Santa Teresa: a primeira cidade ‘brasileira’ fundada por imigrantes italianos

Por Gustavo Barreto (*)
Centro histórico de Santa Teresa sedia eventos como o 'Cantata Italiana'. Foto: Prefeitura de Santa Teresa (2011)

Centro histórico de Santa Teresa sedia eventos como o ‘Cantata Italiana’. Foto: Prefeitura de Santa Teresa (2011)

“No dia 26 do mez findo completaram 47 annos que se installaram aqui na Villa os primeiros immigrantes que vieram povoar o nucleo de S. Thereza. Esses immigrantes foram acolhidos em um grande galpão que existia no local onde acha-se hoje a fabrica de cerveja. O dia 26 de Junho de 1875 pode ser considerado como o da fundação do municipio e da Villa de Santa Thereza.”

A nota – intitulada “Festa Municipal” – é do auto-proclamado “órgão independente” O Povo, de Santa Teresa, do dia 2 de julho de 1922. Trata-se da primeira cidade fundada por imigrantes italianos em todo o Brasil, localizada na região serrana do Espírito Santo. Até pouco tempo ocorria um evento chamado “Caminho do Imigrante”1, que contou com pelo menos dez edições, e ia de Santa Leopoldina – também uma região de imigração no século XIX – até a cidade.

Os primeiros imigrantes foram levados pela expedição de Pietro Tabachi em 1874 ou 18752. O objetivo, ao se localizarem para além de Santa Leopoldina, em uma região de montanhas, era não ter contato com o regime escravagista, já agonizando. Construíram, então, sua “piccolo paese” (pequena cidade, em italiano) na área.

Segundo os relatos oficiais, a primeira viagem de imigrantes italianos em massa teria acontecido no dia 3 de janeiro de 1874, partindo do porto de Gênova, no navio a vela “La Sofia”, na expedição Tabacchi. Chegaram ao Brasil no “La Sofia” 386 famílias, no dia 21 de fevereiro de 1874. Elas não teriam se estabelecido imediatamente em Santa Teresa, daí a possível confusão da data exata do início da imigração.

Foto antiga de Santa Teresa (ES). Sem data e autor. Fonte: http://www.santateresa-es.com.br/historia.htm

Foto antiga de Santa Teresa (ES). Sem data e autor. Fonte: http://www.santateresa-es.com.br/historia.htm

Oficialmente, a imigração teve início com a chegada de outro navio, o “Rivadávia”, que aportou em 31 de maio de 1875, com 150 famílias italianas, todas encaminhadas para Santa Leopoldina. Destas, 60 seguiram para o núcleo Timbuí – atual Santa Teresa. O caminho entre as duas cidades – hoje aberto – é distante em 28 quilômetros.

O 26 de junho é considerado o aniversário da cidade por ter ocorrido nesta data o sorteio dos lotes coloniais. O nome da vila, Santa Teresa, é atribuído – na hipótese mais aceita pela crença popular – ao fato de que os moradores se reuniam para rezar em torno de um quadro de Santa Teresa de Ávila, que teria sido trazida por uma das imigrantes. A cidade também recebeu imigrantes suíços, poloneses e alemães, entre outros europeus.

Quando Santa Teresa se emancipou, tornando-se um município, em 22 de fevereiro de 1891, quase todas as lideranças – entre o presidente e os “intendentes” – eram estrangeiros: um de Luxemburgo, um italiano, um austríaco, um suíço e um brasileiro. Há normas curiosas editadas pelos seus primeiros governantes, como a proibição de andar na rua sem propósito depois das dez da noite e a exigência, aos negociantes, de evitar “algazarras” em estabelecimentos comerciais. A violência eventual de agressores externos (como jagunços) e as doenças da época (como uma epidemia de varíola em 1904) não pouparam a localidade.3

