Itamaraty é ‘racista’ e Governo Dutra não sabe nem mesmo o que é ‘política de imigração’, ataca Carlos Lacerda

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da edição do Correio da Manhã de 7 de novembro de 1947.

Trecho da edição do Correio da Manhã de 7 de novembro de 1947.

O jornalista e líder político Carlos Lacerda fala sobre o tema da imigração em sua famosa coluna Na Tribuna da Imprensa, no diário Correio da Manhã de 7 de novembro de 19471. Crítico do governo Vargas, Lacerda indica sua posição logo na primeira frase do artigo: “A necessidade do Brasil receber imigrantes parece tão evidente que nem valeria a pena demonstrá-la”. Ainda que o governo decidisse por cotas mínimas – como era o caso –, indica Lacerda, “é forçoso reconhecer que HÁ PELO MENOS DEZ ANOS o Brasil não recebe quota anual razoavel de imigrantes, comparavel aquela que dantes recebia”. A caixa alta é do próprio Lacerda.

O jornalista atribui alto valor à miscigenação – “o segredo da quase miraculosa sobrevivência do nosso povo” – e lamenta que as fontes de “sangue novo que permitiram o desenvolvimento de São Paulo” tenham “estancado”. Lacerda não apenas afirma que o governo não possui uma política de imigração como destaca: “Creio não exagerar dizendo que o govêrno nem mesmo sabe o que é ”política de imigração”: pois outra não pode ser a nossa opinião diante dos erros sucessivos e, pior ainda, da omissão a que se condena o govêrno em relação a esse problema do qual dependem, em grande parte, todos os outros neste pais”.

Em seu estilo preferido, Lacerda ataca o Itamaraty (“racistas”) e diz que o governo quer apenas italianos (“que não vêm pra cá”), espanhóis (“que Franco não deixa vir”) e portugueses (“que Salazar proíbe de saírem de Portugal”). A despeito de milhares de trabalhadores de todas as categorias profissionais que estavam na Europa à espera de uma oportunidade para virem ao Brasil, argumenta, o país recebeu menos de 5 mil ao ano – e os que vieram deram margem “a um sensacionalismo unilateral e grotesco” que está servindo “por incrível que pareça aos objetivos da Russia”.

Segundo ele, a Rússia procura desmoralizar, em órgãos internacionais e nas assembleias, o “material humano disponivel na Europa”, descrevendo os europeus como “uma cambada de imprestaveis, de incapazes para qualquer trabalho” – diz o articulista. Ao mesmo tempo, os russos estariam espalhando – diz ele – “boatos aterrorizantes” sobre as condições de vida no Brasil ao propagar a ideia de que o país e outras nações que recebem imigrantes vivem em meio ao “inferno de calor, mosquito e revoluções sangrentas”. O objetivo russo seria – na visão dele – atrair este trabalhador europeu na própria Rússia “por salários de fome” e “alimentar a máquina do Estado totalitário de Stalin”. Lá seriam “escravos prováveis”, aqui “homens livres”.

Em relação à imprensa, mais ataques: “(…) em grande parte desinformada, que entrega o seu noticiário e até os seus comentários sobre a política imigratória aos rapazes recalcados, aos pseudo-profissionais, na realidade meros ressentidos contra uma sociedade que não lhes reconhece os auto-proclamados méritos, – e que são, na realidade, em cada jornal ”burguês” instrumentos da propaganda comunista, isto é, da propaganda russa”.

Lacerda critica ainda a situação dos refugiados no Brasil e de um acordo internacional realizado pelo governo. Citando um relatório publicado pelo World Dispatch, de Washington, Lacerda transcreve: “O erro de cálculo inicial partiu do antigo Comissário de Colonização, João Alberto Lins de Barros. Ele prometeu às Nações Unidas, em julho de 46, que o Brasil poderia muito bem receber 800.000 refugiados. Foi uma promessa irreal. O govêrno concordou em receber 5.000 este ano, mas apenas a titulo de experiencia”.

Ainda segundo o relatório citado por Lacerda, mesma a iniciativa mais limitada “não marcha satisfatoriamente”, com a insatisfação dos refugiados: “Os refugiados estão descontentes por várias razões. A crítica ás condições de vida, ao baixo salário e á péssima alimentação é quase universal”. Os empregos que teriam sido prometidos não surgiram na chegada ao Brasil. Eletricistas estariam reclamando por terem sido encaminhados a minas de carvão. Trabalhadores enviados a fazendas de café estariam se queixando de que os patrões os tratam como “servos feudais”. O salário não chega a um dólar (ou 20 cruzeiros) por dia.

É importante destacar que o jornalista não diz acreditar efetivamente no que diz o correspondente internacional, mas questiona: “(…) qual a autoridade do govêrno, qual o órgão de imprensa que pode contestá-lo?” Ainda segundo o relatório, na transcrição de Lacerda, o governo estaria botando a culpa em muitos dos refugiados por “simularem aptidões para conseguirem admissão no país”, considerando o Brasil “como uma sala de espera para irem para os Estados Unidos”.

