‘Os portugueses continuam chegando’, diz o ‘Opinião’

Por Gustavo Barreto (*)
A matéria ocupa metade das páginas 3 e 4.

A matéria ocupa metade das páginas 3 e 4.

O semanário Opinião, destacado órgão opositor ao regime militar, destaca em sua edição de 13 de fevereiro de 19761, com chamada na capa, a questão dos portugueses no mercado de trabalho brasileiro.2 “Imigração: Os portugueses continuam chegando”, diz a chamada, logo à página 3.

O jornal aponta que o Brasil continuava recebendo portugueses que tinham “situação privilegiada no regime salazarista” – o editor não usa as palavras “ditadura” ou “autoritário” – ou ainda imigrantes destes países que estavam “acostumados ao ”status” de colonizadores em Angola e Moçambique. E dispara: “Dispostos a conservar os privilégios, só buscam os melhores empregos e perturbam profundamente o mercado de trabalho pelo excesso de oferta a preços aviltados”.

O tabloide informa que existem “cerca” de 16.430 imigrantes portugueses no Rio de Janeiro “desde 1973”, afirmando ainda que, do total de portugueses recém-chegados, 70% escolhem o Rio enquanto os demais se dividem entre Paraná e São Paulo, “que absorveu 30% dessa nova mão-de-obra inesperada”. Eles procuram a cidade do Rio, diz o Opinião, como a “tábua de salvação para todos os seus males”.

O semanário aponta que, com a libertação de Angola e Moçambique, a média de portugueses que se inscreveram no consulado português no Rio passou da média de pouco mais de 2 mil nos anos anteriores a mais de 11 mil em 1975, “fugindo da auto-suficiência dos negros africanos que, até alguns anos atrás, limitaram-se a aceitar de cabeça baixa, o domínio português nas colônias”. Segundo o jornal, do total de imigrantes vindos ao país em 1975, cerca de 40% é oriunda de Angola e 7% de Moçambique.

Segundo um funcionário do consulado português ouvido pelo Opinião, o acréscimo de imigrantes “foi muito ínfimo diante das antigas levas de agricultores portugueses pobres, que saíam do país procurando alternativas ao regime salazarista”. O jornal acrescenta, ainda citando a fonte, que “até o 25 de abril3, Portugal exportava 100 mil pessoas por ano”. Essa imigrantes buscavam países da Europa, principalmente a França – diz o jornal –, com Paris se tornando a segunda cidade portuguesa em população: 800 mil habitantes.

Ao contrário dos agricultores, diz o texto, esses “novos imigrantes” estavam acostumados ao status social do qual gozavam em Portugal, Angola e Moçambique. Após o fim do salazarismo, a chegada dos portugueses mais pobres decaiu, informa o periódico.

A imigração portuguesa até a decada de 60, informa o texto, foi “sempre voltada para a América Latina”, principalmente para o Brasil e a Venezuela. Com o desenvolvimento do Mercado Comum Europeu, a imigração se voltou para a Europa, pelas melhoras condições e por absorver – segundo o Opinião – o “tipo de mão-de-obra sem qualificação que era o imigrante português”. O semanário informa que, na década de 50 até o final de 1960 os números da imigração portuguesa “transoceânica” eram expressivos: em 1952 teriam chegado ao Brasil mais de 41 mil portugueses, e em 1959 outros 16 mil, mesmo número que em 1975 (ano anterior ao da matéria).

Em 1975 vieram muitos técnicos e profissionais de nível superior – “e talvez por isso ela [a imigração portuguesa neste ano] tenha sido tratada exaustivamente pela imprensa”, comenta o jornal. “Esse pessoal com um status muito alto, às vezes nem condizente com a sua real qualificação, reagiu muito mal às dificuldades encontradas”, relata o Opinião, referindo-se não necessariamente ao status econômico, mas sobretudo ao status social proporcionado pela ditadura salazarista.

A velha classe, solidária”

O semanário reclama, no entanto, de uma “saturação do mercado de trabalho no Rio de Janeiro”, sendo preciso inclusive “pedir auxílio aos Estados do Paraná e São Paulo, no sentido de absorver os portugueses”. O aumento da demanda dos portugueses por empregos – por vezes feita diretamente ao consulado – esbarra na faixa de salário “não muito convidativa”, relata o funcionário do consulado ouvido pela matéria.

Um dos muitos exemplos é Manoel, “um pedreiro que veio para o Rio de Janeiro misturado entre engenheiros, arquitetos e mulheres portuguesas” para buscar melhores padrões de vida. O semanário reproduz sua fala após uma semana em uma empresa, a partir do relato do representante consular: “Na firma em que eu trabalho, ganho Cr$ 6,00 por hora. Seis vezes 8 dá Cr$ 48,00 por dia. 48 x 30 dá Cr$ 1 mil 440. Bom, como eu não sou trouxa, tive o cuidado de me informar sobre o custo de vida e da habitação, e converti o meu salário em escudos4. Não vou ficar, quero voltar para Lisboa, lá eu ganho muito mais”.

