“Procurar colonos morigerados, intelligentes e bons trabalhadores não é cousa tão facil”: um agente em Hamburgo

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da capa do periódico “Correio Sergipense”, edição de 18 de março de 1854.

Trecho da capa do periódico “Correio Sergipense”, edição de 18 de março de 1854.

O periódico “Correio Sergipense” – a “folha official, politica e litteraria” desta província, publicado duas vezes na semana – registra em sua edição de 18 de março de 18541 correspondência assina pelo “Dr. F. Schmidt”, que escreve de Hamburgo. O documento é publicado com mais de dois anos de atraso, segundo registra o periódico: data de 31 de janeiro de 1852, endereçado ao senador e experiente diplomata Miguel Calmon du Pin e Almeida, o Visconde de Abrantes.

Schmidt parece ser responsável, neste importante porto internacional, por atrair imigrantes para o Brasil. Como é comum neste momento, o Império trata de promover o Brasil no exterior como uma empresa que vende seu produto a clientes. Visconde de Abrantes é um importante conselheiro de Estado, ex-ministro da Fazenda de D. Pedro I e D. Pedro II. Foi ainda presidente da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (1848-1865) – e, portanto, neste momento do artigo acima. A Sociedade é uma das maiores incentivadoras da atração de imigrantes – à época chamados de colonos – devido à grande demanda por mão de obra neste que é a maior indústria brasileira, a agricultura. Mais tarde, o visconde será o primeiro presidente do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (1860-1866).2

Sob o título de “A colonisação”, Schmidt diz temer que “graves erros sejão commettidos, se senão adoptar um systema geral adaptado às circumstancias dos paizes que devem respectivamente fornecer e receber os ditos colonos”. Como é comum, grandes fazendeiros adiantam o dinheiro necessário para transporte, sustento e vestuário dos imigrantes, explica o autor, em meio a uma crescente demanda por trabalhadores livres.

(…) É de recear que muitos estrangeiros no Rio de Janeiro, que nenhum conhecimento tem da Allemanha, tomem á si a empreza de importa-los”, escreve Schmidt, na carta, acrescentando: “Procurar colonos morigerados3, intelligentes e bons trabalhadores não é cousa tão facil; e se os agentes não gosão de boa reputação estabelecida de ha muitos annos no paiz, a confiança publica na empresa faltara inteiramente, attrahindo somente a escoria do povo”.

As consequências, diz, são consideráveis: o governo desistirá de atrair colonos e a concorrência dos agentes “causará muitas desgraças”. Além disso, o transporte e sustento deveriam ser confiados unicamente à Legação (Representação) Imperial de Hamburgo, pois neste local as leis de emigração seriam favoráveis aos colonos, com uma ótima alimentação (“viveres”) a bordo das embarcações.

De nenhum outro porto da França, Bélgica, Hollanda e Inglaterra póde-se dizer o mesmo, e talvez esteja ainda na lembrança de muitos do Rio de Janeiro que o navio francez Virginie teve 16 mortos á bordo por escassez de viveres, e que varios transportes de emigrantes da antuerpia chegarão n’um estado deploravel”, disse Schmidt, defendendo a exclusividade para Hamburgo, onde ele próprio atua. Ele argumenta que, em Hamburgo, a presença do Estado dá um caráter oficial aos contratos, inspirando ainda “muita confiança no ânimo dos emigrantes”.

Schmidt argumenta que, para realizar este difícil trabalho, é preciso ter perfeito conhecimento dos contratantes e “conhecer-se da moralidade e qualidade physica dos colonos, escolhendo-se as melhores famílias do numero provisoriamente engajado”. Em um dos exemplos, Schmidt diz que, para escolher 800 colonos entre 1.200 mobilizados, foi essencial a realização de exames “até de um médico, que esteve presente”. Outro trabalho indispensável, argumentou, foi a “separação das seitas catholica e protestante, e a incorporação de compatriotas na mesma sociedade4, para impedir animosidades”.

Schmidt explica didaticamente porque restrições de idade e número de filhos são prejudiciais a este trabalho de atração de imigrantes. As restrições são comuns em editais do governo que, conforme relatamos em outros momentos, impõe regras rígidas sobre o tema. Estas restrições, acrescenta Schmidt sem citá-las, são “contrárias a natureza , e á opinião da Allemanha”.

A conta é a seguinte: a maioria das pessoas casa entre 25 e 30 anos. Quem possui 40 anos, portanto, tem o maior número de crianças. Além disso, pessoas entre 50 e 54 anos também deveriam ser bem-vindos, pois – argumenta o autor – “trabalhão entre nós com o mesmo ardor e coragem, como os filhos de 25 e 30 annos”. Além de serem ótima mão de obra, ainda trazem seus filhos, o que significa um aumento substancial da produtividade.

Além disso, homens e mulheres devem ser vistos com igualdade, explica Schmidt, “ambos trabalhando nos campos desde a sua mais tenra idade até os fins da sua vida”. E completa: “Senhoras da Campanha não se encontrarão na Allemanha”.5 Schmidt termina sua carta com um pedido: quer introduzir a cultura do anil no país por considerar “de maximo interesse para o desenvolvimento dos thesouros naturaes do Brasil”, indicando para isso um amigo.6

É o próprio “Dr. F. Schmidt” que ressurge poucos anos depois em uma crônica imigrante.

