Trabalho livre, mas nem tanto: a ‘Sociedade Promotora da Imigração’ (1886-1895)

Por Gustavo Barreto (*)
'Immigração Provincial', publicada no Correio Paulistano em 4 de julho de 1886. (Acervo APESP)

‘Immigração Provincial’, publicada no Correio Paulistano em 4 de julho de 1886. (Acervo APESP)

Pouco antes da abolição formal da escravidão, os astutos proprietários de lavouras de café de São Paulo sentiram a necessidade de não ver seus lucros diminuírem com a ampliação da liberdade dos trabalhadores. Prevendo o cenário que já se delineava há muito tempo, alguns destes proprietários de capital e de terras criaram no dia 2 de julho de 1886 a Sociedade Promotora de Imigração.

Dentro de um objetivo maior de obter lucro, seus criadores tinham dois objetivos específicos: (a) promover a entrada de mão de obra barata para a lavoura, obtendo uma espécie de indenização pelos escravos libertos; e (b) aumentar a oferta de trabalhadores e, dessa forma, forçar a baixa dos salários (Santos, 20071). Identificados como republicanos, em uma sociedade conservadora que, em parte, ainda resistia abertamente ao trabalho livre, seus sócios utilizaram uma metodologia que marca a prática liberal até os dias atuais: a iniciativa é privada, mas o dinheiro é público.

Para alcançar estes dois objetivos principais, a Sociedade foi criada com outro objetivo declarado: o de “promover a imigração estrangeira em larga escala para o Estado de São Paulo, sem caráter especulativo ou de lucro, na forma de uma sociedade civil com capital subscrito de 500:000$000, divididos igualmente entre os participantes fundadores” (Id.).

Criada com base em uma legislação de 1885, que estabelecia o sistema de imigração por contrato com reembolso da passagem ao imigrante ou à família de imigrantes, a Sociedade Promotora de Imigração tinha uma preocupação especial em fixar o imigrante no campo e, para isso, utilizou como um dos métodos a atração de famílias, e não de imigrantes solteiros.

Alguns de seus sócios defendiam inclusive a vinda das famílias inteiras – incluindo idosos, incapazes, recém-nascidos etc. –, não por motivos humanistas, e sim capitalistas: desta forma, ficavam os imigrantes mais seguros, felizes e, portanto, mais produtivos. O objetivo da Sociedade foi cumprido: nos seus nove anos de atividade, de 1886 a 1895, a organização introduziu 266.732 imigrantes no Estado de São Paulo, com colocação inicial total de 100% em fazendas.2

Fazenda Pão d’Alho – R. Preto. Fotografia de Guilherme Gaensly, início do século XX. (Acervo APESP)

Fazenda Pão d’Alho – R. Preto. Fotografia de Guilherme Gaensly, início do século XX. (Acervo APESP)

Segundo Santos (2007), este grande contingente de imigrantes “permitirá que a lavoura cafeeira continue a se desenvolver e possa também expandir para as terras desocupadas do oeste paulista, permitindo assim um grande acúmulo de riquezas, principalmente aos seus sócios”. Quais eram estes sócios, afinal? Santos afirma que tratava-se de “um grupo de importantes e eminentes fazendeiros produtores de café que tinham como principal preocupação a garantia de braços para suas lavouras nesta época de iminência do fim da escravatura no Brasil”.

Com entrada no Legislativo e no Executivo (nacional e paulista), o que era essencial para seus negócios, os sócios precisavam atrair uma grande quantidade de imigrantes, dedicados inteiramente à lavoura e – talvez o mais importante – sem grandes custos. A solução? Santos resume: “O Estado tudo pagou”. Não à toa, o presidente e o vice-presidente da província de São Paulo – Antônio de Queiroz Telles (o barão de Parnaíba) e Francisco Antonio de Souza Queiroz Filho, respectivamente – eram, na época da fundação da Sociedade, em 1886, participantes do quadro de sócios da organização.