O jornal relata outros casos dos portugueses insatisfeitos, um deles recusando um emprego porque “não trabalharia por menos de Cr$ 4 mil” – quando o salário dos brasileiros no mesmo lugar, informa a publicação, era de Cr$ 1 mil e 600,00. A matéria de Opinião lista alguns dos “padrinhos” dos emigrados portugueses, identificados por suas empresas e nomes, sob o subtítulo de “A velha classe, solidária”.

Capa da edição do semanário Opinião de 13 de fevereiro de 1976.

Capa da edição do semanário Opinião de 13 de fevereiro de 1976.

Em algumas áreas onde a adaptação é mais difícil e os imigrantes precisam de treinamento – como na área financeira, cujas especificidades são nacionais –, há mais dificuldade de se obter emprego. Mas em outras, a mão de obra qualificada é quase que automaticamente “transferida”. Um dos casos curiosos é o da aviação civil. Segundo o funcionário consular, não havia uma presença maciça de pilotos portugueses no país, por ser esta uma atividade de poucos profissionais. No entanto, “quase todos os pilotos de helicóptero e de táxi-aéreo treinados nas guerras de Angola e Moçambique procuraram o mercado brasileiro”.

A receptividade de pilotos, comissários, pessoal de serviços do setor, de apoio em terra e comunicações foram bem recepcionados. No entanto, a fonte do Opinião afirma que ouviu “muitos comentários” de que “a entrada desse pessoal no mercado provocou uma baixa na remuneração dos brasileiros e que foi, justamente, esse excesso de mão-de-obra que levou a um abaixamento dos padrões de remuneração e conseqüente aumento dos horários de vôos, antes programados mais cautelosamente”.

Os “afilhados de Bloch”

Um dos casos citados atingiu a própria imprensa. O dono da Manchete, Adolpho Bloch, teria oferecido um almoço “aos hóspedes Vips de Portugal” e teria ficado “compadecido da situação dos portugueses”, contratando um diagramador e um redator para trabalhar em uma de suas revistas. Os jornalistas brasileiros da Manchete, no entanto, descobriram “estarrecidos” que ambos eram aviadores e estavam recebendo “salários altíssimos – talvez o triplo dos salários dos antigos funcionários”.

Outro que foi contratado por Bloch foi o fotógrafo e visconde Antônio D’Athoguia, que passou a receber Cr$ 7 mil pelos serviços, quando a faixa de salários para fotógrafos brasileiros se situa entre Cr$ 2 mil e Cr$ 4 mil, diz o Opinião. No total, nove portugueses teriam sido contratados por Bloch – com o objetivo de manterem seus status, diz o semanário –, enquanto um outro português, Luis Manoel Pereira Fraga, estaria à frente da editoria de Internacional do Jornal do Brasil.

O Opinião registra um anúncio publicado no jornal Voz de Portugal, que termina com o seguinte apelo: “Se você dispuser de empregos em sua organização ou empresas de pessoas amigas onde seja possível efetuar a colocação dos patrícios acima – recentemente emigrados para o Brasil – não hesite em comunicar-se com a Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras. Sua colaboração, ajudando-nos a encontrar trabalho para os portugueses, será da maior importância para o programa que estamos desenvolvendo no sentido de ajudá-los a iniciar a vida entre nós. Vamos ter sempre em mente que Deus nada recusa ao trabalho5.

O jornal argumenta que o anúncio mostra “claramente” – por citar exatamente quais as profissões que os portugueses têm – o tipo de imigrantes que chegou ao Brasil, explicando por que essa imigração teve um impacto “tão grande” no mercado de trabalho brasileiro. Em vez de portugueses pobres fugindo do salazarismo, pouco qualificados e, portanto, “com poucas chances de competir no mercado de trabalho da classe média urbana”, chegaram nos últimos dois anos – afirma o Opinião – imigrantes “altamente qualificados que vieram competir com os brasileiros em níveis desleais, uma vez que estão, além de todas as facilidades, apadrinhados por milionários e senhoras da antiga sociedade salazarista”.

NOTAS

1 Edição disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=123307&pagfis=3925&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Veja um breve, porém ótimo histórico sobre o semanário – nesta época editado por Argemiro Ferreira – em http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/opini%C3%A3o

3 Quando ocorreu, em 1974, a Revolução dos Cravos, ou ainda Revolução de 25 de Abril.

4 Moeda de Portugal à época.

5O grifo é do jornal.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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