Os primeiros imigrantes vieram todos do norte da Itália – de Trento, Veneto e Lombardia. Até 1897, 80% dos imigrantes – cerca de 3.500 – eram italianos. Em 2010, segundo o jornal A Tribuna de 4 de março de 2010 citando dados do consulado italiano no Espírito Santo, 90% da população era formada por descendentes de italianos.4

'Desfile da Carreta' no dia 27 de junho de 2009, durante a XVIII Festa do Imigrante Italiano de Santa Teresa, que ocorreu entre os dias 18 e 28 de junho. No cartaz: 'Primeira casa construída pelo imigrante italiano em Santa Teresa – 1879'. Foto: Clério José Borges

‘Desfile da Carreta’ no dia 27 de junho de 2009, durante a XVIII Festa do Imigrante Italiano de Santa Teresa, que ocorreu entre os dias 18 e 28 de junho. No cartaz: ‘Primeira casa construída pelo imigrante italiano em Santa Teresa – 1879’. Foto: Clério José Borges

Nasceu e viveu boa parte de sua vida em Santa Teresa um dos maiores naturalistas e ambientalistas brasileiros, o filho de imigrantes italianos Augusto Ruschi (nascido em 1915). Posteriormente se tornou um dos maiores cientistas do país na área, exercendo cargos como o de professor titular da UFRJ e pesquisador do Museu Nacional. Ruschi foi pioneiro nas pesquisas sobre os beija-flores e é o criador de um museu ainda em funcionamento, o Museu de Biologia Professor Mello Leitão, em Santa Teresa.

Cerca de 40% do território da cidade – que hoje é um dos principais destinos turísticos do Espírito Santo – é coberto por Mata Atlântica. Ruschi ganhou o título de “Patrono da Ecologia no Brasil”. Além disso, Santa Teresa é atualmente, segundo fontes oficiais, o maior produtor de uva e vinho do Espírito Santo, representando 80% da produção estadual5.

Quando o fascismo passa a ser mal visto, Santa Teresa – cuja população possuía adeptos da ideologia – não ficou livre da perseguição contra alemães e italianos. Muitas vezes, imigrantes em lugares distantes e isolados sentiram a perseguição racista, sem ao menos conhecer o contexto internacional ou mesmo nacional.

Surgem no final dos anos 1940 duas publicações na cidade: A Voz do Seminário e O Cultivador. Desde então, a cidade curiosamente mantém quase o mesmo número de habitantes: pouco menos de 22 mil pessoas.

No dia 7 de março de 1920 é publicado pela primeira vez O Povo, o primeiro jornal da cidade, com apoio substancial da prefeitura local6. “O ‘POVO’ publica-se aos domingos, custando sua assignatura até 31 de Dezembro seis mil reis, pagos adeantadamente. Não se restituem originaes, mesmo não sendo publicados. Publicará todos os actos do governo municipal”, são suas palavras palavras, na seção “Expediente”. O semanário foi lançado com uma edição de quatro páginas.

Primeira edição do jornal 'O Povo', a primeira publicação de Santa Teresa (ES), datada de 7 de março de 1920. Foto: reprodução

Primeira edição do jornal ‘O Povo’, a primeira publicação de Santa Teresa (ES), datada de 7 de março de 1920. Foto: reprodução

“Surge hoje á luz da publicidade O Povo, primeiro jornal que se publica nesta Villa, que, por motivo, deveria engalanar-se7. É um simples periodico, hebdomadario8, mas mesmo assim representa inquestionavelmente mais um passo no progresso, sempre crescente, do Municipio”, diz seu primeiro editorial, que não faz qualquer referência aos italianos ou aos imigrantes em geral.

Acrescenta: “Vem sem credenciaes e sem pomposo programma, porque a sua méta, previamente traçada, é trabalhar sem desfallecimentos pelo engrandecimento do Municipio de Sta. Thereza”.

O jornal se afirma apartidário: “Apesar de applaudir sem reservas o programma do partido Republicano Espirito-Santense, chefiado pelo factor maximo do progresso do nosso glorioso Estado, o Exmo. Sr. Senador Conde Jeronymo Monteiro, não se envolverá em politicalhasde campanario, sempre ingratas e perniciosas”. O jornal diz que será “implacavel, inflexivel, mas sempre justo nas apreciações que fizer em suas columnas, inteiramente francas na defesa dos interesses da collectividade”.