Além deste aspecto intervencionista, peculiar para um autodenominado liberal, outro aspecto chamava a atenção: a Sociedade tem o domínio de todas as etapas do processo imigratório, se responsabilizando pela localização, contratação, transporte e colocação nas fazendas do estado. Garantia assim a sua colocação na produção de café no interior do estado, pois era na Hospedaria que os fazendeiros tinham livre acesso aos imigrantes. Já os imigrantes, em contrapartida, “não tinham livre acesso ao mundo exterior para conseguir colocação onde bem entendessem” (Id.).

O regulamento da Hospedaria de Imigrantes, administrado pelo governo provincial, previa a proibição total de entrada e saída dos imigrantes e de pessoas a eles ligados. Estavam autorizados apenas os fazendeiros com interesse na contratação. Segundo Santos (2007), “enxerga-se aqui resquícios de uma prática escravocrata que tenta por todas as maneiras controlar também o trabalhador livre por meio da força, impedindo-o de encontrar outro trabalho senão o proposto pela Promotora e de estabelecer-se em outra localidade senão aquela determinada pela mesma”. Para a liberal Sociedade Promotora, “o controle total dos portões era crucial para a execução dos seus objetivos” (Id.).

Um de seus maiores apoiadores foi o próprio ministro da Agricultura3, Conselheiro Antônio da Silva Prado, cafeicultor, banqueiro e empresário de orientação conservadora – ele escrevia frequentemente no Correio Paulistano, órgão do Partido Conservador4. Antônio Prado era irmão de Martinho Prado Júnior, um dos mais atuantes sócios da Sociedade Promotora. Com o Conselheiro Antônio Prado ministro, é aprovada uma lei que permite o funcionamento de sociedades privadas promotoras da imigração europeia, com pagamento integral das passagens (Id.). Prado ficou conhecido por incentivar intensamente a imigração italiana, sendo homenageado em uma cidade no Rio Grande do Sul que leva seu nome5.

Com ele à frente, a Secretaria da Agricultura também concede crédito ao jornal A Província de S. Paulo (o atual O Estado de S. Paulo) para apoiar a impressão de folhetos sobre imigração. O Correio Paulistano e a Província são dois dos jornais que mais dão destaque à Sociedade, em parte pela sua ligação estreita com os cafeicultores paulistas. O Correio Paulistano, por exemplo, em uma matéria de 4 de julho de 1886, elogia a assinatura de um ato entre o governo provincial e a Sociedade Promotora, parabenizando o presidente da Província, o barão de Parnaíba. Isso, recorda-se, apenas um dia após a fundação da Sociedade, no dia 2 de julho, visto que o jornal fala da assinatura no dia anterior, evidentemente.

O Correio informa que a Sociedade Promotora “obrigou-se, antes de tudo, a promover por todos os meios convenientes a immigração estrangeira para a provincia de S. Paulo e a introduzir no prazo do anno financeiro de 1886-1887, seis mil immigrantes”, o que será feito “será feito ou por meio de contractos com companhias de navegação ou por outro modo mais conveniente”.

Continua a matéria, dando os dados: “A sociedade receberá da provincia para as despezas inherentes ao serviço de introducção e promoção da immigração subsidios pecuniarios distribuidos da seguinte fórma: 85$ por individuo maior de 12 annos; 42$500 por individuo de 7 a 12 annos; 21$250 por individuo de 3 a 7 annos; todos os subsidios acham-se sujeitos as condições de estado, parentesco, e procedencia dos immigrantes, determinados nas leis vigente (sic) de immigração provincial”.

