Novos Limites para a Mídia em Rede: questões e conceitos em construção

Por Gustavo Barreto (*)

 

 

Autor

Gustavo Barreto de Campos, Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalho apresentado no 5o Interprogramas de mestrado da Faculdade Cásper Líbero. E-mail: gb@ufrj.br

Resumo

A pesquisa tem como objetivo avaliar e compreender em qual quadro teórico se desenvolve, atualmente, o movimento da sociedade civil organizada no campo da comunicação. As demandas por cidadania são investigadas a partir das ações de grupos e coletivos que tem como estratégia de ação uma intervenção nas denominadas mídias livres, ou mídia em rede – de caráter a-centrado – , termos que serão problematizados. Destacamos como marco teórico o conceito do rizoma (Deleuze e Guatarri) e temos particular interesse na investigação de um novo cenário sociocultural no qual “ambientes e linguagens independentes e criativas são construídas em rede” (Pinheiro).

Palavras-chave: Comunicação cidadã, Webativismo, Redes de comunicação.

1 Introdução

A simbologia da rede – ou, no lugar comum pós moderno, das redes – está permeada de ideais libertadoras, principalmente no que concerne a campos de conhecimento como o da comunicação, da cultura e da sociologia. As redes, creem distintos estudiosos, são quase sempre descritas como “abertas”, “livres” e um “ponto de fuga” para o modelo concentrador de organização da cultura moderna.

Estamos experimentando uma revolução, em tempos de Era da Informação (Castells, 1999), Sociedade da Informação (Mattelart, 2006), Capitalismo Cognitivo (Hardt e Negri, 2001), Economia da Informação (Stiglitz, 2001) eRevolução da Informação (Drucker, 1998). Parece pouco provável que alguma cátedra universitária reprove a importância do tema, tão pouco que o mercado – ou esta noção metafísica que se convencionou assim chamar – não dê a devida atenção para a novidade.

Nem sempre foi assim, para adotar uma perspectiva foucaultiana, ou não o é efetivamente para distintos grupos que adotam crenças seculares. E tampouco há razões para crer – numa perspectiva dogmática (uma contradição em termos, aliás) – que as redes possam gozar de um status naturalmente vinculado aos ideais mais próximos do que entendemos por liberdade.

Em Roma, por exemplo, a rede era a arma usada por uma certa categoria de gladiadores (os reciários) e servia para imobilizar o adversário, prendendo-o entre as malhas, onde ficava à mercê do vencedor (Chevalier & Gheerbrant, 2007). Surge daí o símbolo, em psicologia, dos “complexos que entravam a vida interior e exterior, cujas malhas são igualmente difíceis de serem desatadas e desenredadas” (Id.).

Cercavam-me laços de morte, eram redes do xeol: Caí em angústia e aflição. Então invoquei o nome de Jeová. (Salmos, 116, 3)

Também na Bíblia (trecho acima), as redes exprimem a angústia, enquanto no Evangelho simbolizam a ação divina: “O Reino dos Céus é ainda semelhante a uma rede lançada ao mar, que apanha de tudo. Quando está cheia, puxam-na para a praia e, sentados, juntam o que é bom em vasilhas, mas o que não presta deitam fora. Assim será no fim do mundo” (Mateus, 13, 47-48-49).

Nas tradições orientais, igualmente, “os deuses são dotados de redes para prender os homens em seus laços ou para atraí-los a eles. Os analistas veem, nessas imagens, símbolos da busca, no inconsciente, da anamnese, cuja função é a de trazer ao umbral da consciência, como peixes das profundezas do mar, as mais longíquas e mais recalcadas recordações” (Chevalier & Gheerbrant, 2007).

Já na tradição iraniana, ao contrário, é o homem (e particularmente o místico) que se arma com uma rede para tentar captar Deus. Por exemplo: uma vez que a Divindade é simbolizada, em muitas culturas, por uma Águia real, arede é a arma destinada a capturar essa Águia. Em outras palavras, trata-se da possibilidade de “reivindicar a execução da promessa divina de que Deus se encarnaria” (Id.). O esforço para esta caça é o próprio esforço da humanidade pela busca da Divindade, não disponível para caçadores não-ardorosos. “E aquele que segura firmemente a rede (i.e., aquele que, apesar de tudo, se empenha na busca apaixonada e aventurosa) é como Binyamin [manifestação do Anjo Gabriel e de Jesus Cristo]: sempre à espreita, para melhor lançar sua rede no momento propício” (Id.). É o caso da aranha, que mantem uma rede (a teia) e, vigilante, aguarda sua presa.

