Voz Operária: Imigrantes italianos ‘revoltam-se’ contra o latifúndio

Por Gustavo Barreto (*)
Na legenda da foto publicado no jornal Voz Operária de 17 de janeiro de 1953: ''Imigrantes italianos em São Paulo, na hospedaria, aguardando a hora de embarque de retorno à Itália, falam ao repórter: 'Não se pode suportar a miseria e a exploração das fazendas de café do Brasil. Nem casa decente para morar tinhamos. Por isso voltamos'.''

Na legenda da foto publicado no jornal Voz Operária de 17 de janeiro de 1953: ”Imigrantes italianos em São Paulo, na hospedaria, aguardando a hora de embarque de retorno à Itália, falam ao repórter: ‘Não se pode suportar a miseria e a exploração das fazendas de café do Brasil. Nem casa decente para morar tinhamos. Por isso voltamos’.”

O jornal Voz Operária, com sede no Rio de Janeiro, publica em uma das manchetes da edição 17 de janeiro de 19531: “Imigrantes italianos revoltam-se contra o latifúndio”. O jornal, o principal porta-voz do Partido Comunista Brasileiro (PCB)2, observa que o governo de Getúlio Vargas está promovendo a imigração italiana em grande escala pois “assim, alegam os homens do governo, é que se resolve o problema da agricultura brasileira”. Para Getúlio, aponta o diário, o problema é a “falta de braços e não o latifundio, a falta de terra para quem a trabalha”. Na prática, rebate o Voz Operária, os colonos italianos “se revoltam e desejam retornar à pátria”.

O jornal comunista observa que milhares desses imigrantes foram enviados para as fazendas após terem passado uma “boa temporada” em lugares onde puderam dispor de “regular conforto”, que o jornal classifica como uma “encenação para fazer jus à propaganda desenvolvida pelo govêrno ao aliciá-los”. E completa: “Tudo isso além das promessas de trabalho bem pago, infundia esperança àqueles homens, mulheres e jovens que, sorridentes, aguardavam a terra da promissão”.

O Voz dedica-se a contar o caso de italianos enganados por banqueiros e usineiros da Fazenda Guatapará, na região de Ribeirão Preto. Afirma que chegaram lá 90 pessoas que, inicialmente, foram muito bem recebidas. Além de mostrar a eles as plantações e pastagens, “falavam de ordenados especiais, e que o serviço era mecanizado, mas, no dia de pagar o serviço o que se viu foram enxadas e 35,00 por dia”. O periódico observa ainda que o ordenado era “especial” porque o dos brasileiros era de apenas 25 cruzeiros. “Os italianos, vendo-se enganados, fizeram uma contra-proposta: 50 cruzeiros com comida ou 100 cruzeiros a sêca.”

Os Morganti – proprietários da fazenda – não aceitaram, relata o jornal. Além disso, para amedrontar os imigrantes, chamaram a polícia. Registra o Voz Operária: “Os imigrantes começaram a rir e a zombar dos fazendeiros. Os soldados chegaram armados de fuzis, acompanhados do delegado de Ribeirão Preto. Então, os italianos tomaram de tambores de querosene vazios, latas e pandeiros e iniciaram uma batucada de protesto exigindo a volta para S. Paulo”. O clima parecia tenso, mas a descrição do jornal comunista contradiz a impressão: “Veio a vizinhança. A batucada continuou e os componentes do bloco, unidos, riam da polícia, dos fuzis, do delegadinho…”

O Voz Operária conclui, então: “Com a chegada do consul italiano, voltaram para S. Paulo, deixando aos colonos brasileiros daquela e de outras fazendas um belo exemplo de luta”.

Manchete no jornal Voz Operária de 17 de janeiro de 1953: revolta contra condições de trabalho em colônias de imigrantes.

Manchete no jornal Voz Operária de 17 de janeiro de 1953: revolta contra condições de trabalho em colônias de imigrantes.

Em outro caso relatado pelo jornal comunista, na Fazenda Cocais, 50 imigrantes reclamaram do salário de 18 cruzeiros, exigindo 35, além de pedirem “casas limpas, jornada de 8 horas etc., segundo as promessas do Serviço de Imigração”. Um representante do consulado italiano chegou para “acalmar os grevistas”, registra o jornal, mas a fazenda “teve de ceder ante a firmeza deles”. E registra: “Mesmo vitoriosos, os italianos preferiram retornar à pátria”.