Quem assina o relato – produzido por um integrante da família – é Joannes Clemens, de 43 anos de idade, casado com Anna Maria Stenner Clemens, o casal com um total de nove filhos entre 19 anos e 9 meses de idade à época. Joannes escreve do porto de Hamburgo no dia 5 de junho de 18587, ano de fundação da primeira colônia alemã em Minas Gerais.

Colonos alemães chegam em Juiz de Fora. Autoria desconhecida, disponível em www.espeschit.com.br/historia/juiz_de_fora

Colonos alemães chegam em Juiz de Fora. Autoria desconhecida, disponível em www.espeschit.com.br/historia/juiz_de_fora

“Saímos de nossa Aldeia, Blödesheim, lá no Hessen Darmstadt, onde morávamos, deixando tudo para trás, exceto nossas lembranças, que trazemos conosco. Estamos no Porto de Hamburgo, norte da Alemanha, aguardando ordem para embarcar no navio veleiro Osnabrück (que já está lá ao largo, ancorado nas águas frias do Rio Elba), neste belo dia 05 de junho de 1858”, descreve o texto.

Joannes conta que a família fora contratada pelo Império Brasileiro “por intermédio de uma agência do Dr. F.Schmidt, de Hamburgo, que mandou seus funcionários por toda a Alemanha para falar sobre as vantagens da imigração para o Brasil”. Segundo Joannes, ofereceram passagem subsidiada, mais terras para plantar, sementes, ferramentas, acomodações e uma ajuda financeira por um ano.

“Tudo constando em um contrato escrito no idioma alemão e português que será assinado pelo candidato, Dr. Schmidt, o armador hamburguês Jacques Donati, o representante brasileiro da Companhia União e Indústria e o representante diplomático alemão”, acrescenta. O destino: uma colônia alemã na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais.

Colônia D. Pedro II em 1872. Autoria desconhecida, disponível em www.espeschit.com.br/historia/juiz_de_fora

Colônia D. Pedro II em 1872. Autoria desconhecida, disponível em www.espeschit.com.br/historia/juiz_de_fora

Comentando sobre outras famílias conhecidas que estarão no mesmo navio, Joannes está confiante: “Estaremos bem unidos nessa travessia dos mares, até o porto do Rio de Janeiro, pois as famílias inscritas formam um contingente de 224 pessoas, mais o Capitão G. Lange e sua tripulação. Disseram para não temermos, pois já partiram dali quatro veleiros antes de nós, todos de imigrantes alemães para a mesma Colônia, que soube tinha o nome de D. Pedro II, uma homenagem ao imperador brasileiro”, descreve. Neste momento Minas possuía apenas esta colônia, mas futuramente recebendo outros grupos de imigrantes.8

A propaganda pró-Brasil funcionou, de acordo com o relato: “Antes de embarcar, pois ficaram para o fim, a família de Johannes Clemens, dando-se as mãos, rezaram e agradeceram pela oportunidade de uma nova vida num país tão distante, mas do qual ouviram maravilhas”.

A banda da Colônia Alemã tocou para D. Pedro II na inauguração da estrada União Indústria. Foto do acervo de Nilo Frank, retirado do Blog de Luiz Antonio Caixeiro Stephan (http://stephanimigracaoalema.blogspot.com.br)

A banda da Colônia Alemã tocou para D. Pedro II na inauguração da estrada União Indústria. Foto do acervo de Nilo Frank, retirado do Blog de Luiz Antonio Caixeiro Stephan (http://stephanimigracaoalema.blogspot.com.br)

Pintura de casa antiga de colonos alemães. Foto: Blog de Luiz Antonio Caixeiro Stephan (http://stephanimigracaoalema.blogspot.com.br)

Pintura de casa antiga de colonos alemães. Foto: Blog de Luiz Antonio Caixeiro Stephan (http://stephanimigracaoalema.blogspot.com.br)

NOTAS

1 SCHMIDT, F. A Colonisação. Correio Sergipense, 18 mar. 1854. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=222763&pagfis=3895&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#. Acesso em: 10 set. 2016.

2 Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Calmon_du_Pin_e_Almeida

3 Palavra antiga que denota uma pessoa de “bons costumes”, que leva uma vida “irrepreensível”.

4 Ou seja, agrupamento das pessoas de acordo com a origem nacional.

5 Copio este trecho aqui na esperança de que algum nobre leitor explique o sentido da expressão “Senhoras da Campanha” na década de 1850.

6 Sobre o tema, vide artigo de Fábio Pesavento (2006) sobre iniciativas anteriores malsucedidas: http://www.ufjf.br/heera/files/2009/11/artigo01.pdf

7 RECANTO DAS LETRAS. Diário de um imigrante. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3851512. Acesso em: 10 set. 2016.

8 Outros artigos sobre Minas Gerais disponíveis em http://midiacidada.org/?s=%22Minas+Gerais%22&submit=Go

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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