CNBB: Lei do estrangeiro ‘afeta a tradição do País’

Por Gustavo Barreto (*)

O líder do PMDB na Câmara acrescenta críticas ao projeto de lei: “Como o projeto condiciona a expulsão à vaga expressão ”interesses nacionais”, o arbítrio pode instalar-se sem qualquer dificuldade para qualquer pessoa que não tenha nascido aqui”.

Manchete da edição de 30 de junho de 1980 do diário carioca O Globo

Manchete da edição de 30 de junho de 1980 do diário carioca O Globo

Esta é a manchete da edição de 30 de junho de 1980 do diário carioca O Globo, que repercutiu a nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Comissão Episcopal de Pastoral que dizia “estranhar” o projeto que define a situação jurídica dos estrangeiros no Brasil, que naquele momento tramitava no Congresso Nacional.

“A CNBB e a CEP acham que o projeto fere uma longa tradição de hospitalidade do Brasil e o reconhecimento da contribuição econômica dos imigrantes”, diz um trecho da matéria.

“Não se pode negar” – diz a nota citada pelo diário – “a necessidade de se proteger a eventuais modificações na legislação sobre a situação jurídica dos estrangeiros no Brasil, sobretudo quando se trata de promover e assegurar a mão-de-obra brasileira sem deixar de oferecer oportunidades para a mão-de-obra estrangeira”.

A nota classifica o projeto como “inaceitável” pelo seu “caráter xenófobo”, ferindo “uma longa tradição de hospitalidade brasileira e o reconhecimento aos direitos que toda a pessoa humana possui de encontrar sua digna sustentação, mesmo fora do seu país”.

A nota da CNBB acrescenta que “não se vê como o projeto de lei se coadunaria com a catolicidade da Igreja que se expressa na benéfica visita e atuação através de missionários nascidos em outros países”.

O líder do PMDB na Câmara, o deputado Freitas Nobre, acrescentou críticas à proposta. Segundo ele, o projeto de lei “revoga dispositivos segundo os quais o pai, o marido e o filho brasileiros impedem a ida do filho, esposo ou esposa ou do pai estrangeiro”. E conclui: “Como o projeto condiciona a expulsão à vaga expressão ”interesses nacionais”, o arbítrio pode instalar-se sem qualquer dificuldade para qualquer pessoa que não tenha nascido aqui”.

Editorial d’O Globo: de novo o chavão da ‘hospitalidade brasileira’

Dois dias depois, na edição de 2 de julho, o próprio O Globo publica um editorial na página 4 comentando o tema, sob o título “Confiança no estrangeiro”. O discurso é parecido: o país, diz o editorialista, “sempre cultivou a vocação da hospitalidade e da tolerância em relação ao imigrante, sem distinguir sequer entre as diversas etnias envolvidas”.

O editorial ignora completamente mais de 160 anos de políticas racistas e eurocêntricas do Estado brasileiro para reafirmar o velho chavão do “país hospitaleiro”. Continua o texto dizendo que o Brasil foi “surpreendido com um projeto de lei – já em curso no Congresso – apoiado em filosofia e orientação diferentes, quase revelando sinais de irrupção de certo nacionalismo xenófobo”.

O editorial continua, ignorando fundamentalmente a História de preconceito e intolerância que marcou as políticas eurocêntricas do Estado português e, depois, brasileiro: “É claro que a política imigratória do Brasil de hoje já não pode ser a mesma de outros tempos, com aquela indiscriminação que afinal tanto valeu ao nosso processo de desenvolvimento, acrescentando-nos mão-de-obra eficiente e importantes contribuições culturais”.

Trecho da edição de 2 de julho de 1980 do jornal O Globo

Trecho da edição de 2 de julho de 1980 do jornal O Globo

Não é possível compreender exatamente o que o editorialista – o texto não é assinado – quis dizer com “indiscriminação”. A entrada de imigrantes era, na maior parte da História do Brasil até esse momento, permitida seguindo justamente critérios trabalhistas e nacionais, com os europeus predominando como imigrantes “desejáveis” durante todo a História do país, de forma abertamente racista no começo – inclusive por meio de leis bem precisas sobre o tema, feitas a partir da ideologia eugenista – e, mais recentemente, de forma mais envergonhada, a partir de políticas discricionárias dos governos.

O editorial sugere que o Brasil está livre desse racismo: afirma em outro trecho que uma nova política em relação ao estrangeiro não pode romper com esses “princípios tradicionais que temos sustentado nesse campo e dos quais tanto nos orgulhamos como nação liberta de preconceito de raça”. Para o autor do texto, a solução para melhorar o projeto é aparentemente simples: “Bastaria que o Governo, autor do projeto, cercasse a estada do estrangeiro no País daqueles cuidados propostos pelos complicadores da contemporânea conjuntura interna e externa e que dizem respeito, sobretudo, a problemas de criminalidade e de segurança”.