Em todas essas representações, simbólicas, a rede, considerada como objeto sagrado, serve como veículo de captação de uma força espiritual” (Id.).

Não caberá, neste curto espaço, investigar todas as simbologias pertinentes ao vocabulário contemporâneo que permeia o uso das novas tecnologias. No entanto, nota-se que grande parte da população mundial ainda possui referências culturais mais próximas à ideia da rede como símbolo de angústia e como objeto sagrado do que a partir das referências pós-modernas.

O objetivo deste trabalho é apresentar excertos acerca da problemática que envolve a pesquisa em curso: a constituição e construção de direitos dos cidadãos (“direitos humanos”, “direitos do Homem”, “direitos naturais”, “direitos fundamentais” e outros termos que colocaremos em debate) a partir das redes sociais a-centradas. Também serão apresentados questionamentos de poderes constituídos cuja lógica centralizadora é estranha ao ideário de conceitos como rizoma (Deleuze & Guattari, 2009) e zona autônoma temporária – TAZ (Bey, 1985).

Para tanto, investigaremos a própria noção de “sociedade civil organizada” e seus múltiplos questionamentos, bem como os conceitos de “coletivos sociais” ou “movimentos sociais”. A interface desta problemática com a História – ou o questionamento das concepções de “História” – e, evidentemente, com as distintas concepções de “mídia” (cultura da, de massa, em rede, hegemônica e contra-hegemônica etc) é também parte integrante desta investigação.


2 Direitos imaginados: as primeiras redes sociais

Ao tentar consolidar um estudo sobre um determinado tipo de comunicação – valores e práticas – que esteja centrado na constituição de direitos e na busca por cidadania plena, veremos que é útil a busca pela conceituação da noção histórica e simbólica do que vem a ser “direitos humanos”, grosso modo, e todas as designações que nos interessa como fonte de pesquisa.

A primeira característica notável, apontada pela historiadora e professora da Universidade da Califórnia Lynn Hunt (2009), acerca do conceito de direitos humanos e é a sua autoevidência. “Consideramos estas verdades autoevidentes:”, escreveu Thomas Jefferson ainda no rascunho da Declaração da Independência dos Estados Unidos e, depois na “Declaração unânime dos treze Estados unidos da América”, concluída e tornada pública em 1776, “que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”.

Assim também era, “na sua impetuosidade e simplicidade” (Hunt, 2009, p.14), a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), ao afirmar “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”. Como lembra Hunt, a carta francesa afirmava salvaguardar as liberdades individuais, “mas não impediu o surgimento de um governo francês que reprimiu os direitos (conhecidos como o Terror), e futuras constituições francesas – houve muitas delas – formularam declarações diferentes ou passaram sem nenhuma declaração” (Id.).

Além disso, não só as crianças, os insanos, os prisioneiros ou os estrangeiros eram relegados do plano político da nação (o que copiamos até hoje), mas também, à época, aqueles sem propriedade, os escravos, os negros livres, em alguns casos as minorias religiosas e, sempre, as mulheres.

Hunt destaca um paradoxo essencial para entendermos este desenvolvimento histórico e conceitual: os direitos podem ser “autoevidentes” quando estudiosos discutem há mais de dois séculos tais questões? Nunca houve, entre osconstituintes da época, a necessidade de explicação. O que leva Hunt a concluir que os direitos humanos só se tornam significativos quando ganham conteúdo político. Em outras palavras: “Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos de humanos em sociedade (…) São, portanto, direitos garantidos no mundo político secular (mesmo que sejam chamados “sagrados”), e são direitos que requerem uma participação ativa daqueles que os detêm” (Hunt, 2009, p.19).

Hunt argumenta que os direitos humanos requerem três qualidades encadeadas:

  • naturais – inerentes nos seres humanos;

  • iguais – os mesmos para todo mundo;

  • universais – aplicáveis por toda parte.


Para a autora, tais direitos são difíceis de determinar porque sua definição, e na verdade a sua própria existência, depende tanto das emoções quanto da razão. “A reivindicação de autoevidência se baseia em última análise”, conclui, “num apelo emocional: ela é convincente se ressoa dentro de cada indivíduo. Além disso, temos muita certeza de que um direito humano está em questão quando nos sentimos horrorizados pela sua violação” (Id., p.25).

E, neste ponto, alcançamos uma das questões centrais da pós-modernidade: a autonomia do indivíduo. Hunt destaca que as ideias filosóficas, as tradições legais e a política revolucionária “precisaram ter esse tipo de ponto de referência emocional interior para que os direitos humanos fossem verdadeiramente autoevidentes” (Id.), o que implicava “democratizá-lo” para o maior número de pessoas.

Tidos como naturais, os conceitos de autonomia e igualdade só ganharam força no século XVIII. Para que um indivíduo fosse moralmente autônomo, duas qualidades relacionadas e distintas estavam implicadas: a capacidade de raciocinar e a independência de decidir por si mesmo. Estavam excluídos crianças e insanos (até hoje), que poderiam adquirir ou retomar esta capacidade. Conforme destacamos, estavam excluídos da formulação inicial os sem propriedade, os escravos, os negros livres, em alguns casos as minorias religiosas e as mulheres.

Os direitos humanos mudam, como podemos concluir, constantamente e conceitos relacionados a eles (autonomia, igualdade etc.) são práticas culturais e não apenas ideais. Como práticas culturais, Hunt aponta que estes dependem tanto do domínio de si mesmo como do reconhecimento de que todos os outros são igualmente senhores de si. “É o desenvolvimento incompleto dessa última condição que dá origem a todas as desiguladades de direitos que nos têm preocupado ao longo de toda a história” (Id., p.28).

O desenvolvimento da valorização da autonomia, da igualdade e da empatia – ou melhor, o desenvolvimento destes conceitos em termos sociais e históricos – é elemento central para a constituição de valores vinculados à ideia moderna de cidadania. Não cabe neste trabalho expor um tema tão importante de forma breve, mas basta apontar que a importância do conceito – em síntese – de identidade torna-se vital para a transformação profunda destas sociedades do século XVIII. Uma das consequências mais notáveis foi a abolição das formas bárbaras de punição corporal e da tortura, pelo menos em termos legais.

A cidadania e a noção de direitos humanos está, aqui, no preambulo da formação do que Benedict Anderson denominou de “comunidade imaginada”, que Hunt redefine como “empatia imaginada”. É

imaginada não no sentido de inventada, mas no sentido de que a empatia requer um salto de fé, de imaginar que alguma outra pessoa é como você. Os relatos de tortura produziam essa empatia imaginada por meio de novas visões da dor. Os romances a geravam induzindo novas sensações a respeito do eu interior. Cada um à sua maneira reforçava a noção de uma comunidade baseada em indivíduos autônomos e empáticos, que podiam se relacionar, para além de suas famílias imediatas, associações religiosas ou até nações, com valores universais maiores. (Hunt, 2009, pg.30-31 e Anderson, 2008)


Neste diálogo entre conceitos reside nossa maior tarefa, a partir do consenso moderno de que nada é puramente natural no homem, mas cultural (Hunt, 2009), conforme sintetiza Denys Cuche:

Esta aceitação [da noção de cultura] nem sempre existiu. Desde seu aparecimento no século XVIII, a ideia moderna de cultura suscitou constantemente debates acirrados. Qualquer que seja o sentido preciso que possa ter sido dado à palavra (…) sempre subsistiram desacordos sobre sua aplicação a esta ou àquela realidade. O uso da noção de cultura leva diretamente à ordem simbólica, ao que se refere ao sentido, isto é, ao ponto sobre o qual é mais difícil entrar em acordo. (Cuche, 2002, p.11-12)


3 Sociedade civil organizada e o campo da comunicação

A pesquisa tem como objetivo avaliar e compreender em qual quadro teórico se desenvolve, atualmente, o movimento da sociedade civil organizada no campo da comunicação. As demandas por cidadania são investigadas a partir das ações de grupos e coletivos que tem como estratégia de ação uma intervenção nas denominadas mídias livres, ou mídia em rede, termos que serão problematizados sistematicamente neste trabalho.

