Organização Internacional de Refugiados é rigorosa, comemora jornal: nada de nazistas, comunistas ou incapazes para o trabalho

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da capa do jornal A Noite de 22 de novembro de 1948

Trecho da capa do jornal A Noite de 22 de novembro de 1948

A edição vespertina de 22 de novembro de 19481 do jornal de forte orientação governista A Noite trata em uma de suas principais manchetes da questão dos refugiados: “Novos métodos de seleção de imigrantes adotados pela Organização Internacional de Refugiados”.

O jornal fez a cobertura de uma coletiva no mesmo dia com o então chefe da Missão da Organização no Brasil, o brigadeiro Dumon Stansby, em que ele aborda “vários aspectos do problema da colocação dos deslocados de guerra nos diversos países membros” do organismo internacional, também conhecido pela sigla OIR.

O representante da OIR informa que o Brasil já recebera cerca de 8 mil deslocados, na maioria agricultores e “artífices”. Durante 1948, o país recebera 3.274, com a cota sendo de 5 mil por ano, “devendo completar-se [naquele ano] (…) até o próximo mês de janeiro”. Em seguida, será resolvido pelo governo a nova cota anual que “poderemos receber dos campos da Europa”, informa o diário carioca.

O jornal admite que o número de imigrantes que o Brasil está recebendo é “insignificante”. Para comprovar, acrescenta, “basta compararmos com o que outros países latino-americanos estão recebendo”.

A desproporção torna-se maior, afirma a matéria, pois o Brasil teria sido o primeiro a aderir ao comitê para recebimento de deslocados, “sendo nós os primeiros a iniciarmos a seleção nos campos europeus”. A matéria cita, então dados: em 1947 (ano anterior ao do texto), enquanto o país recebia a “modesta quota” de 5 mil, a Argentina recebeu 12 mil e a Venezuela 6 mil.

O própria jornal corre para buscar uma explicação. Em primeiro lugar, diz a matéria – em tom evidentemente editorial –, “o nosso sistema de recepção e colocação nas fazendas, minas e fábricas não comportaria, de imediato, uma vinda maior de deslocados”. Mas esse não seria o principal problema, argumenta o jornal. Mesmo que as hospedarias no Rio e em Santos fossem ampliadas, “os imigrantes não apareceriam”. A explicação, diz o jornal, é “muito simples”: a falta de propaganda nos campos de concentração dos deslocados.

Em um momento em que todos os países do mundo “clamam por falta de braços para o aumento de suas lavouras e indústrias”, a procura por deslocados é “enorme”. E o texto acrescenta: “Soubemos por pessoa de absoluta responsabilidade que não se vê naqueles campos um único anúncio-convite com referência ao Brasil”.

E cita um exemplo: “Até o Marrocos francês faz propaganda nêsse sentido, procurando captar a preferência dos seus futuros imigrantes”. A propaganda brasileira se dá à base do boca a boca – cartas de famílias já estabelecidas no Brasil. “Esta é a única propaganda que temos”, lamenta o diário carioca.

A própria OIR, afirma o jornal, reconheceu que o sistema de seleção está “em evolução”, pois “a colocação em larga escala de deslocados de guerra é um problema novo somente tentado depois da última conflagração”. Entre os exemplos está a identificação profissional dos deslocados: “Até há pouco bastava o imigrante declarar que era agricultor para ficar constando na sua ficha tal profissão”.

O jornal diz que o fato de muitos deslocados terem mentido ao declarar sua profissão “trouxe sérios inconvenientes aos países para onde se dirigiam”. A questão, à época, estava colocada de forma transparente: não se recebiam refugiados – ou “deslocados de guerra”, designação recorrente à época – por questões humanitárias. Se não fossem estes “capazes” e desejáveis em termos econômicos, não seriam selecionados ou aceitos.

Mas o jornal comemora: “Agora o método é outro. A O.I.R. recebem cem pessoas que se dizem tecelões. Manda-os para uma fábrica de tecidos e sob as vistas de um técnico aprecia o seu trabalho. No fim do treino recebem uma espécie de diploma com a característica da sua profissão devidamente autenticada”. O mesmo acontece com mineiros, agricultores e outras categorias. Antes de pessoas detentoras de direitos, os refugiados são trabalhadores. Segundo a matéria, a OIR espera, com isso, “evitar suprezas dos fazendeiros ou dos industriais que os recebem”.

O chefe da representação da OIR no Brasil, além disso, já recebe os deslocados de guerra – escreve o diário – “devidamente selecionados quanto às suas idéias políticas”. Diz o texto: “A O.I.R. não transporta nazistas e comunistas, sendo o expurgo feito pelas missões militares locais”. Após a “seleção política”, continua o jornal, a OIR faz a “seleção econômica”, transportando à sua custa os “desprovidos de recursos financeiros”. Vem depois o exame médico, “selecionando os fisicamente capazes”.

Além dos três exames, exige-se de todo imigrante da OIR que saiba ler e escrever, acrescenta a matéria do jornal A Noite. O diário conclui: “Somente depois de aprovados em todos êsses testes, são postos à disposição das comissões de seleção dos diversos países. Cabe a estas selecioná-los de acordo com as necessidades dos seus govêrnos”. Nota-se, portanto, a absoluta ausência, mesmo após os horrores da Segunda Guerra Mundial, de critérios baseados na dignidade ou nos direitos humanos. Antes de tudo, buscam-se braços para a lavoura e para a indústria nacional.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=348970_04&pagfis=55591&pesq=

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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