“Tudo isso”, acrescenta o editorial, “sem afetar o estado psicológico, as expectativas e os já arraigados testemunhos de identificação com o nosso povo de milhões de estrangeiros absolutamente alheios aos perigos e desconfianças hoje suscitados pelas autoridades”. A expulsão de estrangeiros não pode se tornar uma ferramente de intimidação, diz o editorial. “A generalidade com que o projeto veda a legalização da estada de todo estrangeiro que se encontre no país clandestina ou irregularmente, e também com que proíbe a transformação em permanente dos vistos de trânsito, de turista ou temporário, sem nenhuma dúvida está a reclamar um corretivo desradicalizante”, continua o texto.

O jornal argumenta que nem sempre o estrangeiro em situação irregular assim se encontra por vontade própria ou “merece a pecha de perigoso ou indesejável”. O editorial considera “igualmente radical” o propósito do projeto de lei de só conceder visto definitivo ao imigrante que vier acrescentar mão-de-obra especializada ao país. Segundo O Globo, essa é uma exigência adequada apenas “para as economias desenvolvidas, saturadas, e de poderosas resistências sindicais nos meios trabalhistas”.

O editorial que até mesmo cientistas, professores, intelectuais e missionários sofrerão com os “condicionamentos excessivos” impostos pelo projeto. O Globo, em um tom amistoso, credita essa situação a “acidentes de formulação” sofridos pelo projeto, dando margem a interpretações “muito além da verdadeira vontade do legislador”. E sugere: “Há tempo suficiente para que, através de sua maioria parlamentar, o Governo promova as corrigendas necessárias e reponha a tradição da boa acolhida ao estrangeiro como regra dominante da nossa formação histórica e cultural”.

Na mesma página, o jornal destaca matéria sobre o tema com a manchete: “Oposição vai apelar à ONU contra lei dos estrangeiros”. Os partidos da oposição se uniram contra o projeto, diz o diário, para pedir que o organismo internacional interfira junto ao governo brasileiro “pressionando-o a reexaminar a proposta”. A informação foi dada à época pelo então líder do Partido dos Trabalhadores (PT), o advogado Airton Soares: “Além de recorrer à ONU, as oposições deflagrarão uma campanha nacional para mobilizar todos os segmentos da sociedade nacional – inclusive a OAB, ABI e CNBB – bem como associações culturais ligadas a outros países, tendo em vista a retirada do projeto dos estrangeiros”.

Airton Soares alertou, por exemplo, que o projeto criaria um Conselho de Imigração com “todos os poderes possíveis para regulamentar e fiscalizar as atividades dos estrangeiros no Brasil”. Ele exemplifica, citado na matéria: “Os poderes são tantos que se este conselho considerar, por exemplo, o avô de Nelson Marchesan1, que é estrangeiro, persona ”non grata”, ele poderá ser expulso do país”. Segundo o deputado, outro ponto que considerou “inadmissível” foi o fato de autorizar o governo federal a entrar “em contato com outros governos, para a repatriação de estrangeiros”.

Diante desta proposta, Airton dispara: “O projeto foi forjado nos laboratórios do cone Sul do continente, nessa viagens do Figueiredo, e tem por objetivo impedir que o Brasil se transforme em um santuário de oposicionistas da Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile”. E conclui ele, citado pelo diário carioca: “A futura lei, se for aprovada como está, permitirá que centenas de religiosos que prestam serviços à comunidade brasileira fiquem à mercê do Executivo”.

Destaca-se que, neste momento, ainda se estava longe de saber sobre a existência da Operação Condor – uma cooperação internacional constituída nos anos 1970 pelas ditaduras na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai para perseguir, reprimir, torturar e assassinar opositores políticos hostis aos governos militares em vigor, além das fronteiras nacionais. As ações, reveladas apenas em 1992 a partir de documentos no Paraguai, violavam dezenas de direitos destes opositores, entre os quais o direito ao refúgio e o direito internacional dos direitos humanos.2

Disputa no Congresso: lei dos estrangeiros afeta até mesmo famílias dos parlamentares

A coluna política do jornal O Globo de 3 de julho de 1980 dá alguns detalhes sobre os bastidores institucionais que cercam a votação da lei. A coluna diz ser este o “primeiro problema do segundo semestre” para o governo no Congresso. A votação da nova Lei de Estrangeiros estava prevista para o dia 5 de agosto. Apesar de sua “inevitável conotação política”, diz o diário carioca, a lei não chegou a figurar na agenda do comando político do governo, “nem consta que tenha sido previamente discutida com as lideranças do PDS [o partido governista, ex-ARENA], pela simples razão de que não se imaginava que pudesse mobilizar a oposição e dividir a bancada governista”.

