Em 1859, um português lamenta sua partida para o Rio de Janeiro: “Eu jámais vos deixo, não!”
A revista A Illustração Luso-Brazileira, publicada em Lisboa e com razoável circulação no Rio, divulga em sua edição de número 24, de 18 de junho de 18591, um poema transcrito do “álbum do senhor João Montenegro” por ocasião de “sua saída para o Rio de Janeiro”.
O poema, assinado da vila de Lousã com data de 2 de junho do mesmo ano, mostra a decepção do autor com a condição de imigrante, o que fica claro no seguinte trecho: “Meus irmãos, sinto no peito / Doce effeito…. / Eu jámais vos deixo, não ! / Onde eu fôr heide levar-vos / E gozar-vos / Dentro em mim, no coração”.
No poema, seu autor antecipa a saudade que terá do seu local de origem, que o marca profundamente. É o que demonstra, por exemplo, outro trecho: “Cerca a mim eu vejo objectos / Predilectos, / Quaes com elles me creei, / Que me avivam na memoria / Grata historia / Da infancia que eu passei”.
Leia na íntegra:
Um adeus à minha terra
No album do senhor João Montenegro (Allusão)
Por occasião da sua saída para o Rio de Janeiro.
Adieu… mes voeux vous acompagne sont toujours; conservez mon souvenir…
NAPOLÉON
Adeus, minha patria amada…
Tão presada…
Outra vez te vou perder ;
Eu vivia aqui ‘squecido,
Imbuido
Nos effluvios do prazer.
Cerca a mim eu vejo objectos
Predilectos,
Quaes com elles me creei,
Que me avivam na memoria
Grata historia
Da infancia que eu passei.
N’estes plainos verdejantes
Tão brilhantes,
Com que afan vinham brincar!
E depois já fatigado
No relvado
Ia os membros reclinar.
Vejo aqui os meus pomares
Regulares,
Que me davam fructos mil ;
Vejo além rosaes immensos,
Lindos, densos,
Que florescem em Abril
N’este bosque tão saldoso
Tão frondoso
Vinha ouvir o rouxinol ;
Ia o dia declinando
E soltando
Plumbeo veo de arrebol
E se a lua então surgia?
Que magia
Me inundava o coração!…
Eu ainda não amavá
Mas scismava
Como encanta o seu clarão.
N’esta fonte rude, e bella
Por singela
Muitas horas eu passei ;
Da sua agua, que é tão pura,
Co’a frescura
Sêde e calmas abrandei.
Eu, no plintho das montanhas,
D’altas penhas
Tambem ia passear ;
Ia ás ruinas do castello
Só por vêl-o
Sem a historia lhe explorar !
Era infante, não julgava
Não pensava
Sem outr’ora um Paço ali ;
Nem sabia que a grandeza,
Que a riqueza
Tinha um dia a sorte assi.
Não sabia que um rei moiro2
Filha e oiro3
Veiu ali enthesourar ;
Nem sabia que Violante,
Seu amante
Fôra ali atraiçoar !
N’outra serra eu via erguida
Santa ermida
P’ra honrar a Mãe de Deus ;
Eu lá ia e me prostrava
E rezava
Elevando a mente aos ceos.
Quanto eu amo, nos meus lares,
Os logares
Que me dão recordações !…
Foi aqui que a mãe bondosa
Carinhosa
Mil blandicias me rendeu.
Foi aqui que os irmãos qu’ridos
Bem unidos
Nós juramos de viver.
Aqui foi que os meus parentes,
Ascendentes,
Se apraziam de me ver.
Foi aqui que os companheiros,
E parceiros
Dos meus brincos, elegi ;
São amigos que não ‘squecem,
Que merecem
Tanto amor que eu lhes rendi.
Todos, tudo o que eu amava
E gozava,
N’um momento vou deixar !…
Vou em terra protectora,
Mar em fora
Tristes dias lá passar.
Ai ! Que magoas n’alma sinto
Que d’absintho
Do meu calix vou beber !!
Dae-me força Deus pod’roso,
Deus bondoso
P’ra que eu possa a dôr vencer.
………………………………………….
Adeus patria !… não me olvides,
Não duvides
Que eu te quero immenso bem,
Meus amigos, a saudade
A amizade
Acceitae-m’as vós tambem.
Meus irmãos, sinto no peito
Doce effeito….
Eu jámais vos deixo, não !
Onde eu fôr heide levar-vos
E gozar-vos
Dentro em mim, no coração.
Lousã, 2 de Junho de 1859
NOTAS
1 A Illustração Luso-Brazileira, volume 3, página 192, disponível em http://bit.ly/1vicCEe
2 Mesmo que mouro
3 Mesmo que ouro