A Comunicação para a Cidadania é identificada por distintos grupos de pesquisa como uma tema que merece atenção, dado que as “novas mídias” – de caráter a-centrado, em rede e sem uma organização hierárquica consolidada – possuem hoje um impacto ainda pouco elaborado e muito incipiente. A noção de direitos humanos, ao longo da História, é tema de interesse tranversal e, portanto, será igualmente investigado.

Antes de anteciparmos uma investigação preliminar sobre as questões que envolvem a sociedade civil organizada, cabe registrar um histórico acerca dos debates no campo da comunicação de massa, sobretudo no que diz respeito às teorias mais aceitas durante o século XX.

Venício Lima (2001: passim) sistematizou oito modelos teóricos para o Estudo das Comunicações, que iremos descrever como modo de traçar um panorama, mesmo que incompleto para o propósito específico desta pesquisa, e voltar ao nosso foco. São eles: manipulação, persuasão (ou influência), função, informação, linguagem, mercadoria, cultura e diálogo. Os modelos de manipulação e mercadoria são dois exemplos de uma visão cujo sujeito é tido como passivo e conformista. Vamos passar rapidamente por quatro deles (Barreto, 2007):

3.1 Manipulação A manipulação pode ser definida como uma resposta de um organismo a um estímulo. Foi proposto primeiramente nos Estados Unidos durante a primeira Guerra Mundial, quando o monopólio da informação dava um poder quase irrestrito à mídia (imprensa, cinema, rádio e fotografia).

Os que fazem uso deste conceito tendem a se perguntar: quais os efeitos de curto prazo, visto que estamos em uma sociedade atomizada, de massa – ou, como em Leibniz, de mônadas? Essa parece ser uma pergunta chave. Não é à toa que a disciplina que melhor sustentava essa tese é a psicologia mecanicista e o propagandista era um dos principais produtores de informação.

3.2 Mercadoria A mercadoria, por sua vez, é toda e qualquer produto midiático produzido pela indústria cultural. Por definição, esta produção é feita em larga escala e consumida pela massa de consumidores mais ou menos homogêneos. Este modelo foi pensado principalmente na Alemanha, França, Inglaterra e América Latina. Foi proposto durante os anos 40, quando havia entre os pesquisadores um forte debate sobre a cultura popular e uma forte crítica ao Iluminismo. Enquanto que o conceito de manipulação foi sustentado financeiramente pelo governo dos EUA, este já ocorreu nos meios acadêmicos.

O conceito de mercadoria toma como pressuposto que estamos em uma sociedade de classes, tendo o marxismo e a Escola de Frankfurt como fundamento e parecendo ser básico perguntar: qual é a lógica da produção cultural? Na Alemanha de Hitler ou no Brasil de Vargas se discutia muito em meios acadêmicos sobre o a força que representava o aparelho ideológico do Estado. Alguns dos sujeitos mais ativos eram o sociólogo da cultura, o crítico cultural e o gestor de políticas públicas.

No processo de transmissão de conhecimento, são estes dois modelos – manipulação e mercadoria – que podem ser identificados com os modelos mecanicista e subjetivista. O modelo objetivo-ativista, por sua vez, se assemelha em grande parte aos modelos de comunicações definidos como cultura e diálogo.

3.3 Cultura Neste modelo, os teóricos se baseiam em um sistema de significação onde a ordem social é comunicada, reproduzida, experimentada e explorada. Há interação. A realidade é produzida, mantida, restaurada e transformada. Foi proposta na Inglaterra e nos Estados Unidos e possui uma evidente crítica ao marxismo ortodoxo e ao modelo transmissivo de informação. A televisão é o principal meio estudado. Tendo ainda como base uma sociedade de classes, parece ser inerente aos estudiosos deste modelo perguntar: qual é a representação da realidade construída pelos mass media? Stuart Hall e, no Brasil, Venício A. de Lima são dois dos autores que propõe este conceito.

3.4 Diálogo O modelo de diálogo tem como principal nome o educador Paulo Freire. O fundamento deste modelo teórico das comunicações é o encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados, substituindo decisivamente a mera transferência de saber outrora verificada.

