Visita do papa polonês ao Brasil em 1980: imigrantes em destaque

Por Gustavo Barreto (*)

Em um discurso para milhares de poloneses e descendentes de poloneses em Curitiba, João Paulo II se dirige diretamente aos “irmãos e irmãs de origem portuguesa, que aqui tendes segunda pátria”, afirmando que os imigrantes portugueses – os primeiros imigrantes, responsáveis em grande parte pelo genocídio de mais de 90% dos povos originários do território brasileiro atual – colocaram “a serviço desta comunidade nacional as vossas nobres tradições e qualidades humanas cristãs”.

Visita do papa em Curitiba, em julho de 1980. Foto: curitibaantiga.com

Visita do papa em Curitiba, em julho de 1980. Foto: curitibaantiga.com

O papa João Paulo II, líder mundial da Igreja Católica, teve sua passagem amplamente registrada pela imprensa brasileira. Ele chegou em 30 de junho a Brasília e ficou até o dia 11 de julho, passando por Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Aparecida (SP), Porto Alegre, Curitiba, Manaus, Recife, Salvador, Belém, Teresina e Fortaleza. Uma das matérias – do jornal O Globo de 5 de julho de 1980 – registra a expectativa do encontro do papa com 60 mil poloneses, seus conterrâneos, e descendentes de poloneses em um estádio de futebol de Curitiba.

No centro do gramado, registra a matéria, foi construída uma cabana construída por imigrantes poloneses em 1882 na colônia de Tomaz Coelho, desmontada e levada para a ocasião especial. “Ao chegar no estádio hoje, João Paulo II será recebido à porta da cabana por uma família de imigrantes vestida com trajes típicos poloneses, que o recepcionará oferecendo pão e sal, como manda a tradição da Polônia”, descreve o jornal, que dá a receita do pão de centeio preparado uma descendente de imigrantes de 80 anos, que diz fazer questão de “manter vivas em suas duas filhas, quatro netos e seis bisnetos as tradições polonesas”.

Depois de ser saudado pela família polonesa, descreve o diário, o papa assistirá a diversos números de dança e canções folclóricas interpretadas por grupos de imigrantes, além de receber da colônia três presentes: dois álbuns de fotografia, um do Brasil e outro do Paraná, e “uma imagem do Cristo Imigrante, esculpida em madeira”.

Trecho do jornal O Globo de 5 de julho de 1980

Trecho do jornal O Globo de 5 de julho de 1980

A cerimônia será toda em polonês, anuncia o jornal, que também informa que haverá uma missão campal no dia seguinte que será assistida “por representantes de 19 etnias que ajudaram na colonização do Paraná”, enumerando na verdade 14: poloneses, ucranianos, italianos, alemães, espanhóis, portugueses, japoneses, holandeses, sírio-libaneses, romenos, gregos, coreanos, paraguaios e suíços. No final da missa, o papa benzerá, segundo o jornal, a pedra fundamental da catedral ucraniana de Curitiba, cujas obras estavam previstas para começar em agosto.

No dia seguinte à cerimônia no estádio, no dia 6 de julho, o jornal O Globo destaca que havia 60 mil pessoas, “em sua maioria poloneses ou descendentes de poloneses”, com o papa reforçando o discurso da “hospitalidade” brasileira. Em sua saudação aos imigrantes, descreve o jornal, João Paulo II disse que todos ali presentes representavam “a ecumenicidade, hospitalidade e cordialidade” do Brasil, dizendo ainda que “aqui pessoas de todas as partes formam juntas só um povo”. Ele não falou somente em polonês, como fora anunciado, fazendo breves saudações em alemão, italiano e espanhol, além de um discurso “de duas laudas” em português.

Edição de dia 6 de julho do jornal O Globo: saudação às ''etnias'' do Brasil e agradecimento especial aos portugueses.

Edição de dia 6 de julho do jornal O Globo: saudação às ”etnias” do Brasil e agradecimento especial aos portugueses.

Observa-se que, no jornal O Globo especificamente, as menções aos termos “imigrantes” e “etnias” – este última um sinônimo usado à época para os imigrantes – superou, somente durante a visita do papa, todas as citações anteriores sobre o tema.

