Lendo Bourdieu

Por Gustavo Barreto (*)

Pierre Bourdieu, A Distinção – Crítica social do julgamento (Porto Alegre: Zouk, 2007)

A resenha/fichamento é do grande Sérgio Domingues, com poucas notas adicionais minhas.

  • O encontro com a obra de arte pressupõe um ato de conhecimento, operação de decifração e decodificação que implica acionamento de um patrimônio cognitivo e uma competência cultural. (p.10)
  • Intelectuais acreditam mais na representação que nas coisas representadas. O “povo” exige que as representações e as convenções que as regulam lhe permita acreditar nas coisas representadas. Primado da forma em relação à função: completa inversão da disposição popular que anexa à estética à ética. (p13)
  • Arte e consumo artístico estão predispostos a desempenhar independentemente de nossa vontade e de nosso saber uma função social de legitimação das diferenças sociais. (p14)
  • Gosto legítimo (forma de percepção considerada a única autêntica) cresce com o nível escolar. (p.21)
  • Prevalência da forma sobre a função como exigência para a atenção. (p33)
  • Outrora as “massas” não tinham acesso à arte, música, museus etc. Agora ficou claro que a grande arte não é um prazer direto dos sentidos (p34)
  • Hostilidade das classes populares e menos ricas em termos de capital cultural a qualquer tipo de experimentação formal. (35)
  • Recusa das classes com maior capital cultural a qualquer espécie de envolvimento, adesão ingênua, abandono vulgar, arrebatamento coletivo. (p38)
  • O naturalismo popular, ao subordinar a forma à função, é necessariamente pluralista e condicional. Recusa a ideia de que uma fotografia, por exemplo, possa agradar universalmente. A imagem é julgada de acordo com a função que venha a desempenhar para esta ou aquela classe de espectadores. (p43)
  • Julgamento tanto mais favorável tanto mais adequado à relação entre significante e significado. (44)
  • Os mais desprovidos de competência específica aplicam às obras de arte legítimas os esquemas de ethos [“valores”, algo como uma identidade social do “povo”]. Redução sistemática das coisas da arte às coisas da vida. Barbarização, segundo as elites. (45)
  • Não basta a aprendizagem escolar para exprimir a experiência estética. O capital cultural, que só pode ser adquirido mediante um afastamento da necessidade econômica. (54)
  • O poder econômico é, antes de tudo, o poder de colocar a necessidade econômica à distância. (55)
  • Dois modos de aquisição de cultura: aprendizado total, precoce e insensível; e o tardio, metódico e acelerado. O pequeno-burguês, novo rico: privilegiam o saber sobre a experiência, contemplação da obra é trocada pelo discurso sobre ela. (65)
  • Doutos e mudanos: as regras versus a fruição. (67)
  • Razão versus carisma: beleza não se ensina, é uma graça que se transmite de mestres investidos para discípulos predestinados. (p.73)
  • O caráter próprio da imposição da legitimidade é o de impedir que, algum dia, seja possível determinar se o dominante aparece como distinto ou nobre por ser dominante ou se é por ser dominante que ele aparece como dotado dessas qualidades. (p.88)
  • A valorização do esporte a partir do século 19. Importante para valorizar virtudes consideradas típicas do chefe. Valorização da educação em relação à instrução, do caráter contra a inteligência, do esporte contra a cultura. (89)
  • Contracultura como esforço para se livrar das leis do mundo escolar. (92)
  • A classe social não é definida por uma propriedade, nem por uma soma de propriedades, tampouco por uma cadeia de propriedades (causa e efeito, condicionante e condicionado), mas pela estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes que conferem seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas. (101)
  • A causalidade estrutural de uma rede de fatores é totalmente irredutível à eficácia acumulada do conjunto das relações lineares. Multiplicidade de determinações não conduz à indeterminação, mas à sobredeterminação. (101)
  • Não é ao acaso que os indivíduos se deslocam no espaço social. A determinado volume de capital herdado corresponde um feixe de trajetórias praticamente equiprováveis que levam a posições praticamente equivalentes. A passagem de uma trajetória a outra depende muitas vezes de acontecimentos coletivos (guerras, crises econômicas etc.) (p104)