É este inclusive o primeiro modelo oriundo exclusivamente da América Latina, argumenta Lima. Apesar de ter como principal meio, atualmente, a nova mídia (tecnologias interativas), já se aplicava na extensão rural das décadas de 60 e 70 e na alfabetização de adultos. Possui traços de interdisciplinaridade na medida em que não pode ser dissociado da Educação e da Filosofia.

Igualmente baseado na sociedade de classes, pergunta: qual a definição ideal de comunicação? Tem como base de apoio a tradição do socialismo cristão (teologia da libertação), opõe a educação bancária à educação problematizadora e tem como objetivo teórico a liberação humana.

Com o início da popularização da Internet, a partir de 1992, o debate sobre a hegemonia da mídia ganha um novo fôlego. Surgem diversos ideólogos que imediatamente ressuscitam e destacam a figura dos tecnolibertários, conforme denomina Mattelart, ou se adequam ao que Hakim Bey (1985) classificou como cibergnose, ou a “tentativa de transcender o corpo através da instantaneidade e da simulação”. Trata-se, em suma, da nova possibilidade de um ativismo político especialmente vinculado às redes de comunicação global e descentralizada.

A partir da tese de que a comunicação proporciona uma solução rápida, técnica e eficaz de problemas tradicionais, como a fome ou a guerra, ou até mesmo de problemas regionais e locais, como o conflito em Chiapas (1994), os entusiastas da cibercultura requentam posições ao afirmar que a comunicação de muitos para muitos, de ponto a ponto, proporcionará uma aproximação de comunidades virtuais e a desejável ciberdemocracia.

Em geral, este debate passa a ser hegemonizado por aqueles que veem nas novas mídias a ferramenta de substituição da política dita tradicional, ou seja, aquela feita nos sindicatos, partidos políticos, tribunais e assembleias legislativas. Destaca-se, aqui, uma mudança de paradigma – como, por exemplo, a passagem do fordismo para o pós-fordismo e todas as problemáticas envolvidas.

Em outra hipótese, ainda há um âmbito hegemônico de coerção e territorialidade, apenas para citar duas questões em debate, dentro do esquema conceitual contemporâneo. Esta hipótese contrasta com a ideia de que vivemos atualmente num “mundo sem fronteiras” – ideário que, por sinal, permeou o imaginário de diversas utopias capitalistas durante as últimas décadas acerca da globalização. Este âmbito de debate justifica razoavelmente os estudos sobre a mídia hegemônica e, por outro lado, as resistências que se formam em contraposição aos impérios midiáticos – principalmente as resistências de caráter comunitário. Aqui, o comunitário diz respeito tanto à “esfera da comunicação oral, dialogal, interpessoal” (Coutinho, 2008, p.64) quanto a projetos de maior alcance.

Abordaremos alguns dos conceitos em voga e suas implicações sociais e culturais.


4 Novos ambientes de atuação: conceitos

Para identificar os conceitos apreendidos durante décadas de inovação tecnológica, principalmente a partir do notável impacto da Internet comercial em 1992, destacamos como marco teórico o conceito do rizoma, elaborado por Deleuze e Guatarri (1995), que surge como um contraponto aos sistemas centrados e é classificado como a-centrado, “uma rede de autômatos finitos”, em que as iniciativas locais são coordenadas independentemente de uma instância central.

Tal como aponta Pinheiro (2006), temos particular interesse na investigação de um novo cenário sociocultural no qual “ambientes e linguagens independentes e criativas são construídas em rede, tendo como objetivos a divulgação e a circulação das informações, dos saberes e do conhecimento, elementos vitais para a formação de uma intelectualidade democratizada, hoje essencial na transformação do trabalho, que passa do modelo produtivo fordista para o denominado pós-fordismo” (p.72).

Distintos grupos e autores trabalham, há pelo menos quatro décadas, a partir de uma perspectiva de atuação política global efetiva. Canclini (2008) nota que, mesmo decorridas décadas de convivência com meios eletrônicos de comunicação, e mesmo após estes serem convertidos nos “principais formadores do imaginário coletivo”, as políticas oficiais ainda não se preocupam suficientemente com as culturas de maior interesse das novas gerações, tal como os vídeos, a música contemporânea e a Internet, meios que se tornaram especialmente úteis para esta atuação. Canclini considera esta nova realidade “cenários de consumo onde se forma o que poderíamos chamar de bases estéticas da cidadania” (Canclini, 2008, p. 213).