O desinteresse pelos imigrantes no Brasil contrasta com o interesse um pouco menos eventual pela imigração em geral – como na reportagem de destaque da edição de domingo, de 6 de julho, do mesmo diário, intitulada “Os hispânicos na América: cada vez mais longe da Terra Prometida”. A reportagem, assinada por uma correspondente em Nova York, explica minuciosamente a questão “hispânica” na cidade – fazendo referência, inclusive, ao contexto histórico da imigração dos “hispânicos”.

Voltando à cobertura da visita do papa: o jornal publicou na íntegra, em português, a saudação aos imigrantes feita no estádio. O discurso de João Paulo II sobre a imigração, trazido no contexto da minuciosa cobertura da visita do papa – O Globo publicou, no total, centenas de páginas descrevendo cada momento, por menor que tenha sido –, foi uma das raras oportunidades em que uma reflexão sobre o tema da imigração aparece com tanto destaque, especialmente em um período mais recente.

“Quisera eu que a minha saudação cristã, perante esta simpática assembléia, ressonasse com uma intensidade de amor semelhante à da palavra de São Pedro, de quem sou humilde sucessor, certa vez, em Jerusalém. Diante de números ouvintes, ”provenientes de todas as nações que há debaixo do céu” (cf. At. 2,5), em seu primeiro discurso, São Pedro proclamava que Jesus é o Senhor, o Messias; e todos, por milagre, o entenderam ”na própria língua” do país de origem”, começa João Paulo, enviando uma saudação os “brasileiros de nascimento ou brasileiros de adoção” e a todos os “diversos grupos étnicos, espalhados e harmoniosamente integrados neste querido Brasil, imenso e belo”.

O discurso é predominantemente religioso, porém por vezes permeado de ideais de nação, como no trecho acima ou quando afirma, em outro momento, que “a comunidade humana e cristão que constituis, em exemplar bom entendimento e comunhão de brasilidade, seja sempre mais iluminada pelo amor de Deus e do próximo e continue a prosperar, com as bençãos divinas!”.

Em outro trecho, ele se dirige diretamente aos “irmãos e irmãs de origem portuguesa, que aqui tendes segunda pátria”, afirmando que os imigrantes portugueses – os primeiros imigrantes, responsáveis em grande parte pelo genocídio de mais de 90% dos povos originários do território brasileiro atual – colocaram “a serviço desta comunidade nacional as vossas nobres tradições e qualidades humanas cristãs”.

A capa da edição de 7 de julho do jornal carioca traz, em sua manchete principal, uma menção ao tema: “Para: Igreja não pretende intrometer-se na política”. Apesar dessa ênfase, o discurso do papa em Salvador teve efetivamente um tom político, incluindo a lei dos estrangeiros que estava em discussão.

Por um lado, o papa disse que a Igreja “pretende respeitar as atribuições dos homens públicos” e que “não tem a pretensão de intrometer-se na política, não aspira a participar na gestão dos assuntos temporais”. Sua contribuição específica, continua, será a de “fortalecer as bases espirituais e morais da sociedade”.

Trecho da capa da edição de 7 de julho de 1980 do jornal O Globo

Trecho da capa da edição de 7 de julho de 1980 do jornal O Globo

Ao mesmo tempo, João Paulo II falou sobre a “realização da Justiça” na América Latina: “Ou se faz através de reformas profundas e corajosas, segundo princípios que exprimem a supremacia da dignidade humana, ou se faz – mas sem resultado duradouro e sem benefício para o homem, disto estou convencido – pelas forças da violência”.

Pela manhã, ainda em Curitiba – destaca O Globo –, em seu discurso sobre “as etnias do Brasil”, o papa “exortou os brasileiros a manter as fronteiras abertas aos imigrantes” e “elogiou a convivência das raças no País”, segundo a descrição do jornal.

Imagens do papa em Curitiba, incluindo cenas do momento no estádio e as apresentações dos poloneses, estão em:

E uma reportagem da TV Globo:

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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