos combatendo por todos os meios o marxismo dentro das nossas fronteiras e ao mesmo tempo introduzindo anualmente milhares de comunistas”.
NOTAS
1 Biblioteca Nacional. Vide http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/novas-diretrizes
2 Id.
3I d.
4 Vide em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=122670&pagfis=678&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#
5 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=122670&pagfis=153&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#
6 Canaã, em português, é na história judaica a antiga denominação da região correspondente à área do atual Estado de Israel, às áreas palestinas ilegalmente ocupadas, sob o direito internacional contemporâneo, como a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, e a partes do Líbano, da Síria, da área disputada nas colinas de Golã e da Jordânia. Detalhes em http://en.wikipedia.org/wiki/Canaan