“Pelo mais amplo liberalismo” na política imigratória, com restrições “apenas” para “afastamento dos incapazes, física e moralmente”

Por Gustavo Barreto (*)

Em entrevista ao jornal O Globo em março de 1945, ainda sob as ruínas da Segunda Guerra Mundial, o presidente da Federação das Associações Comerciais pede “preferência” aos portugueses por um “alto dever de justiça e de interesse na conservação de nossa nacionalidade”.

Trecho da página 6 da edição de 8 de março de 1945 do jornal O Globo

Trecho da página 6 da edição de 8 de março de 1945 do jornal O Globo

Esta é a manchete do jornal O Globo em sua edição de 8 de março de 1945, à página 6, com a seguinte manchete complementar: “Não se justifica o ultra-nacionalismo num mundo que surge, depois da vitoria das Nações Unidas”.

O diário informa estar realizando uma “enquete” sobre o “problema imigratório”, ouvindo desta vez a opinião do então presidente da Federação das Associações Comerciais. “O nosso entrevistado de hoje é um dos que têm ultimamente alertado o país para a necessidade de mudarmos de orientação neste setor da política econômica”.

Em conferências e discursos, diz O Globo, João Daudt d’Oliveira tem reafirmado que deve haver “a maior liberalidade possível na política imigratória”, argumentando que o “problema” exige “soluções práticas e não teóricas como se tem feito até agora”. Em relação à atual legislação, diz o entrevistado, as consequências de uma “morosidade rotineira” seriam “irreparáveis”.

Ele explica sua posição: “Acontece que, na competição que se delineia entre os atuais países de imigração, que são os que se desenvolveram com a transplantação dos povos latinos, estamos em inferioridade de condições, porque criamos, com as medidas que precederam o atual período de guerra, em reação à agressividade expansionista dos totalitários, obstáculos sérios à aceitação de imigrantes, que ainda prevalecem”. É com “verdadeira ansiedade”, acrescenta o entrevistado, que as “classes produtoras esperam a reforma que, há muito, está em estudo no Conselho Nacional de Imigração e Colonização”.

O então presidente da Federação das Associações Comerciais volta a refirmar que é “francamente pelo mais amplo liberalismo” na política imigratória, com restrições “apenas de caráter individual”, para “afastamento dos incapazes, física e moralmente”. Oliveira não vê justificativa para o ultranacionalismo em um “mundo que surge” depois da “vitória das Nações Unidas”, em bases de “estreita interdependência” e de “revigorante liberalismo na interpenetração de ideias e de indivíduos além das fronteiras políticas”.

Para ele, os indivíduos de cada país “querem e devem poder buscar o trabalho e a felicidade onde lhes parecer mais seguro e mais propício”. E sugere: “Convem, pois, que cesse quanto antes, pela adoção de uma política franca, a desconfiança quanto às vantagens que as famílias européias, desejosas de emigrarem, com suas esperanças e energias, possam encontrar no Brasil”.

Neste momento, apesar de a guerra ainda não ter oficialmente acabado, uma vitória dos Aliados já era praticamente dada como certa. Por isso, alerta o entrevistado, “outros povos” já estariam “organizando ativamente o encaminhamento e a recepção de imigrantes” que, fugindo da fome e de uma “guerra atroz”, não poderiam “esperar pelas providências burocráticas de países indolentes”. Os estrangeiros acabariam indo, diz Oliveira, para os países que os acolherem primeiro e que lhes prometerem maior “segurança e prosperidade”.

O entrevistado alerta, no entanto, que o Brasil ainda não estava preparado para a chegada de grandes levas de imigrantes, “pois o deslocamento não pode ser tão rápido que nos traga dificuldades”. O fluxo, diz, tem que ser “lento a princípio e gradativo em seu crescimento”, com a localização sendo “orientada, em linhas gerais, pelas nossas necessidades de mão de obra e pelas preferências e aptidões de cada um deles”.

À “falta de braços para a lavoura” se soma a “industrialização em marcha”, esta não podendo ser feita “sem operários e mestres especializados e não especializados”, que o entrevistado julga ser um “fato geral” que está ocorrendo em todos os países onde a indústria está crescendo. Oliveira exemplifica, deixando transparecer o racismo escondido sob o ideário liberal: “O próprio Canadá, de população relativamente pequena, mas zelosa em conservar a composição étnica e o equilíbrio entre os grupos franceses e anglo-saxões, está pedindo à Inglaterra mais e mais operários especializados para as usinas que se desenvolveram com seu notável esforço de guerra”.

As políticas imigratórias, diz Oliveira, precisam ser amparadas com créditos extras, tanto dos governos estaduais interessados quanto do governo federal. “As despesas não podem ser pequenas e acredito que a Nação as suportará de boa vontade”, afirma o entrevistado, acrescentando que não basta receber os imigrantes: “Será necessário levar avante a vigilância, para que o imigrante se nacionalize rapidamente e, para isso, tem de ser intensificado o contato com os centros de cultura, tem de haver a assistencia educativa nas colonias ou nucleos de trabalho”.

Como vemos frequentemente em outras vozes da elite brasileira em todos os momentos históricos, sem distinção, o presidente da Federação das Associações Comerciais cita os EUA como modelo: “Vemos como nos Estados Unidos o imigrante latino se nacionaliza rapidamente, e se integra num meio cultural bem diverso do seu, tornando-se, em pouco tempo, um americano, na maneira de pensar e de agir”. Oliveira explica como se dá esse processo: “É a predominancia do ambiente cultural que nacionaliza o imigrante. Criemos, pois, aqui, essas forças de nacionalização”.

A questão vem do próprio jornal: qual seria a “conveniencia de preferir certos povos”, pela “facilidade de nosso meio fisico e social”? Pelos portugueses, sentencia o entrevistado, “tenho pessoalmente uma preferencia real”, por serem “evidentes suas afinidades com o nosso tipo brasileiro nas tradições e nos costumes”.

Oliveira acrescenta, em relação ao “aspecto sentimental”, que considera um “alto dever de justiça e de interesse na conservação de nossa nacionalidade prestar-lhes essa homenagem” – lembrança que curiosamente não foi estendida aos povos africanos, brutalmente retirados de seu continente durante séculos de tráfico transatlântico de escravos.

O empresário conclui, ainda sobre a “preferência” pelos portugueses: “Eles devem continuar a ser nossos colaboradores, e não devemos deixar que se afrouxem os laços que nos unem, pois, nessa união, espiritual e real, ambos os povos têm muito a ganhar”.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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