Os 46 ingleses no Paraná e o crime de vagabundagem

Por Gustavo Barreto (*)
Hotel dos Estrangeiros em 1927, publicado originalmente no 'Álbum do Paraná', de José Pedro Trindade, e disponível no arquivo da Casa de Cultura de Cerro Azul. Fonte: cerazul.blogspot.com.br

Hotel dos Estrangeiros em 1927, publicado originalmente no ‘Álbum do Paraná’, de José Pedro Trindade, e disponível no arquivo da Casa de Cultura de Cerro Azul. Fonte: cerazul.blogspot.com.br

O jornal A Nação, com sede na capital do Império, publica um artigo de destaque na capa de sua edição de 17 de janeiro de 18741 sob o título de “Colonos inglezes de Assunguy”, dando conta de que 46 imigrantes teriam abandonado o núcleo colonial. A colônia se situa no atual município de Cerro Azul, no região metropolitana de Curitiba, Paraná. Em meio ao movimento migratório dos anos 1850, promovidos pela Corte, surgiu em 1860 a Colônia Açungui (ou Assungui, ou ainda Assunguy, na escrita antiga), às margens do rio Ponta Grossa.

Como esta e outros colônias da região foram estabelecidas pela Corte Imperial, possuíam grande visibilidade. Seus primeiros moradores eram alemães, ingleses, franceses, suíços e italianos. Uma das promotoras do núcleo era a Princesa Isabel. Em 1875, já possuía cerca de 1.800 habitantes. A principal reclamação era seu isolamento, situação que perdurou até os anos 1940 e, sobretudo, após o seu quase abandono durante a Primeira República2.

Segundo A Nação, “sabe-se que 46 immigrantes inglezes, abandonado os prazos de terras que, há cerca de um anno, lhes haviam sido distribuidos na colonia de Assunguy, manifestaram ao Sr. Consul de S.M. [Sua Majestade] Britanica a intenção de repatriar-se”.

“Provavelmente” – afirma o jornal, ainda cauteloso – “antes de ter recolhido as necessarias informações sobre o modo pelo qual o governo imperial se tem desempenhado das promessas com que procura attrahir a emigração, e sobre o caracter e habitos desses indivíduos, o Sr. Lennon Hunt entendeu opportuno convocar por annuncio os seus compatriotas residentes na côrte, para o fim, declarado nesse documento official, de evitar que os 46 subditos inglezes recem-vindos de Assunguy morressem de fome nas ruas do Rio de Janeiro”.

O jornal sugere que eles sejam ouvidos e suas queixas – “fundadas ou não” – levadas ao governo imperial, “persuadindo os seus infelizes compatriotas a não abandonarem um paiz que tão hospitaleiramente os recebeu”. A publicação informa que um boato se espalhou na colônia paranaense, a partir da publicação de um falso edital que anunciava estar ancorado no Rio de Janeiro um navio destinado ao transporte gratuito de colonos ingleses que desejassem ser repatriados, incluindo alguns benefícios.

A Nação sugere ainda que o incidente estaria relacionado à publicação de panfletos “apaixonados” e “outros escritos” na imprensa europeia em que se procura “desviar do Brasil a immigração ingleza para attrahil-a ás colonias britanicas”, com “certa cumplicidade” por parte do consulado no Brasil. Alguns panfletos, diz a publicação carioca, estariam afirmando inclusive que os colonos são obrigados a vender seus filhos, ou que “a casa do cidadão não é um asylo inviolavel”.

O caso abre, ainda, um precedente perigoso, alerta o jornal: os súditos ingleses em iguais condições – “isto é, colonos ociosos e pouco morigerados” – poderiam “se julgar” no direito de exigir a repatriação. Ajudar os 46 imigrantes não é o problema, diz o diário, lembrando que outras nações mantêm instituições filantrópicas, como hospitais e associações humanitárias. Seu caráter “oficial” é que gerou desconfianças, afirma A Nação. O editorial argumenta que aos imigrantes não faltaram auxílios, para em seguida afirmar que os que ficaram na colônia estão satisfeitos, enquanto que “esse punhado de immigrantes deixou na colonia, um facto este bem averiguado, a mais triste reputação”.

“Attento ás queixas e reclamações dos colonos com um cuidado todo particular, o governo os tem como sob generosa tutela”, escreve A Nação, demonstrando sua orientação destacadamente governista. “Aqui mesmo na côrte do Imperio ha uma hospedaria, que o Sr. consul inglez não perderia em visitar, onde os immigrantes em transito são alojados e alimentados por conta do Estado até que tenham destino para a colonia que preferem.”

O periódico cita dados, ainda em seu esforço elogioso à Corte: “Num paiz em que 40,000 immigrantes vivem felizes no Rio Grande do Sul, 20,000 em Santa-Catharina, e 6,000 no Espirito Santo, não póde faltar trabalho na vasta extensão do Imperio para 46 inglezes a quem se deixa a liberdade de escolher qualquer de nossas colonias para ahi fundar residencia”.

O artigo termina com ataques aos “turbulentos e ociosos” imigrantes, nas palavras d’A Nação, que sentencia: “A vagabundagem, sendo um crime pela legislação do Imperio, não poderia encontrar um certo modo de complicidade no governo do paiz. Nós temos caridade official organisada, é certo; mas ella é submetida á regras, á disciplina, e não póde ser insdictamente [sic] applicada a homens vigorosos que não têm pão porque recusam trabalho”.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=586404&pagfis=1759&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 FERREIRA, João Carlos Vicente. O Paraná e seus municípios. Maringá: Memória Brasileira, 1996. 230 p.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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