Afirma ainda que “ao commercio honrado e a laboriosa lavoura do Municipio, hypotheca toda sua energia, aconselhando-os e amparando-os nas suas reivindicações, toda vez que se tornarem victimas de explorações ou perseguições, partam de onde partiram”, concluindo: “Independente, sem ligação de especie alguma, só espera merecer o favor dos homens honestos e laboriosos do Municipio, aos quaes saúda no dia do seu apparecimento”.

Apesar de não fazer referência no editorial, logo na primeira página a publicação cita Frederico Muller – “intelligente advogado e nosso presado chefe” – e registra: “Já estão frequentando as aulas do Collegio Italo-Brasileiro, 85 alumnos sendo 63 internos”. Atas oficiais são registradas com uma identificação visível, “PARTE OFFICIAL”.

Apesar do editorial, parte da primeira página, a segunda página inteira e metade da terceira página são dedicadas a atos oficiais – ou seja, metade da publicação de quatro páginas. A última página é de anunciantes. Uma das notas na página três registra as férias de um dos sócios de uma empresa anunciante: “Seguiu sexta feira para o Rio de Janeiro, donde deve embarcar para a Europa em viagem de recreio, o Snr. Reynaldo Ferrari, socio da conceituada Casa Broilo desta praça”. Um outro anunciante possui o mesmo sobrenome que o diretor de redação.

Outra nota repercute os jornais vindos do Rio de Janeiro que tratam do “grave movimento revolucionario irrompido na Bahia”, afirmando que o “entrechoque de paixões insopitadas e a vesania do poder, calcando ideaes e sobrepondo pessoas, resultaram a lucta fratricida que tantos males acarretará por certo áquelle rico e glorioso Estado”.

O jornal conclui o comentário – provavelmente sobre a revolta dos chefes políticos do vale do São Francisco, na Bahia9 – da seguinte forma: “Fazemos votos por que se restabeleça a paz no seioda familia bahiana, com mostras de nossa sincerissima sympathia por ambas as facções que se degladiam pois, acima dos interesses que a subdividem actualmente está o nosso sentimento fraternal de Brasileiros que todos somos” (grifo meu).

Confira abaixo o vídeo de divulgação da Festa do Imigrante Italiano de 2013:

E a abaixo um vídeo contando como foi a quarta edição do Caminho do Imigrante, em 2007:

NOTAS

1 Disponível em http://www.caminhodoimigrante.es.gov.br. Acessado em 12.03.2014. Veja também um vídeo coma edição de 2007 em http://youtu.be/waolfF2AzOI

2 Dependendo da fonte, vide http://cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codmun=320460&search=espirito-santo|santa-teresa|infograficos:-historico

3 Referências adicionais podem ser encontradas em http://www.santateresa-es.com.br/historia.pdf. Acessado em 12.03.2014.

4 Dados históricos oficiais estão disponíveis em http://santateresa.es.gov.br/pagina/5/Historia.html. Acessado em 12.03.2014. Cabe destacar que este texto foi utilizado pela Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo como justificativa ao projeto de lei que torna Santa Teresa “Capital Estadual da Imigração Italiana”. Ver http://www.al.es.gov.br/antigo_portal_ales/images/documento_spl/9937.html

5 Além de um festival próprio, o vinho e a uva são marcas da região; vide a peça de divulgação da Festa do Imigrante Italiano em 2013: http://youtu.be/maX-v78hBcs

6 Todas as edições digitalizadas encontram-se em http://memoria.bn.br/docreader/WebIndex/WIBib/721174

7 Da palavra “gala”, enfeitar-se, adornar-se.

8 Semanal.

9 Detalhes em http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo.php?titulo=governo-assina-acordo-de-paz-com-coroneis-da-bahia-1920

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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