O autor é particularmente reticente quanto à possibilidade, inscrita na utilização de novos modelos de comunicação descentralizada, de coexistência de etnias e culturas a partir de uma suposta grande e pacífica família mundial – conceito que inevitavelmente remete à ideia de aldeia global proposta por McLuhan.

O ideário que permeia o discurso acerca da cultura digital na contemporaneidade é exemplificado a partir de José Murilo Carvalho Junior (2009):

Cultura digital é um termo novo, emergente. Vem sendo apropriado por diversos setores, e incorpora perspectivas diversas sobre o impacto das tecnologias digitais e da conexão em rede na sociedade (…) O barateamento do computador pessoal e do telefone celular, aliado à rápida evolução das aplicações em software livre e dos serviços gratuitos na rede, promoveu uma radical democratização no acesso a novos meios de produção e de acesso ao conhecimento. A digitalização da cultura, somada à corrida global para conectar todos a tudo, o tempo todo, torna o fato histórico das redes abertas algo demasiadamente importante, o que demanda reflexão específica. (p.9)

Mattelart problematiza este ponto de vista, afirmando que a sociedade idealizada em torno do conceito de aldeia global funciona a partir do “mito da tecnologia salvadora” (2006, p.8), que por sua vez esconde um esquema operatório de remodelamento da ordem econômica, política e militar em escala planetária. Não se trata, portanto, de negar esta mudança sociocultural, que é “visível” – e também midiática, imaginada –, mas sim demostrar que a “utopia moderna de uma linguagem mundial nasceu muito antes que a linguagem informática cristalizasse o projeto de uma língua universal” (Idem) e que este processo é histórico e político do que técnico.

Tais ponderações não entram em contradição com a observação de Octavio Ianni (2003), no entanto, ao apontar que, no contexto da globalização, “alteram-se quantitativa e qualitativamente as formas de sociabilidade e os jogos das forças sociais, no âmbito de uma configuração histórico-social da vida, do trabalho e cultura na qual sociedades civis nacionais se revelam províncias da sociedade civil em formação” (Ianni, 2003, p.143). Conforme aponta Ianni, a alteração observada nas formas de sociabilidade e nos jogos das forças sociais são produzidas por uma nascente sociedade civil mundial – vasta, complexa e contraditória.

Apenas para exemplificar brevemente esta problemática, a “Cúpula mundial sobre a sociedade da informação”, evento realizado em dezembro de 2003 em nível global com o apoio da União Internacional das Telecomunicações (IUT, na sigla em inglês), concedeu protocolos para garantir a participação da sociedade civil. Eram grupos por vezes completamente heterogêneos: o meio universitário e educativo; a comunidade científica e tecnológica; as mídias; os atores e criadores culturais; as cidades e poderes locais; os sindicatos; os parlamentares; as ONGs; os jovens; os grupos definidos pelo gênero [gender]; os povos autóctones; os deficientes; os movimentos sociais; as instituições filantrópicas; os think tanks; as “associações de multiatores”; e finalmente os grupos regionais da África, da Ásia, da América Latina e do Caribe, da Europa e dos países árabes.


5 Ativismos políticos e a cultura tecnológica

A partir destas ponderações, cabe destacar um conjunto de transformações sociais, de caráter histórico e mais do que nunca global, que é conduzido em parte por iniciativas comunitárias que, segundo Dênis de Moraes (2009), rejeitam “os controles ideológicos da mídia convencional” e “recorrem à ambiência descentralizada da rede mundial de computadores” (p.231). O objetivo destas redes é “construir uma ordem social fundada na partilha equânime das riquezas, nos direitos da cidadania e na diversidade cultural”, bem como “dar visibilidade à contestação à ideologia mercantilista da globalização, realizando intenso trabalho de crítica e disseminação de ideias para elevar a consciência sobre o mundo vivido e trazer ao debate possibilidades de transformação” (Moraes, 2009, p.232).

Esta mudança de paradigma também passa pela revisão do conceito que estruturou, durante décadas, a figura do sujeito como receptor passivo, que apenas recebe e decodifica de modo linear informações provenientes dos meios de comunicação de massa. Estas mudanças são de duas ordens:

  • O sujeito “receptor” também produz sentido, reinterpreta as mensagens que chegam diariamente e as modifica de acordo com seu arcabouço cultural, social, político e histórico.

