Evadidos do “inferno vermelho”, imigrantes estão agora “felizes e sorridentes”, sustenta o governista ‘A Noite’

Por Gustavo Barreto (*)
Trecho da capa do diário A Noite, edição de 30 de março de 1950

Trecho da capa do diário A Noite, edição de 30 de março de 1950

O jornal governista A Noite, em sua edição de 30 de março de 19501, dá capa para a questão dos refugiados com o anticomunismo que marcou praticamente toda a vida deste diário carioca. “Evadidos do inferno vermelho”, diz o título, seguido das manchetes: “Deslocados de guerra que são excelentes imigrantes; Moços ansiosos e capazes, técnicos e agricultores e famílias sadias; A aventura da fuga para não se submeter aos soviéticos; Contigo comandante do Côrpo de Pagens do Czar2; A NOITE ouve na ilha das Flores todo um grupo de imigrantes amparados pela O.I.R.3”. A foto é significativa: uma freira recebe crianças, filhos dos deslocados.

As manchetes cumprem os objetivos centrais que marcam a cobertura do jornal sobre o tema: ao mesmo tempo em que registram sua posição antissoviética e anticomunista, o diário carioca entra em um debate sobre a importância de atrair estes imigrantes para o país – um tema sobre o qual não havia consenso – e destaca que tratam-se de trabalhadores qualificados e saudáveis, outro ponto de discórdia entre o governo e parte da oposição ao Governo Dutra.

O repórter informa que “palestrou demoradamente” com os deslocados de guerra – neste momento ainda não se usava com frequência o termo refugiados, ainda não previsto no direito internacional. O jornalista relata que “elementos de várias nacionalidades” estavam na Ilha das Flores e todos, além de sua língua materna, “falam fluentemente pelo menos uma língua estrangeira, alemão, inglês ou francês, e, em sua totalidade, são técnicos ou lavradores”, se constituindo como “elementos de primeira ordem, como imigrantes, para o país”.

O jornal descreve os deslocados como uma “verdadeira elite”, deslocada de seus países “pelo curso dos acontecimentos, disposta a refazer as suas vidas no Brasil e realmente capazes de dar ao país uma contribuição efetiva”. Entre as nacionalidades, diz o jornal, tchecos, romenos, iugoslavos, húngaros, ucranianos e “russos brancos”. O repórter, destaca o jornal, “palestrou com alguns dos elementos de cada nacionalidade, de modo a colher informes diretos sobre cada grupo e a situação em seu país de origem”.

A reportagem, extensa – ocupa três colunas da página 13 e parte central da capa –, detalha a vida de muitos deles. A reportagem fala no título do “inferno vermelho”, em referência aos soviéticos, porém descreve em outros momentos a perseguição nazista sofrida pelos imigrantes. O jornal tenta repetidamente equiparar as perseguições nazista e soviética como uma única ameaça, apesar de os relatos evidenciarem se tratarem de dois contextos diferentes, variando inclusive de país para país.

Um dos relatos “mais interessantes”, diz o jornal, é de Alexandre Bertels-Menschoy, um coronel que integrava a elite do Império Russo e se exilou “desde que ali lograram dominar os vermelhos”. O coronel é apresentado como “simpático, expressando-se em um francês refinado”. Bertels-Menschoy viera com “sua senhora, a chamado de seu filho, engenheiro agrônomo há algum tempo radicado no Brasil, residente no Rio Grande do Sul, a fim de aqui terminar os seus dias”.

O repórter descreve sua função na Rússia pré-revolucionária: “Há trinta e três anos, comandava na antiga Rússia Tsarista o Liceu Militar, conhecido como Corpo dos Pagens, de onde saíam para o complemento de um curso de dois anos na Academia Militar, os candidatos ao oficialato na Rússia Tsarista. Era uma entidade de cadetes, muitos dos quais pertencentes à nobreza e que recebia em seu seio personalidades estrangeiras de realce nos demais países eslavos”.

A Noite, em sua edição de 30 de março de 1950, página 13

A Noite, em sua edição de 30 de março de 1950, página 13

Entre seus “discípulos”, diz a matéria, estava o futuro rei Alexandre II, da Iugoslávia, onde mais tarde Bertels-Menschoy encontrou refúgio “depois do advento do Comunismo”. Tornou-se oficial do Estado Maior lá – mas, novamente, com a Segunda Guerra Mundial e a chegada do marechal comunista Josip Broz Tito ao poder, foi forçado novamente a “abandonar a sua segunda pátria”, registra o diário A Noite: “Com o regime de Tito perdeu suas funções oficiais e agora não pensa senão em terminar a vida tranquilamente no lar do filho no Rio Grande do Sul”.

A reportagem do diário carioca também procura afastar, para seus leitores, o medo que havia à época da formação dos chamados “quistos raciais”, termo que denotava o “risco” de os imigrantes não se integrarem à sociedade brasileira. Uma das entrevistas, gestante, disse ao repórter que “se sentia feliz em saber que o filho que lhe vai nascer já será brasileiro”, diz o diário carioca, que acrescenta: “Êste, aliás, era a aspiração de todos esses imigrantes, deslocados pela guerra de seus lares. Nada mais desejam do que fixar-se no Brasil e integrar-se no seio de nossa gente, consagrando-se ao país como a uma segunda pátria”.

O tom ufanista presente na matéria é, na verdade, o discurso dos governantes à época, que buscavam acabar com a desconfiança gerada por setores da oposição sobre os eventuais problemas que os refugiados trariam ao país, sendo um dos principais o “perigo comunista”. Desta forma, em quase toda a reportagem o cenário do “inferno vermelho” é contrastado com o fato de que estes imigrantes não só eram extremamente preparados profissionalmente, mas sobretudo que não seriam “agitadores” e “vermelhos”.

A matéria se encerra no tradicional tom cordial que marca matérias deste tipo, porém com uma aparente invenção jornalística difícil de acreditar – a citação não de um personagem, mas de uma coletividade: “Desejamo-lhes que fôssem felizes em nosso meio. A resposta veio pronta, sorridente, pronunciada com voz clara pelo grupo de imigrantes com que palestrávamos: Já somos, pois que fomos acolhidos no Brasil”.

NOTAS

1 Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=348970_05&pagfis=1137&pesq=

2 Espécie de elite organizada para exercer altas funções administrativas ou militares, criada junto ao príncipe para que, assim, ele tivesse a oportunidade de viver com as “melhores mentes” de seu tempo. Mais à frente a própria matéria explica sua função. Vide também http://bit.ly/1CdGdgE

3 Organização Internacional de Refugiados, organismo criado pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 1946 e que foi substituído pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), com a OIR encerrando suas atividades em 1951 e o ACNUR sendo estabelecido pela Assembleia Geral em dezembro de 1950. A própria OIR substituira uma organização anterior, a UNRRA, também citada neste trabalho.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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