Embarque de Café – Santos. Fotografia de Guilherme Gaensly, início do século XX. (Acervo APESP)

Embarque de Café – Santos. Fotografia de Guilherme Gaensly, início do século XX. (Acervo APESP)

A matéria deixa claro, logo no início, que só seria concedido o auxílio do contrato de 3 de julho “aos immigrantes que fossem transportados a provincia com plena liberdade de se collocarem onde melhor lhes approuver, ficando ainda a cargo da associação contractadora promover todos os meios de boa e leal collocação dos immigrantes”. Sem seguir para onde determinavam os cafeicultores, o subsídio seria imediatamente retirado. Como vimos anteriormente, a Sociedade e o governo provincial foram um pouco mais longe: os imigrantes eram costumeiramente impedidos de ter contato com qualquer outra pessoa que não agentes autorizados ou os próprios fazendeiros6.

Assim o jornal republicano, defendendo o trabalho livre, descreve os favores do Estado à iniciativa privada: “Attendendo, outrossim, aos avultados empates de capital necessarios para effectuar a vinda de elevado numero de immigrantes, obrigou-se o governo da provincia a antecipar a associação as quantias requisitadas pela directoria da mesma associação composta como verão adiante os leitores, de pessoas maiores de toda excepção. Exigio, porém, o governo da provincia, a garantia individual e solidaria dos associados por todas as quantias adiantadas, mediante requisição da respectiva directoria, até o maximo de 500:000$000”.

Destacados fazendeiros, empresários e outros homens de negócios constavam na lista de sócios, como descrito pelo Correio: “Os cavalheiros que assignaram o contracto com o governo são os srs.: drs. Martinho da Silva Prado Junior, Raphael Aguiar Paes de Barros, Nicolau de Souza Queiroz, condes de Itu e Tres Rios, visconde do Pinhal, barões de Tatuhy, Mello e Oliveira, e Piracicaba, drs. Augusto Cincinato de Almeida Lima, Francisco Antonio de Souza Queiroz Filho e Francisco Aguiar Paes de Barros, srs. coroneis Antonio Leme da Fonseca e Joaquim da Cunha Barreiro, srs. Jorge Tibiriçá, Antonio Paes de Barros, Benedicto Augusto Vieira Barbosa, Luiz de Souza Queiroz e Antonio de Souza Queiroz”.

O Correio Paulistano, sem esconder sua satisfação, conclui: “Em resumo: o contracto reune os requisitos de probabilidade de bom exito para que possamos antecipar parabens à provincia de S. Paulo e ao energico e esclarecido presidente sr. barão de Parnahyba, cuja administração será contada entre as de mais beneficos resultados”.

Santos conclui que, do ponto de vista do seu objetivo de trazer imigrantes, ela foi “maravilhosamente bem-sucedida”, pois conseguiu trazer da Europa mais de 266 mil imigrantes, em sua maioria italianos do norte. “Conseguiu também, do lado da produção de café, mais que decuplicar as sacas colhidas graças aos braços fornecidos. Por outro lado, se não fez baixar os salários, conseguiu pelo menos estancar a sua valorização.” (Id.7)

NOTAS

1 Disponível em http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao25/materia02/

2 BIANCO, Maria Eliana Basile. A Sociedade Promotora de Imigração (1886 – 1895) . Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, São Paulo, 1982, mimeo, p.85 apud Santos, 2007

3 O nome da pasta à época era Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, vide http://www.agricultura.gov.br/portal/page/portal/Internet-MAPA/pagina-inicial/ministerio/historia

4 A página do Senado, onde também exerceu um mandato, possui uma breve descrição de todos os cargos que ocupou: http://www.senado.gov.br/senadores/senadores_biografia.asp?codparl=1426&li=20&lcab=1886-1889&lf=20

5 Disponível em http://www.antonioprado.com.br/historico.php. Curiosamente, a fonte oficial da Prefeitura, aqui citada, omite a brutal repressão que ocorreu, a pedido do Império, contra os indígenas na região Sul, incluindo essa região específica. Sobre este tema ver, Nonnenmacher, 2000, http://bit.ly/1wqatmE

6 Neste mesmo trabalho, citamos matérias que relatam incidentes neste sentido.

7 A matéria do Correio Paulistano pode ser conferida na íntegra em http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao25/materia02/

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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