Pessoas de outros países e pessoas de outro mundo

Por Gustavo Barreto (*)
Crédito da foto: Fabio Braga/Folhapress

Crédito da foto: Fabio Braga/Folhapress

O registro é de um fotógrafo do jornal Folha de S. Paulo neste sábado, 6 de dezembro de 2014. A manifestante da foto não poderia ser mais clara: “Somos contra o programa Bolsa Família para mais de 50 mil estrangeiros no Brasil”.

Ela faz, provavelmente, referência ao anúncio da prefeitura de São Paulo, que decidiu estender o programa assistencial para os imigrantes, uma política consistente com outras medidas para os estrangeiros – como a criação de espaços de participação política e a abertura de centros de acolhimento, que contam aliás com dinheiro das três esferas estaduais.

Não deixa de ser curioso. A primeira versão do “Bolsa Família”, mal sabe ela, foi justamente dada a estrangeiros. Foi no século XIX, ainda na administração de D. João VI, que a Corte decidiu trazer estrangeiros para trabalhar no país. Os chineses, primeiro, deveriam vir desacompanhados de suas famílias – e apenas homens, que era para não “piorar” nossa raça. Isso em meados da década de 1810. Pouco depois, em 1818, o primeiro decreto do tipo decidiu pela vinda de dezenas de famílias suíças para Cantagalo, vindas de Freiburg. Hoje, por isso, Cantagalo chama-se Nova Friburgo.

O século XIX e início do século XX é repleto de editais que estimulavam o ingresso de brancos europeus, sob o protesto de que precisávamos de braços para a lavoura. Depois da imigração europeia prevalecer, Vargas estabeleceu “cotas” para a entrada de estrangeiros – uma porcentagem em cima dos que aqui já estavam. Privilegiando, evidentemente, os de sempre.

Só pela Hospedaria de Imigrantes em São Paulo, onde provavelmente mora a moça do cartaz, passaram 2,5 milhões de pessoas, de mais de 70 nacionalidades. Isso sem contar o restante do país, com os números crescendo profundamente.

E quais subsídios sociais (como o Bolsa Família de hoje) recebiam esses imigrantes? Tudo, desde que fossem europeus brancos – e melhor ainda se fossem do norte e viessem em famílias. Passagem, seguro das bagagens, alimentação, propriedades agrícolas, financiamento para máquinas e instrumentos, facilidades de financiamento da casa própria e até atendimento médico próprio. O Brasil, imaginavam, embranqueceria. E assim foi feito (ou tentado).

Muitos dos estrangeiros foram abandonados por distintas administrações, é verdade – muito menos que os africanos, não é preciso esforço para perceber. Para piorar, os europeus desconheciam muitas das dificuldades que aqui encontrariam. Mas grande parte do dinheiro antes investido em práticas escravagistas, tanto por parte das províncias quanto da União, iam agora para os brancos europeus. Para garantir a preferência, Marechal Deodoro chegou a baixar portaria no início da década de 1890 proibindo e punindo severamente o ingresso de africanos e asiáticos.

Agora, veja só. Foram dois séculos comprovando que os estrangeiros – todos, sem distinção “racial” – foram os nossos “braços”, ajudando a desenvolver e construir o nosso país. Décadas e décadas de “Bolsa Família” para muitas das famílias “brasileiras”, as gerações anteriores dos descendentes dos europeus que aqui chegaram desde 1818. E vem essa moça dizer que é contra os subsídios para quem vem de “fora”. É essa moça, creio eu, que está totalmente “por fora”. Vive em outro mundo, só pode.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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