  • Com a emergência de meios e expressões de comunicação mais democráticos, acessíveis e eficientes, o sujeito “receptor” passa a ser, em alguns casos, emissor de informação, ou seja, ele próprio se torna uma fonte de informação.

Conforme veremos mais adiante, é razoável sermos cautelosos ao indicar de modo unânime uma mudança plena de paradigma, como parecem fazer alguns autores. As mudanças ocorridas em processos tão complexos de comunicação como este é lenta e gradual. Moraes pondera que a chance que os usuários têm de atuar, simultaneamente, como produtores, emissores e receptores de ideias e conhecimentos está vinculada a “habilidades técnicas e lastros culturais” (2009, p.239).

A comunicação de massa postulada por diversos autores, sobretudo a partir dos anos 1960, é complexa e múltipla, como aponta, por exemplo, Kellner (2001). Para este autor, que desenvolve a questão a partir do que denominacultura da mídia, é possível mapear mecanismos que torna esta cultura global, totalizante, mas ao mesmo tempo local, uma máquina identitária. Muito antes Gramsci, para citar outro exemplo, já alertava:

É pueril pensar que um conceito claro, difundido de modo oportuno, insira-se nas diversas consciências com os mesmos efeitos organizadores de clareza difusa: este é um erro iluminista (…) O mesmo raio luminoso, passando por prismas diversos, dá refrações de luz diversas: se se pretende obter a mesma refração, é necessária toda uma série de retificações nos prismas singulares. (Gramsci, 2004, p.205-206)

Além disso, no que diz respeito às ferramentas disponíveis – particularmente neste caso, em que os produtores de informação são em grande parte jovens –, Nicolau Sevcenko destaca que as novas gerações já se apropriam com mais naturalidade das tecnologias digitais:

Essa é a primeira geração que já nasceu sob a nova tecnosfera, não só conhecendo, mas interagindo, inventando e participando ativamente da pletora de conectividades, ainda mal conhecidas, que foram introduzidas pela recente mutação tecnocientífica. Mas, justamente porque ela não apareceu como uma estranheza em meio às suas vidas, eles não a veem nem como ameaça, nem como panaceia. Não são nem seus arautos, nem seus celebrantes, nem seus detratores. Procuram articulá-la como um potencial para o desenvolvimento pessoal, comunitário e coletivo. (Sevcenko, 2002 apud Moraes, 2009, p.241-242)

Segundo Marta Pinheiro (2006), não é possível isolar a questão comunicacional e das mídias do momento histórico atual, “a passagem do fordismo para o pós-fordismo, quando ocorre a transformação da lógica de reprodução para a lógica de inovação, de um regime de repetição para um regime de invenção” (p.76). Pinheiro argumenta que “o valor, no fordismo, tinha origem na produção de bens homogêneos e reprodutíveis; agora, na fase pós-fordista, se origina na inovação e na mudança, que se transformam nos principais fatores de valorização” (2006, p.76).

Estes fatores interessam, aqui, na medida em que combater a desigualdade no campo do conhecimento, neste contexto, passa pela circulação sem entraves e pela livre distribuição de informação – um problema, como veremos, de ordem política, e não instrumental. A partir do aumento do acesso à Internet, surgem movimentos comunitários de caráter global, com causas globais, que renovam e fomentam novas formas de disputa contra-hegemônica.

Segundo Moraes, são pontos comuns nas políticas de distribuição da informação, entre os grupos contra-hegemônicos e de contrainformação: a recusa do modo de produção capitalista e da ideologia de mercado; o combate a desigualdades; a defesa da cidadania, da diversidade cultural e da democratização dos meios de comunicação; e a interação com leitores e usuários (2009, p.246). Outra característica importante é o envolvimento que é muitas vezes observado destes realizadores de meios contra-hegemônicos com causas sociais, em temas distintos como economia, direitos de minorias e etnias, ecologia, defesa do consumidor, cooperativismo, educação, saúde, reforma agrária, emprego e cultura, entre outros.