O projeto que o governo de Figueiredo enviou ao Congresso, informa o jornal, é o projeto que seus “técnicos elaboraram” e ao qual o relator “sequer ofereceu substitutivo, limitando-se a emendas”. Segundo o oposicionista Marcelo Cerqueira, que também era o presidente da comissão mista encarregada de dar parecer –, as emendas “só pioram o que já era ruim”.

Coluna política do jornal O Globo de 3 de julho de 1980

Coluna política do jornal O Globo de 3 de julho de 1980

A forma como a oposição evidenciou a falta de qualidade da legislação é no mínimo curiosa: eles demonstraram que cerca de 70 parlamentares de todos os partidos que são filhos ou netos de estrangeiros – e suas famílias seriam, portanto, diretamente afetadas pela aprovação do projeto. “Desses 70, a maioria pertence ao PDS e vem sendo trabalhada não só pela oposição, como pela pressão de sua base étnica”, registra a coluna d’O Globo.

Por todo o mês de julho, acrescenta a coluna, associações representativas “dessas bases étnicas” e mais de 15 entidades representativas “das áreas de ciências sociais” pretendem trabalhar em conjunto para “criar o clima de opinião pública que dê respaldo à articulação parlamentar e de outro lado recrutar número suficiente de votos para a rejeição da lei”.

O projeto teria nascido a partir da uma exceção, o caso do britânico Ronald Biggs, conhecido como o “ladrão do século”. Um breve histórico: Biggs participou de um assalto considerado “espetacular” a um trem com outros 16 membros de uma gangue, em agosto de 1963. O trem ia de Glasgow, na Escócia, para a capital inglesa, Londres. Eles conseguiram fugir levando 2,6 milhões de libras. Todos os ladrões (incluindo Biggs) foram presos em janeiro de 1964.

Processado e condenado a 30 anos de prisão, Biggs foi enviado para uma penitenciária em Londres, de onde conseguiu fugir 15 meses depois. Ele passou por cirurgias estéticas e viveu como foragido na Espanha, na Austrália e, principalmente, no Brasil. Ele chegou ao Brasil em 1970 usando um passaporte falso e ficou no país praticamente sem interrupções, até maio de 2001, quando voltou voluntariamente.3

Por conta justamente de uma brecha na legislação e a ausência de um acordo bilateral sobre o tema, Biggs – que era então casado com uma brasileira e pai de um filho também brasileiro – não poderia ser extraditado. A partir desta exceção, argumenta a coluna do jornal O Globo, o governo “vai criar uma cerrada malha de restrições a centenas de milhares de estrangeiros que se fixaram de boa-fé no Brasil”.

A oposição considerava, continua a coluna, que o verdadeiro objetivo do projeto é “criar obstáculos à vinda ou permanência de 100 mil exilados dos chamados Cone Sul”, que poderiam “exercer daqui a ação política contra os respectivos governos”; e, ainda, aos sacerdotes estrangeiros – que seriam, diz o jornal, 40% do clero em atuação no Brasil e que, em sua maioria, “filiam-se à chamada igreja progressista”. Até mesmo o objetivo declarado do projeto – proteger o mercado de trabalho, evitando a invasão da mão-de-obra imigrante – “não chega a ser assegurado, segundo a oposição, pelo texto em exame”.

A coluna também argumenta que a votação faz parte de um contexto estritamente político-partidário no Congresso: “No primeiro semestre, a maioria do Governo na Câmara não chegou a ser testada. Como ela ainda não se consolidou, a oposição detectou na Lei dos Estrangeiros uma oportunidade de avançar mais um passo na guerra de desgaste que trata com o PDS no Congresso”, avalia o diário carioca, concluindo que a aprovação do projeto “não chegaria a ser uma vitória política importante para o Governo”, mas “sua derrubada seria uma derrota embaraçosa”.

NOTAS

1 À época, líder do governo João Figueiredo (1979-1985) na Câmara dos Deputados. Seu avô era imigrante italiano no Rio Grande do Sul.

2 Para detalhes sobre a Operação Condor, ver por exemplo http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/12769 e http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=401

3 Mais detalhes da vida de Biggs em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131218_ronald_biggs_obituario_fn.shtml e http://bit.ly/1onGNkF

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Um pitaco sobre “CNBB: Lei do estrangeiro ‘afeta a tradição do País’

  1. Pingback: Brasil no Mundo | Contribuições para a Política Externa Brasileira | Projeto mostra história da imigração no Brasil por meio da imprensa |

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *