No pós-abolição, um edital em busca de ‘immigrantes laboriosos e morigerados’ – porém europeus! Nunca africanos ou asiáticos

Por Gustavo Barreto (*)
O Auxiliador da Industria Nacional: edição de 1890

O Auxiliador da Industria Nacional: edição de 1890

O Auxiliador da Industria Nacional, publicação da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, era dirigida desde 1880 por Nicolau Joaquim Moreira, ativo colaborador da Academia Imperial de Medicina. Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Moreira também era conselheiro do Imperador. Foi cirurgião do hospital militar; diretor da seção de botânica e subdiretor do Museu Nacional; e diretor do Jardim Botânico.

Em 1890, e já há algum tempo, a Sociedade e sua publicação – neste ano de periodicidade anual1 – defendiam a imigração europeia branca sobretudo por razões econômicas e raciais, e não humanitárias. Para Moreira, o imigrante ideal era saudável, racialmente favorável ao Brasil e disposto a adotar a nova nação como pátria. Ele considerava, por exemplo, desmoralizador fazer uso da mão de obra chinesa “pois o chim é inferior ao escravo”2.

No que diz respeito ao argumento econômico, a Gazeta de Notícias de 25 de maio de 1877, momento em que Moreira já gozava de ampla credibilidade nos meios científicos, traz um posicionamento do autor sobre a necessidade de se desenvolver o ensino agrícola profissional e científico entre os trabalhadores do campo.

“Aplicando estes princípios racionais a lavoura do país, conclui o distinto professor, que, infelizmente os nossos proprietários agrícolas, na maior parte, estão longe de conhecer as vantagens que lhes resultaria desta inteligente direção de seus estabelecimentos rurais, em cuja máxima parte nem ao menos existe uma escrituração regular, ignorando por conseguinte o lavrador não somente a soma do capital empregado na sua indústria como também as vantagens que aufere dela podem razoavelmente satisfazer o empate do capital empregado em seu ramo de produção”, registra o diário carioca.

“Não é só a escassez de capitais, diz o Sr. Dr. Nicolau Moreira, como especialmente a falta de conhecimentos profissionais que acusam a inferioridade de nossos produtos e finalmente o seu depreciamento nos grandes mercados”, escreve a Gazeta, acrescentando: “Querem eles [senhores de terras] obter capitais a todo o custo para comprar mais escravos, e comprarem estes para conseguirem maior soma de produção, afim [de] emprenharem-se de novo nessas perigosas transações financeiras. Nasce daqui um círculo vicioso em que se debatem. Em lugar de máquinas, que dispensam os braços e aperfeiçoam o trabalho, ampliam e alargam os elementos do trabalho cativo. Em vez de aumentarem com capitais próprios o desenvolvimento de sua indústria, vão procurá-los com altos prêmios nas mãos dos intermediários e nas arcas dos banqueiros”.

Na edição anual de 1890, o Auxiliador da Industria Nacional publica um decreto sobre o tema da imigração precedido por um texto de Francisco Glicério, general que à época comandava a pasta da Agricultura3. Argumenta Glicério que “uma das mais palpitantes necessidades, que convem attender, para fomentar a expansão das forças productoras da Republica, é, sem duvida, o desenvolvimento da immigração européa”. Para isso, afirma o ministro, serão necessárias “disposições que garantão o estabelecimento de uma corrente de immigrantes laboriosos e morigerados, assegurando-se-lhes os auxilios e recursos necessarios para a sua conveniente collocação”.

Mesmo com o apoio do governo tanto à acomodação dos imigrantes europeus quanto para seu transporte adequado, diz o general Glicério, são necessárias medidas complementares – dispostos, diz, em seu novo plano de reforma sobre o tema, objeto do decreto 528, de 28 de junho de 1890. O decreto está organizado em duas partes, explica o ministro.

A primeira diz respeito às medidas referentes às “condições que os immigrantes devem preencher para gozarem dos favores, que lhes são promettidos pelo governo”. Institui, por exemplo, uma premiação de 100 mil francos a cada uma das companhias da vapores que, por ano, tiver transportado pelo menos 10 mil imigrantes. É importante observar que esta determinação, prevista no artigo 16 do decreto, não trata do pagamento ordinário do serviço: é uma espécie de premiação pela alta produtividade. A primeira parte também trata das deportações. A segunda parte do decreto trata dos locais de acolhimento dos imigrantes, com uma série de auxílios por parte do governo para a fundação de núcleos coloniais.

