Paulo Freire: Diálogo, agir educativo e transitividade crítica

Por Gustavo Barreto (*)

Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. 14ed. versão atualiz.

Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. 14ed. versão atualiz.

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Apesar de contextualizado, tal como o próprio autor atestava, “Educação como prática da liberdade” (RJ: Paz e Terra, 2011 [1965]) é uma obra de referência para aqueles que, como nós, buscam compreender as possibilidades radicais do processo pedagógico voltado para as classes populares. Todo a obra de Freire trata disso: o homem não mais no mundo, mas com o mundo.

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Em um contexto de crescente opressão do governo ditatorial – o livro foi escrito em meio à turbulência político pós-golpe militar –, Freire centrou sua produção na humanização do processo educacional e na emancipação dos trabalhadores. “Estar com o mundo resulta de sua [do homem] abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é.” (p.55)

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A captação que as pessoas fazem dos dados objetivos de suas realidades é naturalmente crítica e são somente elas que podem “transcender”, ou seja, na consciência que têm da finitude da vida. É dessa forma que o homem – aqui entendido evidentemente por ‘pessoas’ – existe. Ele herda, incorpora, modifica o tempo. “Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. (…) Temporaliza-se” (p.57).

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Afirma Freire (id.):

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Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles.

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O papel da comunicação dialógica está presente em todo o trabalho de Paulo Freire. Desde, por exemplo, a primeira etapa do processo de alfabetização de adultos (“Levantamento do universo vocabular dos grupos com quem se trabalhará”, p.147) até a última etapa de trabalho com os vocábulos geradores (p.150), a comunicação é elemento central na obra de Freire.

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Uma das características do homem destemporalizado, acrítico, é o processo de desenraizamento pelo qual passa. Deste processo resulta a acomodação, que é da ordem da natureza – em oposição, na concepção da antropologia cultural, à cultura, própria do homem. O homem que não se acomoda diante das prescrições que são impostas de cima para baixo passa pouco a pouco a dominar a realidade e humaniza-se. “Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos”. (p.60)

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Ao se apropriar dos temas fundamentais da realidade, o homem reconhece suas tarefas concretas. “Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir”. (id.) Rebaixa-se a “puro objeto” e “coisifica-se” (Fromm, El Miedo a la libertad, 1958 apud Freire, p.61).

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Para Freire, os mitos que identificou, por exemplo, na publicidade organizada voltam-se contra o homem, o destroem, o aniquilam. “É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade.” (p.62) Trata-se do já referido “medo da liberdade”, que Freire explora com mais detalhes em “Pedagogia do Oprimido” (2004 [1970]).

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Nesta obra, Freire destaca que um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição, ou seja, a imposição da opção de uma consciência a outra. A prescrição não é ideologicamente determinada. A diferença é que, mais à direita, trata-se da prescrição com base no passado, no estado permanente e imutável das coisas. Já à esquerda, é a prescrição da antecipação da História. E segue daí o medo da liberdade:

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Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres.

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A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. (…) Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive se alienam. Não é uma ideia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos. (Freire, 2004, p.34 [1])

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Já no “Educação como prática da liberdade”, Freire destaca que o homem com “medo da liberdade” a teme “mesmo que fale dela”. Seu gosto é o das “fórmulas gerais, das prescrições, que ele segue como se fossem opções suas. É, no entanto, conduzido, massificado.

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Este homem também deve ser um “espírito flexível” caso o contexto seja marcado por uma transição entre épocas. Freire argumentava ser este o caso em 1965. O que Freire qualifica como a integração do homem viria com o “uso de funções cada vez mais intelectuais e cada vez menos instintivas e emocionais.” (Zevedei Barbu, 1956 apud Freire, p.62-63)

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O momento de trânsito, continua Freire, propicio o que chamou de “pororoca histórico-cultural”, com contradições culturais, sociais e políticas cada vez mais fortes, formas distintas de “valoras o ontem”, porém “carregadas de futuro”. (p.64) Tal como Gramsci, Freire pensava nesta fase de trânsito como o “elo entre uma época que se esvaziava e uma nova que ia se consubstanciando”, possuindo algo de alongamento e algo de adentramento: “De alongamento da velha sociedade que se esvaziava e que despejava nele [no homem] querendo preservar-se. De adentramento na nova sociedade que anunciava e que, através dele, se engendrava na velha”. (p.66)

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O italiano Norberto Bobbio, ao comentar sobre os direitos humanos, direitos históricos, demonstra que estes nasceram em certas circunstâncias, de modo gradual, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, “não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” [2]. Da mesma forma, Freire aponta que o “dinamismo do trânsito se fazia com idas e vindas, avanços e recuos que confundiam ainda mais o homem. E a cada recuo, se lhe falta a capacidade de perceber o mistério de seu tempo, pode corresponder uma trágica desesperança. Um medo generalizado.” (p.67)