O professor Jorge Alberto Machado apontará esta problemática já abordada, dando ênfase à dificuldade que os pesquisadores encontram, tanto na sociologia quanto em outras áreas de estudo, em qualificar sob um mesmo guarda-chuva categorias como movimentos sociais ou coletivos sociais. “A complexidade do tema e a diversidade de objetos e contextos fazem dele uma fonte quase inesgotável de estudos, análises e novas teorizações” (Machado, 2007, p.249), lembrando inclusive que a própria noção de “movimentos sociais” é recente e nunca foi citada como categoria por autores clássicos da sociologia.

Não sendo possível nos prolongar muito no tema, cabe ressaltar neste breve artigo aspectos centrais para refletirmos sobre as interfaces que são foco deste estudo. Os movimentos sociais, em primeiro plano, passaram ao longo do século XXI por profundas mudanças que estão, quase sempre, vinculadas com as mudanças na própria constituição do Estado moderno. O movimento de democratização crescente dos governos, impulsionada pela efervescência social do século XX e com raízes na própria sociedade civil (inclusive), provocou o surgimento de novas formas de mobilização social (Machado, 2007; Pinheiro, 2006; Assis, 2006). Machado denomina movimentos sociais

formas de organização e articulação baseadas em um conjunto de interesses e valores comuns, com o objetivo de definir e orientar as formas de atuação social. Tais formas de ação coletiva têm como objetivo, a partir de processos frenquentemente não-institucionais de pressão, mudar a ordem social existente, ou parte dela, e influenciar os resultados dos processos sociais e políticos que envolvem valores ou comportamentos sociais ou, em última instância, decisões institucionais de governos e organismos referentes à definição de políticas públicas. (Machado, 2007, p.252)

Os “novos” movimentos sociais, apontados por distintos autores, é um foco importante desta pesquisa. Machado argumenta que os próprios movimentos sociais se proliferaram a partir da conquista de direitos e do apoio do próprio Estado, em parte, ganhando em complexidade e em diversidade. Por “novos” entendia-se principalmente os movimentos pacifistas, das mulheres, ambientalistas, contra a proliferação nuclear, pelos direitos civis etc. Uma característica notável era o distanciamento crescente do caráter classista dos movimentos sindical e camponês, a partir de concepções políticas que procuravam, de distintas formas em níveis diversificados, o diálogo e, em alguns casos, até mesmo a cooptação por parte dos aparelhos do Estado e do mercado.

Passam a fazer parte das preocupações de diversos movimentos sociais bandeiras que possuíam pouca atenção, como as questões de gênero (ampliadas), as questões vinculadas à noção moderna (e agora consolidada) de identidade e bandeiras setoriais, como a questão ambiental.

6 Considerações finais

Este artigo procurou delinear questões importantes que serão abordadas com mais atenção ao longo da pesquisa, ainda em seu primeiro ano, visto que o espaço para as reflexões são ora reduzidos.

Consideramos pertinente a continuidade das reflexões sobre a problemática da categoria “movimentos sociais” (Machado, 2007), ampliando o tema para dar-lhe um caráter de “coletivos sociais”, visto que muitos grupos que atuam no que denominaremos ativismo de mídia não se enquadram na perspectiva sociológica a que fazemos referência. Esta necessidade fica clara a partir de dois marcos teóricos importantes: a investigação dos conceitos de rizoma em Deleuze & Guattari (2009) e zona autônoma temporária – TAZ a partir de Hakim Bey (1985).

A partir destas questões iniciais ora destacadas, também será possível delimitar as novas formas de atuação dos movimentos sociais (os “novos”, os “tradicionais” e os híbridos), a partir de Daniel Silva (2009), Dênis de Moraes (2009), Érico Assis (2006), Naomi Klein (2003), Jorge Alberto Machado (2007) e Henrique Antoun (2008).

A pesquisa também problematizará, conforme Assis (2006), “a tensão existente entre o ativismo político contemporâneo e a midiatização”, a partir de uma pesquisa de campo, com entrevistas presenciais com pesquisadores e líderes do campo da comunicação e da cultura na esfera do que podemos denominar ora sociedade civil organizada, ora movimentos sociais, ora coletivos sociais. As informações serão disponibilizadas, ainda no processo de elaboração da dissertação, no sítio www.midiacidada.org


 

 

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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