Imigração na Europa: ‘Quando o debate é apresentado só com números, o problema é debatido como se estivéssemos falando de bananas’

Por Gustavo Barreto (*)
Foto que ilustra matéria do jornal O Globo de 9 de junho de 2002: um barco lotado com o que o jornal classifica como “imigrantes ilegais” – adjetivando um grupo de seres humanos (imigrantes) de forma pejorativa (ilegais, como se o próprio imigrante, e não a sua situação, fosse ilegal).

Foto que ilustra matéria do jornal O Globo de 9 de junho de 2002: um barco lotado com o que o jornal classifica como “imigrantes ilegais” – adjetivando um grupo de seres humanos (imigrantes) de forma pejorativa (ilegais, como se o próprio imigrante, e não a sua situação, fosse ilegal).

No dia 26 de maio de 2002, como tem sido comum durante os anos mais recentes, mais uma matéria em destaque no caderno Mundo do jornal O Globo trata da questão dos imigrantes, desta vez no Reino Unido. A matéria tem início como muitas deste tipo – a descrição de uma cena em um bairro chique de uma capital europeia (neste caso Londres) em que um imigrante (iugoslavo, neste caso) supostamente bem-sucedido presta serviços em uma profissão pouco valorizada pelos nacionais (cabeleireiro, no caso).

A matéria trata de detalhes do debate sobre as propostas do primeiro-ministro à época, Tony Blair, que poderia levar a “deportações em massa”. Um texto na mesma página – uma tradução de matéria do espanhol El Pais – fala sobre o aumento da agressão a muçulmanos nos países da União Europeia, alertando para o problema da islamofobia, que cresceu após os então recentes atentados do 11 de setembro nos Estados Unidos.

O jornal publica uma outra matéria na edição de 9 de junho, também no caderno Mundo, sob o título “Europa de portas fechadas”. Segundo o diário carioca, os líderes dos “principais países europeus” estão decididos a “combater a imigração ilegal”, uma “prioridade da União Europeia”. O problema, diz a correspondente do jornal em Madri, que assina a matéria, “não é novo”, mas “voltou a pautar os debates europeus” após o crescimento dos partidos de extrema-direita no continente. Um quadro explicativo trata das leis e projetos de quatro governos – Itália, Dinamarca, Reino Unido e Áustria –, citando outras medidas durante a matéria.

A matéria cita a “preocupação com os direitos civis”, a partir de fontes como o presidente do Partido Socialista espanhol, para quem o plano de imigração europeu não deveria transmitir a “sensação de que queremos transformar a Europa numa fortaleza, que se blinda diante de terceiros”, acrescentando: “Não devemos esquecer que somos a Europa democrática: devemos cooperar com a sociedade mundial com nossos valores e princípios, como democracia e respeito aos direitos fundamentais”.

Sobre o projeto de lei que restringe a entrada e permanência de estrangeiros na Espanha, o presidente da Comissão sobre Estrangeiros do Conselho Geral de Advocacia Espanhola opina: “A nova lei, com evidente cegueira, somente atende às exclusivas necessidades do mercado de trabalho. Dentro de poucos anos veremos como o número de imigrantes irregulares voltará a apresentar-se como um irremediável problema”. A crítica ao foco trabalhista é um tema que ganha destaque nas páginas do jornal carioca – porém para o contexto europeu.

Segundo a matéria, sem citar fontes, os europeus se mostram contrários à imigração por “sentirem-se inseguros”. A insegurança, acrescenta o jornal, vem sendo relacionada à imigração pelos governos direitistas europeus. “A insegurança dos cidadãos não se nutre exclusivamente de fatos, mas também de percepções e preconceitos que se expressam como o medo ante o desconhecido, muitas vezes encarnado em minorias étnicas”, opina Joaquín Arango, catedrático de sociologia das migrações da Universidade Complutense.

A matéria traz uma entrevista com o então porta-voz da agência da ONU para refugiados (ACNUR), Rupert Colville, para quem a Europa está debatendo o tema “sem levar em conta a situação de pessoas que realmente precisam deixar seus países”. Para além do debate sobre mão-de-obra, diz Colville, a questão em muitos países são os “problemas com integração dos imigrantes” – entre eles, os refugiados. Ao comentar sobre a quantidade de imigrantes na Europa – seriam 11 milhões em toda a Europa, sendo 3 milhões vivendo em situação irregular, segundo o jornal –, o funcionário da ONU afirma que, ao usar os números “friamente”, perde-se a “noção de muita coisa”, assim como também se perde “a noção da identidade das pessoas, como seres humanos”.

Colville acrescenta, abordando o tema a questão da percepção pública da temática: “É um processo desumanizador. Chama atenção o fato de que quando há uma crise de refugiados no mundo, na Índia ou em Kosovo, há simpatia da população em relação aos refugiados, porque eles vêem mulheres e crianças sofrendo. Mas quando o debate é apresentado só com números, o problema é debatido como se estivéssemos falando de bananas. As pessoas perdem a noção de que uma parte dos que pedem asilo são refugiados com extrema necessidade de proteção”.

A repórter traz como questionamento – não se sabe se propositalmente – uma percepção da extrema-direita sobre a imigração. Pergunta o jornal ao funcionário das Nações Unidas: “Imigrantes são vistos por alguns na Europa como pessoas que querem se aproveitar da riqueza dos países desenvolvidos e são freqüentemente associados ao aumento da criminalidade. O senhor não acha que esse aperto na legislação de imigração pode tornar as coisas piores?”

Colville chama a atenção para a dificuldade de diferenciar os refugiados e os imigrantes econômicos, “categorias muito diferentes”. Ele lembra à repórter que os refugiados são compelidos a deixar seus países, e frequentemente há uma ameaça real de morte ou tortura. Imigrantes econômicos, por outro lado, estão “mais ou menos fazendo uma escolha, embora todos entendamos suas aspirações de melhorar de vida”. Para ele, seria preciso encontrar formas de diferentes de lidar com as duas situações. “Refugiados, em alguns casos, morrem tentando entrar na Europa com a ajuda de traficantes, porque não há outro meio de fazê-lo”, destaca Colville.

O que preocupa é o “tom de hostilidade”, ressalta o representante da ONU, e o fato de que “o ponto inicial são números, quando o ponto inicial deveria ser proteger os refugiados, que precisam conseguir entrar no sistema”, além de ser necessário “fazer alguma coisa para canalizar os não refugiados para um outro sistema”.

Curiosamente, a própria foto que ilustra a matéria do jornal O Globo é a de um barco lotado com o que o jornal classifica como “imigrantes ilegais” – adjetivando um grupo de seres humanos (imigrantes) de forma pejorativa (ilegais, como se o próprio imigrante, e não a sua situação, fosse ilegal). Os ocupantes do barco esperam, segundo a descrição da imagem, para desembarcar em um porto na Sicília. E a legenda complementa a informação justamente com números: “A Europa”, diz o texto, “tem hoje três milhões de imigrantes ilegais” – expressão utilizada duas vezes na mesma sentença –, sendo “230 mil deles na Itália”.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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