O Voz Operária afirma que o momento foi um exemplo para os brasileiros: “Durante a luta, os italianos convidaram os colonos brasileiros para se unirem a eles e, agora, após a saída dos europeus, luta-se por aumento da diária, por 8 horas de trabalho, por aumento do trato de mil pés (…) com direito a férias e ao descanço remunerado”. Os italianos mostram “como se luta” na Itália contra os latifundiários, acrescenta o periódico comunista, e o governo de De Gasperi, o então primeiro-ministro italiano. “Êste, como o de Getúlio, é lacaio dos imperialistas americanos”, resumo o jornal, afirmando que os trabalhadores italianos deram “impulso” às lutas que se desenvolvem no campo, principalmente nas fazendas, gerando solidariedade entre os trabalhadores brasileiros.

Diante da dificuldade com os imigrantes italianos, o jornal afirma que o governo quer substituí-los pelos “nordestinos que fogem da sêca e, para buscá-los, enviam tiras do DOPS a Recife e Maceió para fornecer passagens e indicações das fazendas”. O jornal, agora em um tom mais panfletário, conclui: “Os imigrantes italianos regressam à sua pátria fugindo do terror do latifúndio, mas os nordestinos aqui ficaram, em sua própria casa, para lutar decididamente por suas reivindicações, para combater a exploração e a miséria imposta pelos grandes fazendeiros”.

A edição do Voz Operária de 6 de fevereiro de 19543 traz uma outra matéria sobre as condições de trabalho na Fazenda Guatapará. O jornal informa que os proprietários da fazenda, os irmãos Morganti, são conhecidos como os “tubarões do açúcar”. Eles teriam ganho esse apelido, diz o Voz, por serem donos da Usina Tamoio, em Araraquara, e da Usina Monte Alegre, em Piracicaba.

Trecho da edição do Voz Operária de 6 de fevereiro de 1954

Trecho da edição do Voz Operária de 6 de fevereiro de 1954

Registra o periódico comunista que há 4 meses não há pagamento tanto para os colonos quanto para os demais trabalhadores. Na Fazenda Guatapará, continua, há 15 mil alqueires de terra com 1 milhão de pés de café, grande quantidade de plantação de cana que serve à Usina Tamoio. Ao lado, a fazenda Aparecida, também dos Morganti, tem uma grande plantação de juta, planta que serve para a fabricação de cordas e barbantes, entre outros produtos.

Denuncia o Voz Operária que “mais de 1.000 famílias vivem sob brutal exploração dos Morganti”, tendo sido nesta mesma fazenda, recordam, que os imigrantes italianos se recusaram a trabalhar “devido ao salário de fome”. O jornal afirma que existe na fazenda um armazém onde “tudo é mais caro”. E acrescenta: “Sem dinheiro, os trabalhadores são obrigados a comprar ali. Se uma mercadoria vale 20,00, eles a vendem a 25 e 30 cruzeiros”. O armazém, denuncia o jornal, é apresentado como uma facilidade, pois os trabalhadores não precisariam ir até a cidade fazer compras.

Além disso, as férias também não estariam sendo pagas – e aqueles que reivindicam seus direitos estariam sendo perseguidos por jagunços e capangas dos Morganti. “Tudo isto mostra a grande necessidade dos trabalhadores se organizarem, para acabar com essas explorações. Os trabalhadores da fazenda Guatapará, como os das outras fazendas do município de Ribeirão Preto, devem sem perda de tempo, organizar seus sindicatos”, conclui a matéria do Voz Operária.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154512&pagfis=2128&pesq=

2 Fundado em 1949, o jornal foi durante mais de uma década o porta-voz do PCB. Em 1959, dentro de um processo de reformulação de sua linha editorial, o PCB decidiu fechar periódico e fundar um novo jornal, que recebeu o nome de “Novos Rumos”. Entre 1964 e 1975, o ‘Voz Operária’ voltou a ser publicado na clandestinidade, sendo editado no exterior até agosto de 1979. Além disso, teve alguns números editados clandestinamente durante o ano de 1980. Veja http://bit.ly/1ySHpV2; edições digitalizadas entre 1949 e 1959 estão disponíveis no site da Biblioteca Nacional, em http://hemerotecadigital.bn.br/voz-operaria/154512

3 Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154512&PagFis=2835&Pesq=

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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