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A radicalização da qual falamos implica justamente o contrário deste homem desesperançoso, acrítico. Trata-se do “enraizamento que o homem faz na opção que fez” e é “positiva, porque preponderantemente crítica”. A radicalização é da ordem do convencimento, não da destruição do oponente. E o radical tem o dever de reagir à violência, qualquer que seja: “Não importa que [a violência] se faça através de meios drásticos ou não. É, a um tempo, desamor e óbice ao amor. Óbice ao amor na medida em que dominador e dominado, desumanizando-se o primeiro, por excesso, o segundo, por falta de poder, se fazem coisas” (p.69-70).

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Freire aponta ainda que, quando o oprimido levanta-se para reagir contra o opressor, é então identificado como violento, bárbaro, desumano. E explica: “É que, entre os incontáveis direitos que se admite a si, a consciência dominadora tem mais estes: o de definir a violência”. Pela comunicação de massa, comunicação esta não-democrática e hierárquica, é que a violência é definida como quase que exclusiva dos oprimidos, na tentativa de criminalizá-los sempre que possível e desejável.

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Freire ressalta que a radicalização nada tem a ver com a sectarização tão comum em épocas de transição. A sectarização tem uma matriz preponderantemente emocional e acrítica. “É arrogante, antidialogal, e por isso anticomunicativa. É reacionária, seja assumida por direitista, que para nós é um sectário de “nascença”, ou esquerdista. O sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros. Pretende a todos impor a sua, que não é opção, mas fanatismo”. (p.70)

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Freire critica ainda o “ativismo”, uma “ação sem vigilância da reflexão”, ação esta adotada pelo sectário. Daí, aponta, seu gosto pela sloganização, que dificilmente ultrapassa a esfera dos mitos. O radical de Freire, ao contrário, rejeita o ativismo e submete sua ação à reflexão constantemente. (p.70-71)

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Uma sociedade alienada, desumanizada, frequentemente oscila entre o otimismo ingênuo e a desesperança. “Incapazes de projetos autônomos de vida, buscam nos transplantes inadequados a solução para os problemas do seu contexto. São assim utopicamente idealistas, para depois se fazerem pessimistas e desesperançosas.” (p.73) O que decorre dessa dinâmica é que as gerações mais velhas acabam por se entregar ao desânimo e a atitudes de inferioridade. A criticidade orientada por Freire torna o homem criticamente otimista. “Não há por que se desesperar se se tem a consciência exata, crítica, dos problemas, das dificuldades e até dos perigos que se tem à frente.” (p.74)

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A ideia de “subversivos”, de pessoas perigosas para a “ordem”, também é questionada por Freire. Relembramos aqui a data e condições em que foi escrito o livro: 1965, durante idas e vindas para “esclarecimentos” junto às autoridades e, depois, no exílio político. “O conceito de ordem não é só do mundo estético, físico ou ético, mas também histórico-sociológico. De um ponto de vista puramente ético, por exemplo, não houve ordem na sociedade ‘fechada’ de onde partimos, uma vez que se fundava na exploração de muitos por poucos.” (p.76)

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As forças “intensamente emocionais” que surgiram em épocas de trânsito eram resultado dos próprios embates das contradições profundas de uma sociedade injusta, exploradora. Essa dinâmica promoveu uma clima fundado em “irracionalismos” e gerou, alimentou posições sectárias de todas as partes. No caso brasileiro, o homem coisificou-se. Foi retirada dele uma das principais características geradoras de sua autonomia: a responsabilidade. A liberdade com conteúdo. O homem com responsabilidade toma decisões quanto a problemas (grandes ou pequenos) que afetam interesses muitas vezes alheios aos seus próprios, com os quais, no entanto, se sente comprometido. No assistencialismo, ao contrário, não há responsabilidade, não há decisão, comprometendo a destinação democrática que se deseja para uma sociedade.

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A educação pode – e deve – propiciar a reflexão sobre o poder de refletir, autonomamente, e nas potencialidades que decorreriam dessa capacidade de opção. Essa opção deve vir dentro de uma lógica de transitividade crítica, quer dizer, uma transitividade que capacite o homem para um estado de mudança, de transição, mas que não seja – conforme detalhado anteriormente – nem ingênua, nem desesperançosa, nem sectária.