Enquanto as políticas para os escravos recém libertos eram na praticamente nulas, o governo defendia, por meio de mais um decreto, os interesses dos imigrantes europeus “que, durante largo prazo, gozarão de toda a protecção das autoridades da Republica, encontrando afinal nos nucleos custeados pelo Estado definitiva collocação no caso em que, por qualquer circumstancia, não lhes convenha permanecer nos estabelecimentos particulares”.

Nota-se que, como na maior parte dos textos observados na imprensa, o apoio à imigração era necessariamente o apoio à imigração europeia. A obviedade desta afirmação fazia com que, muitas vezes, não fosse nem sequer preciso especificar a origem dos imigrantes desejáveis.

Por ser uma regulamentação jurídica, no entanto, o decreto afirma, logo em seu primeiro artigo: “É inteiramente livre a entrada nos portos da Republica dos individuos validos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à acção criminal do seu paiz, exceptuados os idigenas da Asia, ou Africa que sómente meniante autorisação do congresso nacional, poderão ser admittidos de accôrdo com as condições que forem então estipuladas”.

O artigo segundo não deixa dúvidas, ao determinar que os “agentes diplomaticos e consulares dos Estados-Unidos do Brazil obstarão pelos meios a seu alcance a vinda dos immigrantes daquelles continentes, communicando immediatamente ao governo federal pelo telegrapho, quando não o puderem evitar”. O terceiro artigo, por sua vez, determina que a “policia dos portos da Republica impedirá o desembarque de taes indivíduos, bem como dos mendigos e indigentes”. O texto determina ainda uma multa para os comandantes das embarcações e, no caso de reincidência, perda dos “privilegios de que gozarem”.

O decreto – assinado pelo então presidente Deodoro da Fonseca, o primeiro da República, e por Glicério – limita, ainda, a entrada a trabalhadores agrícolas ou “operarios de artes mecanicas ou industriaes, artezãos e os individuos que se destinarem ao serviço domestico”, e com idade entre 18 e 50 anos. Os auxílios são, no entanto, integrais apenas para os trabalhadores agrícolas. Além disso, diz o texto, indivíduos enfermos ou “com defeitos physicos sómente terão passagem gratuita, se pertencerem a alguma familia, que tenha, pelo menos, duas pessoas validas”.

Uma das poucas garantias de pagamento integral, pelo Estado, do retorno dos imigrantes e de suas famílias se dá em condições extremas: invalidez por acidentes de trabalho ou morte do trabalhador – e, mesmo assim, apenas dentro do prazo de um ano. Esta última medida, descrita no artigo 17 do decreto, possui um claro apelo econômico em favor do governo. Trata-se evidentemente de uma economia de recursos, pois pessoas inválidas ou famílias com muitos integrantes sem condições de trabalho representam custos sociais que o governo não deseja.

Outro artigo (18) determina, por exemplo, que os governadores devem tomar as medidas necessárias “no intuito de proteger os immigrantes morigerados e laboriosos, contra qualquer especulação nos respectivos Estados” (grifo meu). Para os imigrantes europeus, contemplados no edital, eram dadas até mesmo facilidades como ferramentas, sementes, moradia e outros meios de subsistência (incluindo um título provisório de propriedade); para os demais, asiáticos e africanos, restava a perseguição do Estado – perseguição esta não apenas aos imigrantes diretamente, mas a toda a rede de apoiadores que eventualmente viriam a se formar.

O penúltimo artigo do decreto – de número 42 – dispõe sobre a nacionalidade das famílias alocadas em cada propriedade. “Poderão ser admittidos 25% de nacionaes”, esclarece o artigo, com uma condição: “que sejão morigerados, laboriosos e aptos para o serviço agricola”.

NOTAS

1 No ano de sua fundação, em 1833, a publicação chegar a ser mensal. Ver http://memoria.bn.br/docreader/WebIndex/WIBib/302295

2 As citações de Moreira e da Gazeta de Notícias, bem como um estudo sobre seu pensamento, podem ser lidas em http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364576007_ARQUIVO_ANPUH2013.pdf. A maior parte dos textos de Moreira podem ser acessados em http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/autores/?id=17107

3 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=302295&pagfis=25914&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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