O relatório citado por Lacerda afirma que a Organização Internacional de Refugiados – a IRO, na sigla em inglês, fundada por conta do enorme fluxo de refugiados da segunda guerra mundial e poucos anos depois substituída pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) – não estaria satisfeita “com o rumo que as coisas tomaram” e, a menos que o Brasil melhore as condições de estabelecimento dos imigrantes, a IRO “não concordará com qualquer movimento de refugiados em direção a esse país, no ano próximo”.

É importante destacar que não foi possível verificar o relatório na fonte e que Lacerda frequentemente se dedicava a atacar fervorosamente o governo Vargas e seu sucessor, neste caso, fazendo uma oposição por vezes intransigente.

Fidélis Reis: ‘Máxime o imigrante italiano, de excelência comprovada na fusão com a nossa gente’

A mesma edição – recorda-se: em novembro de 1947 – também traz um interessante artigo do conhecido político mineiro Fidélis Reis, que tratava igualmente da questão da imigração. Conta Fidélis sobre sua missão à Argentina para estudar o “problema colonizador”, entre outros temas como a agricultura, a indústria e o trabalho. “O povoamento do solo, com os problemas de viação e dos transportes, constituíam os pontos principais do programa de govêrno de Afonso Pena, em pleno fastígio. E os serviços de imigração e colonização, superintendidos pela Inspetoria do Povoamento, recémcriada, estavam a cargo do Ministério da Viação, confiado ao dinamismo de Miguel Calmon”, registra ele, falando portanto em seu texto sobre algum momento entre 1902 e 1906, período do mandato de Afonso Pena como presidente.

O objetivo do então presidente ao enviar um informante à Argentina, informa o próprio Fidélis, era saber mais sobre como agir diante das “pretensões já formuladas pela Jewish Colonizacion Association, poderosa emprêsa colonizadora interessada na aquisição de extensa área de terras agrícolas do Paraná, para a fundação de núcleos israelitas, de russos principalmente, à semelhança do que vinha fazendo na Argentina”. Segundo Fidélis, Pena lhe dissera que, entre os “problemas a resolvermos”, nenhum era tão vital para o Brasil como o de preencher os imensos vazios do território nacional “com elementos novos de população européia”. Fidélis questiona então se não seria esse o melhor momento para retomar o projeto: “Que outra melhor ocasião que a a atual, mal renascentes de uma guerra inaudita, que deixou ao desamparo e carecedoras de auxílio, por tôda a Europa devastada, tantas e tantas criaturas?”

Fidélis era um dos grandes defensores da tese do branqueamento racial2, se opondo inclusive, após aquela missão, à vinda em massa dos colonos israelitas – “que, ao nosso ver, deveríamos relegar a segundo plano”. Argumenta ele no artigo: “E se opúnhamos restrição a essa como a qualquer outra imigração, não importa de que procedência, que viesse constituir aqui futuros ”quistos”, por outro lado advertíamos o govêrno sôbre a indeclinável necessidade de promovermos a imigração, na mais larga escala”. A ideia de “quisto” – conceito emprestado da medicina se referindo a uma cavidade fechada onde se acumula líquido, o mesmo que “cisto” – é frequentemente utilizada durante toda a História da imprensa no Brasil, provavelmente até meados do século 20, para representar a ideia de que um grupo étnico-racial “fechado” nunca se adaptará ou se mesclará ao país.

Fidélis exalta os benefícios dos imigrantes na História não só para a Argentina, como também para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e Espírito Santo, citando os casos de Blumenau, Joinville e São Leopoldo – todos com intenso histórico de imigração europeia. O autor chega a creditar a formação da lavoura cafeeira de São Paulo aos italianos. Fidélis aponta que é a “mistura e o caldeamento racial que aos poucos se processará e de grandes vantagens e indiscutíveis benefícios para a formação das novas gerações”. E sugere: “Máxime o imigrante italiano, de excelência comprovada na fusão com a nossa gente”.

Há outras vantagens, diz. Do ponto de vista econômico, por exemplo, a “entrada do colono afeiçoado aos trabalhos da terra e das indústrias” significa o aumento da produção, trazendo também estes imigrantes “outras e proveitosas lições (…) em matéria de previdência, cooperação e economia”, que ele afirma não termos “povo dissipador e imprevidente que sempre fomos”. Este tipo de dupla (e dúbia) argumentação era um tanto quanto comum em parte da imprensa brasileira, e acha um espaço privilegiado no Correio da Manhã de Lacerda: ao mesmo tempo em que classifica como “racista” o atual governo, parte da elite deixa claro que a imigração é boa, mas não qualquer imigração.

