Eu, no mínimo, tomaria cuidado com um sujeito desses

Por Gustavo Barreto (*)

Desde que Deus perdeu seu status de formulador único dos conceitos da maior parte das sociedades humanas, o sujeito (“Homem”, “ser humano”, “as pessoas”) é o centro de todas as atenções contemporâneas. No senso comum, a contraposição ao sujeito é o “objeto”. Na raiz latina (‘objectu’) ou alemã (‘Gegenstand’), é o que está posto adiante, tudo aquilo que é sensível, perceptível por qualquer dos sentidos humanos.

Eis que surge um debate sobre o desarmamento que usa esse artifício cultural: quem é responsável pelas mortes a partir do uso de armas de fogo: o sujeito ou o objeto?

A resposta recorrente é o sujeito. É o que diz o argumento conservador, por exemplo, de que “armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”. Nada mais do que dizer: o sujeito é ativo e o objeto (técnico, pois apropria um saber secular, a técnica belicista) não faz nada sozinho – tal como seria absurdo (porém é constante) dizer que “a Internet mudou o mundo”. São as pessoas, sempre, claro, que mudam o mundo. E não Deus ou a tecnologia.

Paulo Freire dizia algo parecido: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.

O debate é, no entanto, falso. Pura filosofia para manipular desavisados (e, conforme alertaram no século XVIII, a filosofia pura é inútil). Quem questiona que somente sujeito, e não objeto, poderia agir conscientemente? Ninguém especificamente, mas certamente a ideologia hegemônica, que coloca na conta da “tecnologia” todas as mudanças da contemporaneidade. Daí surgem os que afirmam que as armas são objeto, e não sujeito, para se “contrapor” a esta ideologia tecnicista, com o objetivo de defender a ação armada por parte de civis.

Onde está o truque, portanto?

Está em colocar no mesmo nível todo e qualquer objeto técnico. “Arma”, “tecnologia”, “educação”. É tudo a mesma coisa, afirmam. O que está sendo dito é que não haveria nada de errado em encher o mundo de armas, desde que todos saibam usá-la. Supondo que todos os propósitos são corretos. Supondo que todos concordam com o que é correto. Supondo que… bom, para isso surge o contrato social. O Estado. A ordem social. O fracasso do liberalismo está na sua negação, no limite do argumento, do coletivo. Um argumento perfeito para a indústria bélica – que, entre outras façanhas, depositou 5,6 milhões de reais no referendo sobre o desarmamento de 2005, no Brasil, para fazer valer este argumento.

O mesmo vale para a educação, às avessas: todos podem tê-la (“educação universal”), desde que ninguém a use para pôr em prática ideias que estejam fora do padrão do capital, consumista e financeirista da vida. É a educação bancária da qual falava Freire. É a Discovery Kids ensinando matemática financeira para crianças de 0 a 4 anos.

O principal equívoco, no entanto, está na própria contraposição de objeto e sujeito. A arma é um objeto técnico que está naturalizado em nossa sociedade. Se existe, então sempre vai existir. Ocorre que a nossa “natureza” é mutável, diversa, histórica. O natural e o cultural se mesclam, bem como o sujeito e o objeto. O teste é de simples verificação: algumas pessoas são um sujeito ao volante e outro sujeito distinto fora do volante. A relação não é dicotômica (sujeitoXobjeto) e sim relacional (sujeito e objeto em constante interação social e cultural).

As armas são instrumentos de perpetuação da violência. Em uma sociedade estatutariamente violenta, isto é ainda mais verdade, por conta deste mecanismo relacional. As pessoas são os sujeitos. São elas que matam – e aí vem o esquecimento proposital: também são as que morrem, e não as armas. As armas, ao contrário, ficam “vivas”, visto que uma única arma pode matar várias pessoas, mas não é um ser vivo (e, portanto, não pode morrer, pois nunca nasceu). Nas mãos de crianças, maus policiais, assassinos em potencial, contrabandistas. Tanto faz. Sem elas, morre-se menos, por toda a subjetividade que nela reside – os sujeitos a desenvolveram para que cause a morte, e não para que distribua flores em um belo dia de sol.

Dois tipos de sujeitos defendem o contrário. Um dos sujeitos é social: a indústria bélica, que lucra não só com as mortes mas igualmente com a sensação de medo generalizada. O outro sujeito é uma espécie de arquétipo sublime da modernidade tardia: o liberal pleno. Este é dono de si e tudo pode resolver. Ele se alimenta bem e cuida de sua higiene como ninguém (para garantir sua saúde), é um autodidata (não precisa de mestres nem da educação formal) e pode inclusive matar, desde que ache necessário.

Eu, no mínimo, tomaria cuidado com um sujeito desses.

(*) Gustavo Barreto (@gustavobarreto_), 39, é jornalista, com mestrado (2011) e doutorado (2015) em Comunicação e Cultura pela UFRJ. É autor de três livros: o primeiro sobre cidadania, direitos humanos e internet, e os dois demais sobre a história da imigração na imprensa brasileira (todos disponíveis clicando aqui). Atualmente é estudante de Psicologia. Acesse o currículo lattes clicando aqui. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

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