  • Sendo o capital uma relação social, ou seja, uma energia social que existe e produz seus efeitos apenas no campo em que ela se produz e se reproduz, cada uma das propriedades associadas à classe recebe seu valor e sua eficácia das leis específicas de cada campo. É a forma assumida neste campo pelo capital objetivado (propriedades) e incorporado (habitus) que define propriamente falando a classe social e constitui o princípio de produção de práticas distintivas. (p.107)
  • A taxa de conversão de diferentes espécies de capital é um dos pretextos fundamentais das lutas entre as diferentes frações de classe, cujo poder e privilégios estão relacionados a uma ou outra dessas espécies e, em particular, da luta sobre o princípio dominante da dominação (capital econômico, capital cultural ou capital social) em todos os momentos estabelece a oposição entre as diversas frações da classe dominante. (p115)
  • Geração enganada – acesso dos mais pobres ao ensino secundário mostra ser uma ilusão de ascenso. (p.135)
  • Luta contra a desclassificação: quem não é oriundo da classe está desprovido do capital social necessário para obter o pleno rendimento de seus diplomas. (142) [Lembrando Noel Rosa]
  • Especialidades na forma de “assessoria”, conselheiros, vendedores: profissões que oferecem meios de cobrir a distância entre o ser e o dever ser em relação à imagem e ao uso do corpo (uma nova hexis corporal). (147)
  • A aparição dessa nova pequena-burguesia só será compreensível em referência às transformações do modo de dominação que, tendo substituído a repressão pela sedução, a força pública pelas relações públicas, a autoridade pela publicidade (…), esferas em que a integração simbólica das classes dominadas venha a ocorrer de preferência pela imposição das necessidades e não pela inculcação das normas. (147)
  • Enquanto o antigo sistema tendia a produzir identidades sociais bem definidas (…), a espécie de instabilidade estrutural da representação da identidade social (…) tende a remeter os agentes (…) do terreno da crise e da crítica sociais para o terreno da crise e da crítica pessoais. (150)
  • Formar particular de luta de classes: concorrência em que os membros das classes dominadas deixam-se os desafios que lhe são propostos pelas classes dominantes, luta integradora (e reprodutiva). (p159)
  • Habitus: princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas. Na relação entre estas duas capacidades (…) se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida. (162)
  • Do livro Coisas ditas: “(…) Todo o trabalho de superação das oposições canônicas (entre Durkheim e Marx, por exemplo, ou entre Marx e Weber) está sujeito à regressão pedagógica ou política (e uma das principais coisas que está em jogo é evidentemente o uso político de autores e conceitos). O exemplo mais típico é a oposição, absolutamente absurda em termos científicos, entre indivíduo e sociedade, oposição que a noção de habitus, enquanto social incorporado, logo, individuado, visa superar.” (p.44-45)
  • Estilos de vida são produtos sistêmicos dos habitus que (…) tornam-se sistemas de sinais socialmente qualificados como “distintos”, “vulgares” etc. À medida que se sobe na escala social, reserva-se um espaço cada vez mais importante ao que Weber chamou de “estilização da vida”. (164) Consumo distinto versus consumo vulgar. (167)
  • A arte de comer e beber: único terreno em que as classes populares se opõem, explicitamente, à arte legítima de viver. (ver a discussão em 168-170)
  • O materialismo prático das classes populares: aproveitar os bons momentos, aceitar o tempo como ele se apresenta é, por si só, a única garantia presente contra as ameaças do futuro. Oposição entre o bar pequeno-burguês e o bar popular. No primeiro, o território demarcado. No segundo, a solidariedade. (173)
  • A abolição do freio econômico é acompanhada pelo fortalecimento das censuras sociais. (176)
  • A relação com o corpo: reveladora das disposições mais profundas do habitus. (179)
  • A refeição em família como único refúgio da liberdade, uma vez que no tempo e lugares restantes continua à submissão à necessidade. (186)
  • Relação inversa entre alimentação e vestuário. Este tem que ser durável, independente das aparências. (190)
  • Chefe carismático é aquele que consegue ser para os outros o que ele é para si próprio. Os dominados pela luta simbólica são para si próprios o que são para os outros. (vide contextualização na 196)