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Sobre a transitividade crítica, Freire argumenta:

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A transitividade crítica (…) a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais. (…) Pela prática do diálogo, e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo, e pela não recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições. (p.85)

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Para Freire, curiosamente o processo de urbanização brasileiro é um fator aparentemente positivo. “A passagem da consciência preponderantemente intransitiva para a predominantemente transitivo-ingênua vinha paralela à transformação dos padrões econômicos da sociedade brasileira. Era passagem que se fazia automática”, explica, complementando que, conforme se intensificava o processo de urbanização, o “homem vinha sendo lançado em formas de vida mais complexas”, entrando assim num “circuito maior de relações, passando a receber maior número de sugestões e desafios de sua circunstância”. Mais importante, no entanto, era o papel do trabalho educativo crítico que advertia para o perigo da massificação, da coisificação do homem, dentro do contexto da industrialização.

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Se a urbanização parece oferecer para o homem comum um contexto mais complexo, também produz desenraizamento, “mesmo que armada igualmente esteja ela [a civilização industrial] de meios com os quais vem crescentemente ampliando as condições de existência do homem.” (p.118)

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O risco está na crescente exigência que se faz por um comportamento mecanizado, pela repetição de um mesmo ato, realizando uma pequena parte da totalidade da qual se desvincula quase que por completo. Não exige, aponta Freire, atitude crítica total diante de sua produção, se desumanizando. “Corta-lhe os horizontes com a estreiteza da especialização exagerada”. A solução, adverte, “não pode estar na defesa de formas antiquadas e inadequadas ao mundo de hoje, mas na aceitação da realidade e na solução objetiva de seus problemas”. Nem tampouco está “na nutrição de um pessimismo ingênuo e no horror à máquina, mas na humanização do homem.” (p.118) Freire argumenta ser importante superar o falso dilema humanismo-tecnologia. (p.128)

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A participação política e social é um dos focos da ação educativa de Paulo Freire. E é justamente pela sua organização, pelo seu agir e existir, que o homem foi classificado como subversivo e ainda o é. “(…) se há saber que só se incorpora ao homem experimentalmente, existencialmente, este é o saber democrático.” (p.122) A participação na escola do filho, no sindicato, nos conselhos e agremiações, empresas, igrejas, associações locais e comunitárias. A democracia radicalizada.

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O risco, desta vez, são as tendências verbalistas, “como se fosse possível dar aulas de democracia e, ao mesmo tempo, considerarmos como ‘absurda e imoral’ a participação do povo no poder.” (id.) Tais tendências podem ser expressas no distanciamento entre o processo pedagógico e as condições mesmas de vida, do cotidiano. “Educação que se perca no estéril bacharelismo, oco e vazio. Bacharelismo estimulante da palavra ‘fácil’. Do discurso verboso.” (p.123)

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Freire critica, no entanto, a relação costumeira que se faz entre o verbalismo e a teoria. “De teoria, na verdade, precisamos nós. De teoria que implica uma inserção na realidade, num contato analítico com o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plenamente, praticamente.” A teoria é contemplar, e não oposição à realidade.

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E a teoria de Freire, conforme destacamos logo no início desta seção, está toda embasada na opção preferencial pelas bases populares. “Experimentamos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos, de que só nas bases populares, e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas.” (p.134) O agir educativo não implica uma doação – não nem a vulgarização do conhecimento e da cultura, nem tampouco a doação de conhecimento formulado de fora.

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Neste sentido, no lugar das aulas estão os Círculos de Cultura. No lugar do professor, o Coordenador de Debates. No lugar da aula discursiva, o diálogo. No lugar do aluno, o participante de grupo. No lugar de provas, testes de medição de aprendizado. E, finalmente, no lugar de “pontos” e programas alienados, uma “programação compacta”, reduzida e codificada em unidades de aprendizado. A “redução” é o processo de identificação de traços fundamentais de determinado conceito em dez situações existenciais “codificadas”, significadas a partir da realidade objetiva daquele grupo – daí a resistência de Freire ao uso de “cartilhas”, que em geral traziam prescrições externas ao grupo, alienadas e, portanto, alienantes.

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No caso da alfabetização de adultos, a partir de toda a teoria aqui exposta, Freire adotava uma metodologia que envolvia três aspectos principais:

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  1. Adoção de um método ativo, dialogal, crítico e criticizador;

  2. Modificação do conteúdo programático da educação;

  3. Uso de técnicas como a da redução e da codificação.

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[1] A referência é a única a “Pedagogia do Oprimido”. Todas as demais são de “Educação como prática da liberdade”.

[2] Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

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Gustavo Barreto (@GustavoBarreto_) é doutorando na Escola de Comunicação da UFRJ.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Um pitaco sobre “Paulo Freire: Diálogo, agir educativo e transitividade crítica

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