A questão da migração internacional humana: um mar de desinformação

Por Gustavo Barreto (*)
Um menino sírio na Turquia: o ícone da falência das políticas migratórias globais. Foto: AP

Um menino sírio na Turquia: o ícone da falência das políticas migratórias globais. Foto: AP

1. É bonitinho dizer que o Brasil salvou 200 pessoas no Mediterrâneo (uma obrigação legal diante de um flagra) ou que o Brasil recebe mais sírios que alguns países europeus (número irrisório, 2 mil), mas vamos falar um pouco da realidade: quem se ‘dana’, pra valer, são os países da região no Oriente Médio e, depois, os países europeus. Sem esquecer da Austrália, que adora migrantes qualificados mas expulsa e prende os não qualificados que fogem em desespero de conflitos.

Alemanha, Líbano (onde um quarto da população é composta por refugiados), Jordânia, a própria Síria (que recebeu milhares na invasão do Iraque), Suécia, Itália… Sem falar no Quênia, na Etiópia, no Paquistão. A Marinha italiana, por exemplo, está sobrecarregada na busca infinita por migrantes e refugiados no mar, e a gente com um barquinho é o máximo? Menos…

2. Quanto ao Brasil, insisto que temos que receber refugiados pra valer para saber se sabemos fazer isso: por enquanto, os números são irrisórios, cerca de 7 mil no total, o correspondente a 2 dias na Alemanha. Não é o Brasil que recebe muitos sírios oficialmente, é a União Européia que erra feio ao não ajudá-los como deveria, sobretudo a Inglaterra, a Espanha e Portugal, entre outros países. E estamos falando de países menores do que estados pequenos do Brasil! Comparar números absolutos não faz o menor sentido.

3. O Brasil sequer tem estrutura de governo pra receber os refugiados! Nossa lei é da ditadura e aqui o migrante é visto como ameaça nacional. Vocês sabem quem recebe, na prática, os refugiados? As ONGs e a Igreja Católica… Pelo governo, a polícia é a principal responsável, a primeira instituição que eles encontram. Apesar dos esforços de uma parte isolada do governo, da sociedade civil, dos pesquisadores e das instituições internacionais pra mudar isso, quase nada mudou.

4. Aqui, um exemplo dessa diferença brutal de números e ação real: uma família salvou em dois meses, com seu próprio dinheiro, 3 mil pessoas. Mostram a grotesca incompetência dos governos, que parecem querer que todos morram pra dissuadir as pessoas de fugir dos conflitos. Isso simplesmente não vai acontecer! Então, minha gente, “menas” né? Menas.

5. Vejamos o caso da Alemanha: sozinha, recebeu 1 milhão de solicitações de asilo desde 2014 até o final de 2015 (ou seja, pessoas in loco e o governo tendo que dar uma resposta prática — leia aqui, aqui e aqui). Estes são os dados oficiais e aceitos como corretos pelo ACNUR e OIM, as agências internacionais de refugiados e migrações, respectivamente. E pelos pesquisadores também. Se encontrarem alguém que discorde deles, por favor avise.

6. No Brasil, segundo a Polícia Federal, somando os haitianos (que não são refugiados), os refugiados e os africanos não refugiados, não chega a 100 mil. Cem mil é o número de solicitações de asilo em agosto de 2015 na Alemanha (para ficar no exemplo). São dados oficiais da Polícia Federal brasileira, sendo que o de haitianos (50 mil) são dados confirmados da embaixada haitiana, PF e outros estudiosos do tema.

7. O Brasil está longe de resolver o problema: o Estatuto do Estrangeiro, de autoria do governo militar, permite que o governo faça o que bem desejar, de acordo com os ventos políticos.

8. Assim, a ignorância facilitada pela imprensa — que vive de “episódios” — gera um mutirão de desinformados que falam em “milhares de chineses” ou numa “invasão haitiana” ou de africanos. Se houvesse, seria ótimo, ao meu ver. Infelizmente não há. É um senso comum frágil, se equiparados à realidade. Há mais espanhóis, portugueses e japoneses entrando no Brasil do que chineses. Há mais europeus tentando se estabelecer no país do que africanos.

Mas a imprensa (de um modo geral, com exceções), supostamente vivendo de “novidade”, alardeia a tal invasão sempre que possível, ajudando a ampliar a falsa percepção de que o Brasil está repleto de estrangeiros. E, o pior, sem sequer promover o famoso questionamento “e daí?” O Brasil não é um país de imigrantes? Mas os de outrora eram brancos, sobretudo europeus. A raça boa, diziam na época.

Os chineses sequer aparecem na lista principal de países que fornecem os imigrantes no Brasil: na ordem, Portugal, Japão, Itália, Espanha, Bolívia e Argentina. Os números brasileiros são irrisórios, algo como 940 mil (2013), contando os haitianos e todos os casados com brasileiros, pais de brasileiros etc, ou seja, o total do total.

Mas os portugueses, italianos e espanhóis ninguém teme. Não há matérias negativas sobre isso. Como há matérias negativas sobre os chineses ou os haitianos, os contamos mentalmente aos “milhares”: em 2012, no entanto, entraram menos de 900. É um número igual ao de norte-americanos, na casa de 700.

9. No caso da Alemanha, voltando ao exemplo inicial, o 1 milhão é apenas o de novas chegadas de migrantes em situação de desespero. É como se chegassem no Brasil — na proporção — mais de 2 milhões de haitianos (fugindo da situação econômica ruim) e africanos/árabes (fugindo dos conflitos) em dois anos. Mas não: chegaram 100 mil. Em cinco anos.

10. Ou seja, o Brasil é um dos maiores países do planeta — é 24 vezes maior que a Alemanha, façam as contas — e tem apenas 0,4% da população migrante do mundo. Os estrangeiros não alcançam 1% da população, enquanto o índice é de mais de 5% na maioria das principais economias europeias, sendo que nos EUA esse número é de mais de 20%. Os EUA, aliás, assim como todos os países da América do Sul, permitem que o estrangeiro vote. A única exceção sul-americana é, como sempre, o Brasil, o último país a encerrar a escravidão.

11. Por fim, pra mim não importa muito se a Alemanha precisa ou não de gente porque a população vai envelhecer ou se o Brasil não aproveita adequadamente seu bônus demográfico. As medidas econômicas não farão com que as pessoas parem de morrer no mar. Isso já está longamente demonstrado na história, pois ver o migrante como mercadoria ou força de trabalho faz com que ele possa ser descartado muito facilmente, no momento que as autoridades assim desejarem.

12. Acho que deveria caber mais respeito por parte dos governos aos trabalhadores humanitários que estão na ponta, tanto nos países de origem quanto os de passagem e de destino. Subfinanciados, trabalhadores de organizações internacionais, ONGs e das áreas humanitárias governamentais são alguns dos que mais sofrem a pressão imediata do problema, que não é de fácil solução. O mesmo ocorre com as comunidades de acolhimento.

13. Enquanto os governos acharem que a migração pode ser evitada, continuaremos assassinando, por meio das políticas públicas, milhares de pessoas nas fronteiras e em alto-mar.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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