‘Até agora, a imigração no Brasil se tem escrito mais por interrogações e reticências’

Na edição de 14 de dezembro da mesma coluna3, Lacerda volta a falar do tema, após informar que o ministro das Relações Exteriores estaria entregando ao presidente da República “um plano de imigração de acôrdo com as urgentes necessidades do país”. Comenta o jornalista que, se a informação for verdadeira, corrigirá “certos erros básicos da política imigratória atual – se é que atualmente temos alguma”.

Lacerda comenta que lidam com a questão da imigração cinco ministérios, representados por sete repartições – “sem contar subsecções, infra-departamentos, subserviços e vice-escaninhos”. Ele os lista. O primeiro é o Conselho de Imigração e Colonização, “aproximadamente autonomo, nominalmente submetidos ao Itamaraty”. Lacerda o acusa de ser composto de “homens confessadamente contrários à imigração disponível”. E compara: “É como se o Rio Grande do Sul pusesse á frente do Instituto do Vinho um grupo de membros da Sociedade da Temperança”.

Ainda segundo Lacerda, o segundo é o Departamento Nacional de Imigração, “órgão lírico-burocrático do Ministério do Trabalho” que “para atrapalhar, serve”. Outros órgãos listados pelo jornalista: a Divisão de Terras e Colonização (Ministério da Agricultura); o Serviço de Saúde dos Portos (Ministério da Educação e Saúde); a Polícia Marítima (Ministério da Justiça); a Divisão de Passaportes (Ministério do Exterior); e o Serviço de Registro de Estrangeiros, que Lacerda acusa de ser um dos principais oponentes à entrada de estrangeiros durante o Estado Novo. Além desses órgãos, diz, existem também os órgãos estaduais. O jornalista lembra que há um projeto na Câmara Federal, “dormindo”, para unificar essas atividades “para ver se assim consegue entrar no país algum imigrante”.

Lacerda cita sua suposta resposta a um governador sobre a quem ele deveria se dirigir para obter autorização de entrada para um grupo de imigrantes europeus para o seu Estado: “A ninguém. Obtenha do ministro das Relações Exteriores o compromisso de visar os passaportes necessários. Mande á Europa um funcionário estadual de sua confiança, para selecionar os imigrantes e faça-os vir. Depois que eles estiverem aqui, deixem brigarem as repartições, enquanto o senhor instala os homens no trabalho”. (veja a polêmica envolvendo Artur Neiva aqui)

Lacerda mantém sua argumentação de que os imigrantes são “indispensáveis ao Brasil” e que, atualmente, os disponíveis são os “deslocados de guerra”, vindos principalmente de países agrícolas e, portanto, que “servem” ao país. Por fim, conclui que o êxito dessa imigração depende tão somente das ações adotadas pelo próprio país “para receber e aproveitar esses imigrantes”. O jornalista critica o abandono de um plano que já fora, inclusive, apresentado no próprio Conselho.

O jornalista afirma que o plano se pautava por seis princípios. O primeiro é o de que a imigração “só pode produzir o que dela se espera quando completada, no próprio Brasil, por um plano de colonização”. Em segundo lugar, o imigrante não deve vir apenas para atendar à “fome de braços” da indústria ou da lavoura. “Escravo por escravo, êle fica na sua terra – e faz muito bem”, resumo Lacerda. Em terceiro, imigração é “sinônimo de planejamento – e antonimo de burocracia estatal”.

Em quarto, continua Lacerda, a imigração deve ser “livre”, bem como todo movimento migratório. Em quinto, deve haver recursos o quanto antes para se alcançar os deslocados de guerra. E o sexto, citamos na íntegra, ainda nas palavras de Lacerda: “Não ha que recear a vinda de certa percentagem de velhos ou de inativos, pois nenhum país se poderia dar ao luxo, ou á monstruosa frieza, de receber homens e mulheres válidos para cooperarem com êle, sob a condição de deixarem do lado de fóra, entregues á morte certa, os seus pais ou avós”.

Se o plano anunciado – e posteriormente abandonado – tiver esse espírito, diz Lacerda, “é o caso de escrever Afinal! – assim mesmo, com um ponto de exclamação”, pois “até agora, a imigração no Brasil se tem escrito mais por interrogações e reticencias”. Enfático, como era sua marca, Lacerda ataca o Conselho novamente, assim como já fizera com o Itamaraty: “É preciso deixar de brincar de racismo – e receber imigrantes. Venham de onde vierem, sejam quais forem. A imigração já, por si mesma, é um processo [de] seleção. A pecar por alguma coisa, seria melhor por falta de restrições do que por excesso”.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_05&pagfis=38781&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

2 Ver sua breve biografia, onde essa posição fica clara: http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XX%20Encontro/PDF/Autores%20e%20Artigos/Thiago%20Riccioppo.pdf

3 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_05&pagfis=39323&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Um pitaco sobre “Itamaraty é ‘racista’ e Governo Dutra não sabe nem mesmo o que é ‘política de imigração’, ataca Carlos Lacerda

  1. Pingback: Brasil no Mundo | Contribuições para a Política Externa Brasileira | Projeto mostra história da imigração no Brasil por meio da imprensa |

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *