Por que a escravidão é ruim na França e boa no Brasil? Um periódico de 1835 argumenta

Por Gustavo Barreto (*)
Primeira página do periódico “O Sete d’Abril”, edição de primeiro de agosto de 1835. Imagem: reprodução/Biblioteca Nacional

Primeira página do periódico “O Sete d’Abril”, edição de primeiro de agosto de 1835. Imagem: reprodução/Biblioteca Nacional

O periódico “O Sete d’Abril” divulga, em sua edição de primeiro de agosto de 18351, um debate na Câmara dos Deputados sobre projeto de lei com o objetivo de “vedar o tráfico da escravatura em alto mar, de punir os que fôssem comprehendidos no crime de importar africanos no Brasil e de os vender como escravos”.

Este tipo de argumentação é importante para os estudos imigrantistas pois ajuda a entender por que a substituição da mão de obra escrava pela livre – e o consequente aumento tanto dos contratos livres de trabalho quanto dos contratos com trabalhadores estrangeiros – demorou tanto para ocorrer, mesmo em meio a tantos avanços legislativos em outras partes do mundo.

O “O Sete d’Abril”, de orientação política imperial, funcionou durante cerca de sete anos, entre 1833 e 1839, “tendo por fim defender a Constituição Política do Brasil e os Direitos do Imperador e Senhor D. Pedro II”. Sua periodicidade variou ao longo dos tempos, mas no período da reportagem acima eram publicado terças e sábados, e impresso à “Rua detraz do Hospício n. 160” (mais tarde rua do Hospício, n. 118).2

“Muitas opiniões philantropicas e eminentemente sentimentaes fôrão então desenvolvidas”, sendo que “apenas dois ou três Srs. Deputados” se posicionaram “contra as leis que proibião este negocio” [da escravidão].

A opinião mais franca e clara, diz o periódico carioca na primeira página, é do deputado B.P. de Vasconcellos, que afirmou que a escravidão dos africanos “não era tão odiosa como a representavão alguns outros Srs”, sendo a prática “accommodada aos nossos costumes, conveniente aos nossos interesses e incontestavelmente proveitosa aos mesmos africanos, que melhoravão de condição” – a palavra africanos sempre vinha grafada em itálico. O jornal é pequeno, a edição mencionada possuindo apenas quatro páginas.

O deputado diz fundamentar sua posição na “opinião dos filósofos antigos” e, segundo o relato de O Sete d’Abril, o orador dá os “exemplos de todas as Nações civilisadas e não civilisadas, concluindo que a abolição d’este tráfico não era objecto de lei”, mas que “se devia deixar ao tempo e ao progresso do paiz”.

E acrescenta o relato do jornal: “quando o tráfico não conviesse mais aos interesses publicos e particulares, serião estes os seus mais pronunciados inimigos”. Vasconcellos propõe que mesmo a frágil legislação em vigor seja revogada, como forma inclusive de “vingar a honra Nacional”.

Um exemplo da França é usado, utilizando-se para isso a justificativa de um parlamentar francês identificado como Mr. Mauguin – possivelmente o deputado François Mauguin (1785-1854), nascido na cidade de Dijon3. A escravidão, no relato do jornal, constituía de fato um “mau estado da sociedade”.

O deputado francês teria ponderado, no entanto, que “a sociedade como ella existia – aquelle estado de luta entra a força e o direito – era d’antes o estado de todo o mundo, e ele agora existia em cada colonia, á excepção do continente da América”. A escravidão, continua, “tinha existido em todos os tempos, em todos os climas, e sob todas as fórmas de governo” – até mesmo na França, argumenta, onde a escravidão ainda existia até poucos anos antes da revolução [de 1789].

Se fossem libertos 300 mil escravos, argumentava, colocariam “à mercê da caridade pública milhares de indivíduos que não tinhão meios de subsistência”. E, falando pelos próprios escravizados, o deputado francês argumenta que os negros acreditavam que o trabalho com a terra era tarefa que só convinha a escravos, o que os impediria – em tese – de aceitar o trabalho livre na terra.

O deputado francês diz que “na Guyana e Cayenna a mais horrível fome foi o resultado da emancipação dos escravos no tempo da revolução”, acrescentando: “Os pretos ião assistir aos clubs e festas republicanas, e não houve cultura [agrícola] nem producção durante dous annos”.

A argumentação pró-escravidão era, de fato, apresentada como parte de uma razão puramente econômica, mesmo que suas implicações fossem apresentadas como “culturais”. O argumento é concluído da seguinte forma: “Este era o caracter do negro. A sua mente não era defender a escravidão; mencionava tamsómente os factos, e d’elles tirava as suas conclusões.

A escravidão, afirma o periódico, havia sido parcialmente abandonada na Inglaterra por conta de “paixões religiosas” e pela influência de “um partido que desejava abandonar as possessões da América a favor das da Índia”.

A partir das ideias de emancipação, alerta o parlamentar Vasconcellos, “a sociedade dividia-se, a guerra preparava-se, organizavão-se distúrbios”, e quando ocorresse o “movimento geral”, seriam necessários “regimentos inteiros” para “restabelecer o socêgo”.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=709476&pagfis=1117&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Ver https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/38317

3 Notas biográficas sobre Mauguin disponíveis em https://fr.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois_Mauguin

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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