Brasil, 1976: Portugueses hostilizam angolanos ‘com gestos que sugeriam o mau cheiro’

Por Gustavo Barreto (*)
Conflito em Angola começou em 1975 e devastou o país. Foto: Arquivo do jornal O Globo

Conflito em Angola começou em 1975 e devastou o país. Foto: Arquivo do jornal O Globo

A ano de 1975 marcou profundamente Angola, país que lutava por sua independência, impulsionado pela revolução portuguesa dos cravos de abril de 1974. Angola se tornaria independente de Portugal oficialmente no dia 11 de novembro de 1975, mas em meio à disputa pelo poder por três grupos dissidentes, tem início no país africano um das mais longos e sangrentos conflitos civis de todos os tempos: mais de 4 milhões de pessoas foram deslocadas, no total, com o número de mortos estimado em mais de 500 mil pessoas até 2000, pouco antes do fim declarado da guerra.1

Duas semanas após a independência, já eram contabilizados 40 mil mortos e 1 milhão de desabrigados. A maioria dos brancos – cerca de 400 mil – deixara o país.2 Nas antigas colônias portuguesas estavam radicados cerca de 600 mil portugueses, a maioria em Angola3.

Neste contexto, a edição de 30 de abril de 1976 do jornal Folha de S. Paulo registra um incidente notável no consulado português do Rio de Janeiro. Haviam chegado à cidade 12 refugiados angolanos em sete barcos pesqueiros – sendo quatro crianças –, registra a Folha.

Segundo o jornal, eles foram ao consulado português para regularizar seus documentos, acompanhados de representantes da Polícia Federal e da Polícia Marítima, e foram recebidos pelo chefe do setor de imigração do consulado, que colocara um funcionário para atendê-los exclusivamente, pois quatro deles não tinham – relata o jornal – nenhuma documentação que pudessem identificá-los.

Trecho da edição de 30 de abril de 1976 do jornal Folha de S. Paulo

Trecho da edição de 30 de abril de 1976 do jornal Folha de S. Paulo

Para facilitar o trabalho, diz o jornal, os refugiados ficaram numa sala isolada, o que “não foi o bastante para evitar incidentes com portugueses”, que os trataram “de modo agressivo, principalmente os negros, devido à situação tensa entre negros e brancos em Angola”. Segundo registra a Folha, os portugueses que foram ao consulado e entravam por acaso na sala reservada aos angolanos “demonstraram o seu desagrado pela presença dos negros, com gestos que sugeriam o mau cheiro”.

Quando esperavam pelo registro provisório dado pelo consulado, registra o jornal, o representante da Polícia Federal “logo os orientou no sentido de que não poderiam falar à imprensa”, decisão acolhida pelo chefe do setor de imigração do consulado, que alegou um “compromisso de honra” feito entre os dois governos, “do qual não deu detalhes”. Com a porta da sala onde estavam os angolanos aberta, “alguns portugueses que tinham ido ao consulado tratar de seus papéis começaram a fazer perguntas agressivas aos negros refugiados”.

“Como é, e a situação em Angola? Os pretos continuam a tirar dinheiro dos brancos?”, disse um português, segundo registro do jornal. Os negros, diz a Folha, “assustados e sem saber o que dizer, entreolharam-se e não responderam”. Diante da insistência do português, “os negros disseram que não tinham nada com isso, que estavam fora de Angola (eles vieram da África do Sul)”.

O representante da Polícia Federal pediu, então, a intervenção do representante do consulado. “A porta da sala foi fechada, mas isso de pouco adiantou. Em seguida, entrou uma senhora portuguesa que fez cara feia para os angolanos e abanou a mão pelo nariz reclamando pelo mau cheiro da sala”, registra a matéria.

NOTAS

1 ‘Angola completa 25 anos de independência e guerra civil’. BBC, 11 nov. 2000. Disponível em http://bbc.in/1pfN8i2

2 ‘Angola: do colonialismo à guerra civil’. O Globo, 23 set. 2013. Disponível em http://glo.bo/1pfOdXl

3 ‘Cronologia 1974-2002: Das independências ao fim da guerra em Moçambique e Angola’. DW, 11 dez. 2013. Disponível em http://bit.ly/1pfNtl1

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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