  • Os ricos preferem esportes distantes das diversões comuns, dos ajuntamentos: golfe, tênis, esqui, equitação, iatismo etc. (204)
  • Aspecto que faz diferença entre a cultura legitimida das sociedades divididas em classes (…) e a cultura em sociedades pouco ou nada diferenciadas, em que o acesso aos instrumentos de apropriação da herança cultural é praticamente distribuída de forma igual (…): a cultura não pode funcionar como capital cultural. (214)
  • A produção incessante de novos bens culturais ou maneiras de sua apropriação impede que o campo da produção dos bens culturais definhe como produtor de distinções. Confirmação: endogamia entre classes. (215)
  • A origem das “simpatias”, “antipatias”: sistema de sinais de que cada corpo é portador. O gosto é o que emparelha e assemelha as coisas. (225)
  • O SENSO DE DISTINÇÃO: A classe dominante constitui um espaço relativamente autônomo, cuja estrutura é definida pela distribuição entre seus membros das diferentes espécies de capital, de modo que cada fração é caracterizada propriamente falando por certa configuração dessa distribuição à qual corresponde, por intermédio do habitus, certo estilo de vida (…). (241)
  • Se a distribuição do capital econômico e a distribuição do capital cultural, entre as frações, apresentam estruturas simétricas e inversas e as diferentes estruturas patrimoniais estão nos princípios do habitus e das escolhas sistemáticas que ele produz (…) deve-se reencontrar estas estruturas no espaço dos estilos de vida. (241)
  • A nova burguesia e a conversão ética exigida pela nova economia: substitui a moral ascética por uma moral hedonista do consumo. (291)
  • O pequeno-burguês é um proletário que se faz pequeno para tornar-se burguês. (317) “A preocupação de concentrar esforços e reduzir os custos leva a romper vínculos – até mesmo familiares – que criam obstáculo à ascensão individual.” (316) “Seu próprio hexis corporal em que se exprime toda sua relação objetiva com o mundo social é o de um homem que deve se fazer pequeno para passar pela porta estreita que dá acesso à burguesia (…)” (318)
  • A nova pequena-burguesia realiza-se nas profissões de apresentação e de representação (…) e em todas as instituições destinadas à venda de bens e serviços de assistência médico-social (…) de produção e animação cultural (…), que passaram por um forte crescimento no decorrer dos últimos anos. (337)
  • A nova vanguarda ética: moral do dever de prazer. (345)
  • O habitus como necessidade que se torna virtude nunca é experimentado com tanta evidência quanto no caso das classes populares (…). Para ela a necessidade abrange tudo o que se entende (…) [por] privação inelutável dos bens necessários. Classe social não é definida somente pela posição nas relações de produção, mas pelo habitus de classe que normalmente está associado a esta posição. (350)
  • Quando um operário vê na vitrine um relógio caro, diz “que loucura”. [Mas] a loucura de uns é capital social para outros. (351)
  • A eficácia do habitus é bem visível quando as mesmas rendas estão associadas a consumos muito diferentes. (352)
  • Gramsci já disse que o operário tende a aplicar em todas as áreas sua disposição de executante. (360)
  • Em vez da monotonia da cadeia de montagem ou do escritório, esta relação com produtos culturais de “massa” reproduz, reativa e fortalece a relação social que se encontra na origem da exploração operária do mundo (…). O desapossamento econômico (…) duplica-se do desapossamento cultural que fornece a melhor justificativa aparente ao desapossamento econômico. (361)
  • A experiência que os mais desprovidos de capital cultural podem ter [diante] de obras de cultura legítimas (…) não passa de uma das formas de uma experiência mais fundamental e mais comum: o corte entre as habilidades práticas, parciais, tácitas e os conhecimentos teóricos, sistemáticos, explícitos. (361)
  • A ideologia carismática que imputa às pessoas seus dons, conhecimentos etc a inteira responsabilidade por seu destino social, exerce seus efeitos muito além do sistema escolar: não há relação hierárquica que não tenha uma parte da legitimidade que os próprios dominados reconhecem. (363)
  • Sistema de ensino: sistema de classificação objetivado que transforma classificações sociais em classificações escolares, levando assim a identificar o valor social com o valor pessoal e as dignidades escolares com a dignidade humana. (363)
