Entre o crime e a fama: como o imigrante vira notícia

Por Gustavo Barreto (*)
Matéria n'O Globo de 25 de fevereiro de 1980

Matéria n’O Globo de 25 de fevereiro de 1980

Crime entre refugiados vietnamitas em São Paulo é repercutido entre vizinhos. Em outro registro, deputado português chama a atenção para os 600 mil potenciais eleitores de seu país radicados no Brasil.

As matérias sobre os imigrantes eram escassas nos anos 1980, se limitando a notas com referência a imigrantes conhecidos ou desconhecidos – tomados como personagens de uma matéria sobre outro tema, por exemplo –, ou mesmo à imigração em outros países. A primeira nota que saiu n’O Globo, por exemplo, no ano de 1980 veio no dia 25 de fevereiro, repercutindo o assassinato, em São Paulo, de um vietnamita por outro vietnamita. Este, informa o diário carioca, foi “o primeiro crime entre refugiados desde que eles começaram a chegar ao Brasil, há um ano” e “surpreendeu aos moradores do bairro Pompéia”, que segundo o jornal consideram os vizinhos vietnamitas “pacatos e tranqüilos, que nunca brigavam entre si”.

Uma tendência marca a imprensa do século XX e início do XXI no tema: o crime é um dos principais fatores de atração para seu noticiário. O jornal foi ouvir o dono do bar em frente à casa dos refugiados – seis no total, informa o diário –, que disse que eles sempre se comportavam “como os demais fregueses e gostavam muito e cerveja”. Na noite do crime, diz o relato, haviam consumido 30 garrafas.

“Embora sejam pessoas frias, nunca fizeram mal a ninguém no pouco tempo em que estão aqui. Um deles, não sei o nome, às vezes compra um monte de chicletes para a criançada”, diz o dono do bar ao Globo. “Antes de acontecer o crime, que chocou a todos aqui, inclusive a mim, não sabiam o que fazer para agradar aos vizinhos. Cantavam e brincavam muito e até queriam aprender português. Gostam muito de plantas e pretendia até dar uma samambaia para eles”, diz outro vizinho, identificado como advogado. Depois do crime, os demais refugiados – acrescenta o jornal – “não saem mais de casa, não querem falar com ninguém e (…) estão chorando muito”.

Na edição de 29 de abril do mesmo jornal, Carlos Swann alerta em sua coluna sobre o “golpe do casamento”. Afirma ele, citando informações das “autoridades brasileiras de imigração” porém sem citar números, que o golpe estaria sendo aplicado “com sucesso” por argentinos que entram no país clandestinamente.

“Tais imigrantes, cuja permanência é ilegal, acabam se casando com mulheres brasileiras, a fim de obter domicílio. Alguns chegam até a pagar pelo casamento, com o que conseguem, também, se empregar. Outros iludem suas noivas, abandonando-as após o matrimônio”, afirma o jornalista d’O Globo, acrescentando que a maioria dos casos ocorre em São Paulo, “mas no Rio há também dezenas”.

Na edição de 17 de março do mesmo ano d’O Globo um outro exemplo de como os imigrantes poderiam aparecer mais a partir de citações externas do que estritamente “nacionais”: um deputado português do Partido Social Democrata (PSD) comenta sobre as reformas que ele considera importantes para o país, passados quase seis anos da Revolução dos Cravos. Entre outras, a da legislação eleitoral que “não resolve o problema dos patrícios que vivem fora do País”1.

O deputado português – Ângelo Correia – citou ao O Globo como exemplo a proibição de os imigrantes votarem nas eleições para presidente da República, bem como o número limitado de deputados que podem ser eleitos por estes imigrantes (quatro). No total, estima o deputado citado pelo diário carioca, são 2 milhões de portugueses que vivem fora de Portugal, sendo cerca de 600 mil radicados no Brasil. Eles enviaram mais de 2 bilhões de dólares para o país europeu, disse o deputado, sem especificar em quanto tempo ou em qual período. Este número de portugueses radicados no Brasil, concluiu, seria “decisivo para qualquer eleição”.

O próprio O Globo registra, na edição de 14 de maio (p.16), o convite feito por imigrantes portugueses a um “conselheiro da Revolução de Portugal”, o tenente-coronel Vitor Alves, para falar em um “encontro aberto sobre temas livres de interesse da comunidade portuguesa”, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em reunião promovida – segundo o diário carioca – pela Comissão pró-fundação do Centro de Imigrantes Portugueses.

Uma outra menção aos imigrantes é feita na edição de 12 de junho do jornal carioca, desta vez na cobertura eleitoral da Alemanha Ocidental. Em destaque, os debates internos do Partido Social Democrata alemão (SPD, na sigla em alemão) antes das eleições que ocorreriam em outubro. O tema das políticas imigratórias, como temos ressaltado, é deixado de lado no Brasil, mas possui um discurso presente em matérias como esta.

“Quanto ao problema das minorias estrangeiras na Alemanha Ocidental”, diz a repórter do jornal carioca, em texto exclusivo para o diário, “o programa do SPD é hábil e cauteloso: por um lado, pleiteia a total integração desses imigrantes, sem, no entanto, exigir para eles o direito de voto”. A repórter registra ainda que esse foi um dos temas mais “quentes” e que “mais provocou veementes discussões” no congresso do Partido, realizado em Essen.

A omissão em relação ao tema da imigração teve, na interpretação da jornalista, uma espécie de compensação: “Para compensar, possivelmente, essa omissão, o documento desce a detalhes quanto à igualdade de direitos da mulher” – reivindicando “inclusive”, registro o texto, a “proibição de anúncios e propaganda em que a mulher for discriminada”.

Em outra matéria, no caderno de Cultura d’O Globo, edição de 22 de março também em 1980 (p.35), é feita a referência à palavra “imigrante” como de costume nas matérias deste tipo: uma menção, neste caso específico, a José Pancetti, pintor modernista brasileiro falecido, que nasceu em Campinas no início do século e era filho de imigrantes italianos.

A relação da imigração e dos seus laços estrangeiros com a sua vida artística não é tema de mais do que dez linhas curtas da matéria, que registra que Pancetti fora à Itália aos 10 anos de idade, voltando aos 19 quando era um “mero pintor de paredes e cascos de navios, ofício que aprendeu na qualidade de incorporado à Marinha Mercante italiana desde os 14 anos de idade”. Na edição de 30 de março, em outro exemplo, O Globo registra com destaque, na página 5, a morte do ex-governador gaúcho Ildo Meneghetti, “filho de imigrantes italianos”.

Apesar da baixa visibilidade que a imprensa dá ao tema da imigração, observamos que a década de 1980 foi um período de baixíssima imigração e mesmo de aumento do número de estrangeiros que deixam o país, conforme dados do IBGE2.

NOTAS

1 O GLOBO. ‘Deputado de Portugal diz que a Revolução volta às origens’, 17. mar. 1980, p.5.

2 Os dados do IBGE foram sistematizados em um infográfico da revista ‘Superinteressante’, com dados até 2011, disponível em http://super.abril.com.br/multimidia/republica-imigrante-brasil-683294.shtml

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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