  • Aqueles que acreditam na existência de uma “cultural popular” (…) devem perder a esperança de a encontrar, se procederem a uma verificação mais sutil, algo além dos fragmentos disponíveis de uma cultura erudita, mais ou menos antiga (…) selecionados e interpretados em função dos princípios fundamentais do habitus de classe e integrados na visão unitária do mundo que ele engendra e não a contracultura invocada por eles. A lógica específica da dominação cultural faz com que o mais completo reconhecimento da legitimidade cultural possa coexistir e, muita vezes, coexista com a contestação mais radical da legitimidade política. (369)
  • Tudo leva a pensar que a fração mais consciente da classe operária permanece profundamente submissa em matéria de cultura e linguagem, às normas e aos valores (…), sensível aos efeitos da imposição da autoridade que pode ser exercida por qualquer detentor de uma autoridade cultural sobre aqueles a quem o sistema escolar (…) inculcou um reconhecimento sem conhecimento. (370)
  • A ideia de “opinião pessoal” [foi] construída contra a pretensão da Igreja ao monopólio da produção legítima de julgamentos (…) e inseparável da contestação de toda autoridade em nome da convicção de que, nessas matérias, todas as opiniões, seja qual for seu produtor, são equivalentes (…) paralelamente à constituição de um campo especializado e de um mercado para produtos culturais e, em seguida, um sub-campo especializado na produção das opiniões políticas (imprensa, partidos e instâncias de representação). (372)
  • Se a propensão para delegar a outros reconhecidos por sua competência técnica a responsabilidade por assuntos políticos varia na razão inversa do capital escolar possuído, é porque o diploma (…) é tacitamente considerado legítimo para exercer a autoridade. (387)
  • [Erro:] os que pretendem apreender a contribuição que o sistema de ensino pode trazer à inculcação de uma visão do mundo social limitam sua busca (…) às intervenções ideológicas mais diretas e visíveis. (388)
  • A inclinação populista a atribuir às classes populares uma “política” (…) encontra seu fundamento não nos princípios explícitos de uma consciência continuamente vigilante e universalmente competente, mas nos esquemas de pensamento e de ação implícitos do habitus de classe, ou seja, (…) antes no inconsciente do que na consciência de classe. (392)
  • A maior oposição se estabelece entre a sistematicidade consciente e quase forçada do “partido” político e a sistematicidade “em si” das práticas e dos julgamentos engendrados a partir dos princípios inconscientes. (394)
  • O habitus integra o conjunto dos efeitos das determinações impostas pelas condições materiais de existência. Ele é a classe incorporada (…) e em todos os casos de deslocamento intergeracional ou intrageracional distingue-se (…) da classe objetivada em determinado momento (…) no sentido de que ele perpetua um estado desigual das condições materiais de existência, aquelas de que ele é o produto e, neste caso, diferem mais ou menos das condições de sua atualização. (410)
  • O efeito político de um jornal não se avalia pela orientação política de seu discurso propriamente político (…) mas pela relação que os eleitores mantêm com o jornal, cuja mensagem política pode ser ignorada por eles independentemente da opinião expressa pelo jornal, quanto mais se situam no baixo escalão da hierarquia social. Diferentemente do partido político, o jornal propõe uma informação que não é exclusivamente política. (…) Ele pode ser objeto de um interesse relativamente independente dos interesses especificamente políticos. [Por razões de mercado] tem o dever de evitar metodicamente tudo o que pode chocar e ser rejeitado por uma fração de seu público atual ou potencial. (413)
  • Se excetuarmos os mais politizados (…), os operários e empregados nunca vêem (…) o jornal como uma espécie de guia político ou de mentor moral e cultural (…) [sua expectativa é a de obter acesso a notícias]. (414)
  • A diferença entre a “imprensa sensacionalista” e a “imprensa de informação” reproduz (…) a oposição entre aqueles que fazem política em atos, palavras ou pensamentos e aqueles que a ela estão submetidos. Entre a opinião atuante e a opinião submissa. (417)
  • (continua…)
(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Um pitaco sobre “Lendo Bourdieu

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *